Filosofia – Pensadores e Obras

felicidade

(gr. eudaimonia; lat. felicitas; in. Happiness; fr. Bonheur, al. Glückseligkeit; it. Felicita).

Em geral, estado de satisfação devido à situação no mundo. Por esta relação com a situação, a noção de felicidade difere de bem-aventurança, que é o ideal de satisfação independente da relação do homem com o mundo, por isso limitada à esfera contemplativa ou religiosa. O conceito de felicidade é humano e mundano. Nasceu na Grécia antiga, onde Tales julgava feliz “quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada” (Dióg. L., I, 1, 37). A boa saúde, a boa sorte na vida e o sucesso da formação individual, que constituem os elementos da felicidade, são inerentes à situação do homem no mundo e entre os outros homens. Demócrito, de maneira quase análoga, definia a felicidade como “a medida do prazer e a proporção da vida”, que era manter-se afastado dos defeitos e dos excessos (Fr. 191, Diels). De qualquer maneira, felicidade e infelicidade pertencem à alma (Fr., 170, Diels), uma vez que somente a alma “é morada do nosso destino” (Fr. 171, Diels). A relação que muitas vezes se estabeleceu entre felicidade e prazer tem o mesmo significado, ou seja, é a conexão entre o estado definido como felicidade e a relação com o próprio corpo, com as coisas e com os homens. A tese segundo a qual a felicidade é o sistema dos prazeres foi expressa com toda a clareza por Aristipo, que fez a distinção entre prazer e felicidade. Somente o prazer é bem, porque só ele é desejado por sisi mesmo, sendo portanto fim em si. “O fim é o prazer particular, a felicidade é o sistema dos prazeres particulares, em que se somam também os passados e os futuros” (Dióg. L., II, 8, 87). Egesias, que negava a possibilidade de felicidade, negava-a justamente pelo fato de que os prazeres são demasiado raros e passageiros (Ibid., II, 8, 94). Por outro lado, Platão negava que a felicidade consistisse no prazer e a julgava, ao contrário, relacionada com a virtude. “Os felizes são felizes por possuírem a justiça e a temperança; os infelizes são infelizes por possuírem a maldade”, diz ele em Górgias (508 b); no Banquete (202 c) são chamados de felizes “aqueles que possuem bondade e beleza”. Mas justiça e temperança são virtudes; “possuir bondade e beleza” significa ainda ser virtuoso; e a virtude outra coisa não é, segundo Platão, senão a capacidade da alma de cumprir seu próprio dever, ou seja, de dirigir o homem da melhor maneira (Rep., I, 353 d. ss.). Portanto, também a noção platônica de felicidade é relativa à situação do homem no mundo e aos deveres que aqui lhe cabem. Quanto a Aristóteles, insistiu no caráter contemplativo da felicidade em seu grau superior, a bem-aventurança , mas apresentou uma noção mais ampla de felicidade, definin-do-a como “certa atividade da alma, realizada em conformidade com a virtude” (Et. Nic, I, 13, 1102 b); ela não exclui, mas inclui a satisfação das necessidades e das aspirações mundanas. As pessoas felizes, segundo Aristóteles, devem possuir as três espécies de bens que se podem distinguir, quais sejam, os exteriores, os do corpo e os da alma (Ibid., 1153 b, 17 ss.; Pol., VII, 1, 1323 a 22). É verdade que “os bens exteriores, assim como qualquer instrumento, têm um limite dentro do qual desempenham sua função utilitária de instrumentos, mas além do qual se tornam prejudiciais ou inúteis para quem os possui. Os bens espirituais, ao contrário, quanto mais abundantes, mais úteis”. Mas em geral pode-se dizer que “cada qual merece a felicidade, na medida da virtude, do tino e da capacidade de bem agir que possui, podendo se tomar como exemplo a divindade, que é feliz e bem-aventurada não graças aos bens exteriores, mas por si mesma, por aquilo que ela é, por natureza” (Pol., VII, 1, 1323 b 8). A felicidade é portanto mais acessível ao sábio que mais facilmente se basta a si mesmo (Et. Nic, X, 7, 1777, a 25), mas é a isso que devem tender todos os homens e as cidades.

A ética pós-aristotélica, ao contrário, ocupa-se exclusivamente da felicidade do sábio; a nítida distinção feita pelos estoicos entre sábios e loucos torna obviamente inútil preocupar-se com estes últimos. O sábio é aquele que basta a si mesmo e que acha a felicidade em sisi mesmo, o que melhor se chamaria bem-aventurança. Plotino censura na noção aristotélica de felicidade o fato de ela consistir em que cada ser desempenhe sua função e atinja seus próprios objetivos, podendo ser perfeitamente aplicada não só aos homens, mas também aos animais e às plantas (Enn., I, 4,1 ss.). Nos estoicos Plotino critica a incoerência que consiste em considerar a felicidade independente das coisas externas ao mesmo tempo que aponta essas mesmas coisas como objeto da razão. Para Plotino, a felicidade é a própria vida; por isso, enquanto pertence a todos os seres vivos, pertence eminentemente à vida mais completa e perfeita, que é a da inteligência pura. O sábio, em quem tal vida se realiza, é um bem para sisi mesmo: só tem necessidade de si para ser feliz e não busca as outras coisas ou então as busca somente porque são indispensáveis às coisas que lhe pertencem (por exemplo, ao corpo), e não a ele mesmo. A felicidade do sábio não pode ser destruída pela má sorte, pelas doenças físicas ou mentais, nem por qualquer circunstância desfavorável, assim como não pode ser aumentada pelas circunstâncias favoráveis (Ibid., I, 4, 5 ss.): por isso, é a própria bem-aventurança de que gozam os deuses. A filosofia medieval adotou e enfatizou esses conceitos, adaptando a eles por vezes (como fez Tomás de Aquino) a própria doutrina aristotélica, mas es-tendendo-os à totalidade dos homens.

A partir do humanismo, a noção de felicidade começa a ser estritamente ligada à de prazer, como já havia ocorrido com os cirenaicos e com os epicuristas. A obra De voluptate de Lourenço Valia gira em torno dessa conexão, que se acentua no mundo moderno. Locke e Leibniz concordam nesse aspecto. Locke diz que a felicidade “é o maior prazer de que somos capazes, e a infelicidade o maior sofrimento; o grau ínfimo daquilo que pode ser chamado de felicidade é estar tão livre de sofrimentos e ter tanto prazer presente que não é possível contentar-se com menos” (Ensaio, II, 21, 43). E Leibniz: “Creio que a felicidade é um prazer durável, o que não poderia acontecer sem o progresso contínuo em direção a novos prazeres” (Nouv. ess., II, 21, 42). A noção de felicidade como prazer ou como soma, ou melhor, “sistema” de prazeres, segundo a expressão do velho Aristipo, começa a adquirir significado social com Hume: a felicidade torna-se um prazer que pode ser difundido, o prazer do maior número, e dessa forma a noção de felicidade torna-se a base do movimento reformador inglês do séc. XTX. Entrementes, Kant, que julgava impossível considerar a felicidade como fundamento da vida moral, esclarecia eficazmente a noção de felicidade sem recorrer à de prazer: “A felicidade é a condição do ser racional no mundo, para quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com seu desejo e vontade” (Crít. R. Prática, Dialética, seç. 5). Trata-se, portanto, de um conceito que o homem não haure dos instintos e que não deriva daquilo que nele é animalidade, mas que ele constrói para si de maneiras diferentes, que ele pode alterar com frequência, muitas vezes arbitrariamente (Crít. do Juízo, § 83). Kant julga que a felicidade é parte integrante do bem supremo, que para o homem é a síntese de virtude e felicidade. Mas como tal o bem supremo não é realizável no mundo natural, seja porque nada garante neste mundo a perfeita proporção entre moralidade e felicidade, em que consiste o bem supremo, seja porque nada garante a satisfação plena de todos os desejos e tendências do ser racional, em que consiste a felicidade Portanto, para Kant, a felicidade é impossível no mundo natural, sendo transferida para um mundo inteligível, que é “o reino da graça” (Crít. R. Pura, Doutrina do Método, cap. II, seç. 2). Em primeiro lugar, Kant teve o mérito de enunciar com rigor a noção de felicidade e, em segundo lugar, de mostrar que essa noção é empiricamente impossível, irrea-lizável. De fato, não é possível que sejam satisfeitas todas as tendências, inclinações e voli-ções do homem, porque de um lado a natureza não se preocupa em vir ao encontro do homem, com vistas a essa satisfação total, e de outro porque as próprias necessidades e inclinações nunca se aquietam no repouso da satisfação (Crít. do Juízo, § 83). Associada ao conceito de satisfação absoluta e total — em que Hegel também insiste (Enc., § 479-480) —, a felicidade torna-se o ideal de um estado ou condição inatingível, a não ser no mundo sobrenatural e por intervenção de um princípio onipotente. Não é de admirar, portanto, que toda a parte da filosofia moderna que passou pelo filtro do kan-tismo tenha desprezado a noção de felicidade e não a tenha utilizado na análise daquilo que a existência humana é ou deve ser. Todavia, com Hume, o empirismo inglês havia iniciado (como já foi dito) um novo desenvolvimento dessa noção em sentido social, o que é próprio do utilitarismo. Hume observara que, “quando se elogia alguma pessoa bondosa e humana”, nunca se deixa de dar destaque “à felicidade e satisfação da sociedade humana em poder contar com sua ação e com seus bons serviços” (Inc. Conc. Morais, II, 2). Portanto, identificara o que é moralmente bom com o que é útil e benéfico. Depois dele, Bentham retomava como fundamento da moral a fórmula de Beccaria: “A maior felicidade possível, no maior número de pessoas”, fórmula em que também se inspiraram James Mill e Stuart Mill, acentuando cada vez mais o seu caráter social. Nesses autores não se encontra um conceito rigoroso de felicidade, mas tampouco se encontra neles a rigidez e o absolutismo que essa noção sofrerá com Kant, o que a tornara impraticável. Eles sabem que a felicidade, por depender de condições e circunstâncias objetivas além das atitudes do homem, não pode pertencer ao homem em sua individualidade, mas só ao homem enquanto membro de um mundo social. E embora relacionem felicidade com prazer, distinguem os vários tipos de prazer, admitindo a identificação apenas com os prazeres socialmente partilháveis. Na tradição cultural inglesa e americana, a noção de felicidade permaneceu viva com essa forma e, além do pensamento filosófico, inspirou o pensamento social e político. O princípio da maior felicidade continuou por muito tempo sendo a base do liberalismo moderno de cunho anglo-saxônico. A Constituição americana incluiu entre os direitos naturais e inalienáveis do homem “a busca da felicidade”. A esta tradição liga-se Bertrand Russell, que foi um dos poucos a defender a noção de felicidade, ainda que numa obra de caráter popular (A conquista da felicidade, 1930). O que Russell acrescenta de novo à noção tradicional de felicidade (além de uma convincente análise das situações atuais de “infelicidade”) é uma condição que ele julga indispensável: a multiplicidade dos interesses, das relações do homem com as coisas e com os outros homens, portanto a eliminação do “egocentrismo”, do fechamento em sisi mesmo e nas paixões pessoais. Trata-se de uma condição que coloca a felicidade em posição diametralmente oposta à da auto-suficiência do sábio, que os antigos consideravam o grau mais elevado de felicidade

Por outro lado, não conseguindo mais utilizar a noçào de felicidade como fundamento ou princípio da vida moral, os filósofos desinteressaram-se dessa noção. Para esse desinteresse também contribuiu a tendência, que nasceu com o Romantismo e predominou por muito tempo, de exaltar a infelicidade, a dor, os estados de perturbação e insatisfação como experiências positivas e intrinsecamente regozijadoras. Com efeito, nos graus e nas formas em que pode ser considerada realizável, a felicidade é um estado de calma, uma condição de equilíbrio pelo menos relativo, de satisfação parcial e todavia efetiva, que é exatamente o oposto da inquietude romântica. A filosofia contemporânea ainda não se deteve para analisar a noção de felicidade nos limites em que ela pode servir para descrever situações humanas e orientá-las. Contudo, a importância dessa noção é hoje evidenciada pelo interesse que algumas noções negativas como “frustração”, “insatisfação”, etc, têm na psicologia individual e social, normal e patológica. Estas noções e outras análogas indicam, pois, a ausência mais ou menos grave da condição de satisfação pelo menos relativa que a palavra felicidade tradicionalmente designa. A importância destas para a análise de estados ou condições mais ou menos patológicos evidencia a importância que a noção positiva correspondente tem para as condições normais da vida humana. [Abbagnano]


O estado de completa satisfação. — Distinguem-se as morais da Antiguidade, para as quais a felicidade é o fim último do homem (hedonismo), das morais modernas, marcadas pelo cristianismo, que consideram a virtude a meta derradeira; a virtude consiste em merecer a felicidade, mas sua posse não tem em si mesma qualquer valor moral (rigorismo de Kant). A filosofia atual (proveniente de Fichte, de A. Gehlen) confere outra vez valor positivo à felicidade, na qual vê uma forma de sabedoria que somente se manifesta naquele que conhece perfeitamente a si próprio e sabe satisfazer as tendências fundamentais de seu ser. Pois, se é verdade que a felicidade ideal “é a satisfação de todas as nossas inclinações” (Kant), para ser realmente feliz é preciso saber se limitar às inclinações mais profundas. Nesse sentido é que a “felicidade” é irredutível ao “prazer”; os que tratam da felicidade não erraram em menosprezar o prazer que, com efeito, bem depressa “sacia e enfada” (Alain). A felicidade nunca é dada, resultando sempre de uma atividade do homem; é identificada frequentemente ao trabalho livre: neste sentido distingue-se o “prazer” ou “alegria”, que nos pode advir de acontecimentos, e a “felicidade” ou “beatitude”, que extraímos de nós próprios e está semj5re a nosso alcance. Perdura entretanto o fato de que a felicidade mais forte e mais pura é frequentemente a mais primitiva, a que se identifica com o sentimento de viver e de agir: “A felicidade é o próprio sabor da vida. . . Agir é uma alegria… A vida é toda ela um campo de contentamento” (Alain). Leia-se À conquista da felicidade, de Bertrand Russel. [Larousse]
Na filosofia grega a felicidade é o fim último e o supremo bem do homem, o que constitui o verdadeiro sentido de sua vida; na verdade, só se tinha em mira a realização imperfeita, terrena, de dito bem supremo. Várias foram as concepções acerca do conteúdo da felicidade: perguntava-se se ela era o prazer ou a posse de bens exteriores, ou a virtude, ou o conhecimento; se era dom e mercê dos deuses ou fruto do esforço próprio. A mais importante determinação do conceito de felicidade, deu-a Aristóteles na Ética a Nicômaco; segundo ele, a eudaimonia consiste na atividade do espírito, mediante o conhecimento da verdade, atividade essa conforme à natureza do mesmo espírito e de acordo com a sua teleologia. O prazer e a alegria são somente um eco da perfeição alcançada. Afora isso, a atitude moral virtuosa constitui um elemento essencial da felicidade, a qual, quanto ao mais, é concebida exclusivamente dentro do âmbito terreno. S. Agostinho e S. Tomás aplicaram o conceito de eudaimonia ao fim último da visão beatificante de Deus, fim que nos é dado a conhecer pela revelação. O puro eudemonismo, que vê o fim da vida humana unicamente numa satisfação concebida de maneira não teleológica, é superado pela ideia da perfeição interna da personalidade, alcançável somente na posse de Deus por meio do conhecimento, do amor, da santidade perfeita e do gozo. A doutrina cristã, com maior precisão, distingue uma felicidade natural, correspondente às capacidades e tendências da natureza espiritual, e outra sobrenatural, que, na ordem efetiva, constitui por si só o destino do homem e consiste na contemplação da Santíssima Trindade. Tal felicidade satisfaz igualmente o natural anelo de bem-aventurança, ínsito no espírito e que não diminui o mérito de seu esforço moral. Este e seu valor incondicionado ficam, ao invés, frustrados pela negação da imortalidade e da felicidade ultraterrena, que pertencem essencialmente à personalidade espiritual e ao âmago de uma depurada concepção da vida.— Schuster. [Brugger]


As doutrinas éticas que colocam a felicidade como bem supremo denominam-se eudemonistas, mas isto não implica que não possa compreender-se a felicidade de diversas maneiras: como bem-estar, como atividade contemplativa, como prazer, etc. Neste último sentido, os cirenaicos pareceram sublinhar o prazer dos sentidos ou prazer material como fundamento indispensável do prazer espiritual. Como o prazer sensível é algo presente, tendeu-se para considerar que só o prazer atual é um bem verdadeiro; argumentou-se contra esta teoria, que os prazeres podem produzir dores. Os cirenaicos responderam que o dever É procurar a satisfação dos desejos de tal forma que se evitem as dores subsequentes. Também se argumentou contra os cirenaicos que a sua doutrina é egoísta e que o prazer de um pode resultar na dor de outro. Os cínicos, por sua vez, acentuaram o desprezo por todo o saber que não conduza à felicidade, isto é, à vida tranquila. Só pode conseguir-se esta vida quando se tem um domínio suficiente sobre si próprio, quer dizer, quando se atinja a auto-suficiência, ou autarquia. Daí o desprezo do prazer, que é para os cínicos o produtor da infelicidade, o que perturba a quietude do sábio. A regra do sábio é a prudência, a sabedoria, pela qual se eliminam todas as necessidades supérfluas, pois só a virtude é necessária. A ética eudemonista sempre entendeu a felicidade como um bem e também como uma finalidade. Diz-se por isso que equivale a uma ética de bens e de fins. Desde Kant costuma chamar-se a este tipo de éticaética material”, para a diferenciar da “ética formal”, elaborada e defendida por Kant. Na medida em que se calcula que se atinge a felicidade ao conseguir-se o bem a que se aspira, pode dizer-se que todas as éticas materiais são éticas eudemonistas. Aristóteles manifestou que se identificou a felicidade com variadíssimos bens: a virtude, ou com a sabedoria prática, ou com a sabedoria filosófica, ou com todas elas acompanhadas ou não de prazer ou com a prosperidade (Ética a Nicômaco). A conclusão de Aristóteles é complexa: com a felicidade identificam-se as melhores atividades. Mas como se trata de saber quais são tais “melhores atividades”, o conceito é vazio desde que não se refira aos bens que a produzem.

Aristóteles tende para identificar felicidade com certas atividades de caráter por sua vez razoável e moderado.

Posteriormente, advertiu-se que a felicidade não tem sentido sem os bens que fazem felizes e tendeu-se para distinguir entre várias espécies de felicidade: uma felicidade bestial, não é felicidade senão aparente; uma felicidade eterna, que é a vida contemplativa; e uma felicidade final, que é a beatitude. Santo Agostinho falou da felicidade como fim da sabedoria; a felicidade é a possessão do verdadeiro absoluto, quer dizer, de Deus, todas as demais felicidades se encontram subordinadas àquela. Tomás de Aquino usou o termo beatitude como equivalente a felicidade e definiu como “um bem perfeito de natureza intelectual” (Suma Teológica). A felicidade não é simplesmente um estado de alma, mas algo que a alma recebe a partir de fora, pois de contrário a felicidade não estaria ligada a um bem verdadeiro. Embora os autores modernos tratassem o tema de forma diferente dos filósofos antigos e medievais, há qualquer coisa de comum em todos eles: que a felicidade nunca se apresenta como um bem em si mesmo, visto que para ser o que é a felicidade é preciso conhecer o bem ou bens que a produzem. Inclusivamente aqueles que fazem radicar a felicidade no estado de ânimo independente dos possíveis bens ou males supostamente externos chegam à conclusão de que não pode definir-se a felicidade se não se define certo bem, por subjectivo que este seja. Kant destacou muito claramente este fato ao manifestar na Crítica da Razão Prática, que a felicidade é “o nome das razões subjectivas da determinação” e, portanto, não é redutível a nenhuma razão particular. A felicidade é um conceito que pertence ao entendimento; não é o fim de nenhum impulso, mas sim o que acompanha toda a satisfação. [Ferrater]


O novo conceito de felicidade em Sócrates

Precisamente a partir de Sócrates, a maior parte dos filósofos gregos passou a apresentar suas mensagens ao mundo como mensagens de felicidade. Em grego, “felicidade” se diz “eudaimonia”, que, originalmente, significava ter tido a sorte de possuir um demônio-guardião bom e favorável, que garantia uma boa sorte e uma vida próspera e agradável. Mas os pré-socráticos já haviam interiorizado esse conceito: Heráclito escrevia que “o caráter moral é o verdadeiro demônio do homem” e que “a felicidade é bem diferente dos prazeres”, ao passo que Demócrito dizia que “não se tem a felicidade nos bens exteriores” e que “a alma é a morada de nossa sorte”.

Com base nas premissas que ilustramos, o discurso de Sócrates aprofunda e fundamenta ¿le modo sistemático precisamente esses conceitos. A felicidade não pode vir das coisas exteriores, do corpo, mas somente da alma, porque esta e só esta é a sua essência. E a alma é feliz quando é ordenada, ou seja, virtuosa. Diz Sócrates: “Para mim, quem é virtuoso, seja homem ou mulher, é feliz, ao passo que o injusto e malvado é infeliz”. Assim como a doença e a dor física são desordem do corpo, a saúde da alma é ordem da alma — e essa ordem espiritual ou harmonia interior é a felicidade.

Sendo assim, segundo Sócrates, o homem virtuoso entendido nesse sentido “não pode sofrer nenhum mal, nem na vida, nem na morte”. Nem na vida, porque os outros podem danificar-lhe os haveres ou o corpo, mas não arruinar-lhe a harmonia interior e a ordem da alma. Nem na morte, porque, se existe um além, o virtuoso será premiado; se não existe, ele já viveu bem no aquém, ao passo que o além é como um ser no nada. De qualquer forma, Sócrates tinha a firme convicção de que a virtude já tem o seu prêmio intrinsecamente, em si mesma, isto é, essencialmente: assim, vale a pena ser virtuoso, porque a própria virtude já constitui um fim. E, sendo assim, para Sócrates, o homem pode ser feliz nesta vida, quaisquer que sejam as circunstâncias em que lhe cabe viver e qualquer que seja a situação no além. O homem é o verdadeiro artífice de sua própria felicidade ou infelicidade. [Reale]