Filosofia – Pensadores e Obras

Abelardo

Abelardo, Pedro (1079-1142)

Nasceu em La Pallet (Nantes) e morreu na abadia de Saint-Marcel. Dialético formidável e teólogo excelente, provocador irresistível em sua vida e em sua obra, constante objeto de polêmica.

Ninguém melhor que ele para nos dizer quem era, como era e o que se propôs fazer. Abelardo deixou para nós em Historia calamitatum a trajetória e o sentido de sua vida e de sua obra. Esse juízo completa-se na correspondência epistolar posterior com Heloísa, a freira que foi sua amante e esposa. As declarações de , feitas no final de sua vida, completam a visão que tinha de si próprio. Do que se conclui que Abelardo, antes de mais nada, quis ser cristão. “Não quero ser filósofo se isso significa estar em conflito com Paulo, nem ser Aristóteles se isto me separa de Cristo”. Porém, um cristão que não renuncia a pensar por sua conta e que vê, na razão humana, um instrumento imprescindível para penetrar nas coisas divinas e humanas, um cristão que, acertadamente ou não, quer ser homem e afirmar-se como tal.

Interpreta-se, pois, a vida de Abelardo a partir da necessidade que ele sentia de investigar a verdade e de transmiti-la aos demais. Nada conseguiu afastá-lo dessa tarefa, que nele ganha sentido de luta. A luta pela verdade, pela sua verdade. Abelardo foi, primeiro, discípulo de Roscelino e de Guilherme de Champeaux. Mais tarde, discípulo de teologia nas aulas de Anselmo de Laon. Polemizou com todos os seus mestres. Depois de ensinar em Melun e Corbeil, chegou a Paris onde fez de suas aulas um clamor da multidão (1100). Paris correu atrás dele desde 1114-1118, atraído por seu magnetismo físico e intelectual: é o mestre por excelência. Nem o encontro amoroso com Heloísa, nem o desenlace fatal do mesmo — a mutilação de sua virilidade pelas mãos de seus adversários dirigidos pelo cónego Fulbert—nem o consequente ingresso e retiro na abadia de Saint-Denis foram capazes de deter a carreira magistral deste homem. “Tão grande multidão — diz-nos depois da vergonha da mutilação — que não havia lugar para albergá-los”.

Os vinte anos seguintes (1118-1138) não fazem mais que confirmá-lo. Nem a condenação de sua obra De unitate et trinitate divina — queimada diante de seus olhos em Soissons em 1221 — , nem sua peregrinação pelos mais insuspeitos lugares do norte da França, nem as intrigas de seus inimigos e dos monges foram capazes de abatê-lo. Assim no-lo conta em sua Historia calamitatum que termina por volta de 113 5. Através de João de Salisbury — que em 1136 assistiu às aulas de Abelardo em Santa Genoveva de Paris — sabemos que os quatro últimos anos (1138-1142) foram envolvidos na campanha de denúncia e condenação posterior promovidas por São Bernardo. Este conseguiu reunir treze proposições tiradas das obras de Abelardo e que foram condenadas no Concílio de Sens em 1141. Retirado em Cluny, onde Pedro, o Venerável, no-lo apresenta entregue ao estudo e à oração, morreu na abadia de Saint Marcel em 1142.

A obra de Abelardo oferece três blocos distintos: a) dialética ou lógica; b) teologia; c) moral ou ética. Poderíamos apresentar um quarto: miscelânea, composta por sermões, comentários, cartas e poemas. Neste grupo encontra-se a obra, nada desprezível, citada anteriormente como Historia calamitatum, correspondência com Heloísa, instruções às religiosas do Paráclito, as declarações de e a Apologia. Em sua obra há uma constante: tanto na lógica quanto na teologia revisa, de forma ininterrupta, seu primeiro pensamento. Assim, por exemplo, submete a uma contínua reelaboração sua Dialéctica, deixando-nos dela três redações. O mesmo vale dizer das Questiones theologicae. Abelardo seguiu o critério de aprofundar suas próprias teses. O De unitate et trinitate divina (1121) se refaz na Theologia Christiana (escrita entre 1123-1124). Ocorre ainda com Sic et non (1121-1122). As obras de moral aparecem já nos últimos anos: Ethica seu liber dictus “Scito te ipsum” (±1138) e a última, sem concluir: Dialogus inter Philosophum, Iudaeum et Christianum.

— Para Abelardo, a lógica tem por objeto a “proprietas sermonum”, contrariamente à metafísica, que estuda a “natura rerum”. Interpreta a lógica como “análise linguística do discurso científico”.

A maior contribuição de Abelardo à lógica está em sua concepção dos universais. “Tudo reside na propriedade das palavras de ser predicados. Algumas podem ser predicado de uma só coisa; outras, de muitas. Universais são aqueles termos que têm a propriedade lógica de ser predicados de muitos sujeitos”. Mas Abelardo não se ocupa das “voces” na sua realidade física, e sim do “sermo” ou nome enquanto ligado pela mente humana com certa função predicativa. A “vox” é criação da natureza, o “sermo” é instituição do homem. O “sermo” tem seu fundamento real enquanto supõe predicabilidade, referente a uma realidade significada.

— Para Abelardo, a no que não se pode entender é uma puramente verbal, carente de conteúdo espiritual e humano. A , que é um ato de vida, é inteligência do que se acredita. Portanto, se a não é um empenho cego que pode também dirigir-se a preconceitos e erros, deve também ser submetida ao exame da razão.

— Há uma continuidade entre o mundo da razão e o mundo da . Consequentemente, as doutrinas dos filósofos afirmam substancialmente o mesmo que se encontra nos dogmas cristãos, ou que os filósofos antigos devem ter sido inspirados por Deus como os profetas do Antigo Testamento (AT).

— No âmbito da ética, seu instinto leva-o ao problema central da moral: o do fundamento da moralidade dos atos. Abelardo parte da distinção entre vício e pecado. Não se pode denominar pecado à própria vontade ou ao desejo de fazer o que não é lícito, mas ao consentimento que recai sobre a vontade e o desejo. A ação pecaminosa não acrescenta nada à culpa. As proibições da moral cristã que intimam a não fazer isto ou aquilo são entendidas no sentido de que não se deve consentir nisto ou naquilo. Com relação ao sujeito, o princípio determinante do bem e do mal é, pois, a intenção, o consentimento e a consciência (“Conhece-te a ti mesmo”). E a chamada ética da intenção, da qual Abelardo deduz múltiplas consequências.

A influência de Abelardo foi imensa. No final do século XII impôs uma tendência pelo rigor técnico e pela explicação exaustiva — inclusive em teologia —, que encontrará sua expressão completa nas sínteses doutrinais do século XIII. Poder-se-ia dizer que Abelardo impôs um padrão intelectual, do qual já não se pretende derivar.

BIBLIOGRAFIA: Obras teológicas: PL 178; leiam-se também V. Cousin, Petri Abelardi Opera. Paris 1849-1859, 2 vols.; Ética o Conócete a ti mismo. Versão espanhola de Pedro R. Santidrián, 1990; E. Gilson, A filosofia na Idade Média, 21982, 261-277. [Santidrían]