Filosofia – Pensadores e Obras

metamorfose

A literatura clássica das metamorfoses foi pelo menos tão rica quanto a das teogonias e das catábases. Quem queira escrever história, ressente-se, quanto às três, da lacunaridade da tradição. Do gênero agora em destaque, resta ao leitor que pretenda informar-se uma obra em grego, do período helenístico, e outra em latim, da Roma imperial. Esta é a mais divulgada. Ovídio a escreveu. «Metamorfoses» é o grego em que se diz «transformações», mudança de forma que o mesmo tem em outra que virá a ter. O motivo se difunde amplamente pelo conto popular, de maneira que não há estória de bruxos ou bruxas em que não se releve a metamorfose. Não só os bruxos ou bruxas más, mas também as boas fadas, com sua varinha de condão, assim como gênios e gênias, bons ou maus, da literatura islâmica, possuem o poder da metamorfose. À feitiçaria se atribui o mesmo. Enfim, só temos de nos queixar da monótona repetição do motivo. Se me perguntassem donde provém, não hesitaria na resposta: do genérico mito das «Dema-Gottheiten» (divindades-dema), descoberto por um tão conhecido quão combatido antropólogo alemão: Adolph Ed. Jensen. As objeções e a polêmica não anulam o facto descoberto. Há povos espalhados por toda a terra, ou que desconhecem o deus que se encaminha para a transcendência, ou que, se o conhecem, mal lhe mencionam o nome; o que ocupa o lugar dele são deidades de natureza muito peculiar, pois são homens que viveram antes do homem que vive hoje. Parece paradoxal. É, efetivamente, um paradoxo. Homens viveram antes do homem, mas esses não morriam e, por isso, não se reproduziam. E porque não morriam nem se reproduziam, por aí se atenua o paradoxal. Na verdade, não eram homens, seres humanos que morrem e se reproduzem. Se os chamássemos de deuses erraríamos, em especial, se os comparássemos com os deuses reconhecidos como tais, pois esses deuses não se revestem de algum poder excepcional; procedem exatamente como os homens procedem, só com as ressalvas referidas: não morrem, o que dispensa a reprodução; não se reproduzem, pois só a morte de uns exige a gestação de outros. [EudoroMito:80]


Que é metamorfose? De que resulta ela? Que se mostra o que seja, prescrutando-a para além do sentido imediato da palavra? E, por fim, tem ela algo que ver, ou haverá razão plausível para relacioná-la com cosmogonias e catábases? Isto é, qual, precisamente, o lugar em que este terceiro ramo da mitologia se entronca no impulso mítico, criador de mitos? Não tentaremos responder a tais perguntas, uma a uma, sucessivamente. Mas, na resposta ainda não pensada, espero que [82] a todas se reconheçam em lugar que ainda não sabemos qual seja. Em primeiro lugar, lembremo-nos de que a metamorfose se encontra bem ligada ao poema babilónico da criação: da morte de Tiamat, do corpo sem vida, de Tiamat, Marduk fez o mundo, dividindo-o em céu e terra. Talvez fosse possível levar os estágios homólogos das teogonias ou cosmogonias gregas, com mais ou menos vigor de imaginação, a dizerem o mesmo. Pelo menos, já se disse que a despotenciação de Úrano por Crono, e a de Crono por Zeus, no poema hesiódico, equivalería à morte. De dinastia em dinastia, o kósmos sofre uma metamorfose. Mas esta aventura é demasiado aventurosa, até para mim, que não me arreceio de aventura. Voltemos a solo mais firme. Mas era preciso lembrar que, manifestamente, o que só é metamorfose do que já existe no mundo, pelo menos uma vez, se tornou metamorfose do mundo, ou metamorfose em mundo. [EudoroMito:82-83]


Se bem atentamos no exemplo prototípico, metamorfose é alteração, passagem do «mesmo» ao «outro», e o liminar do «outro» é a morte. Morte e metamorfose não se separaram, neste mito, nem nos congêneres. Mas, assim, a morte assume estatura incomum. Morte não é término da vida, porque ela esbarrou no limite que, de fora ou de dentro, se lhe impõe; como passagem pelo liminar do «outro» é como se estivesse na vida, morte é só trânsito ou transe do mesmo ao outro. Trânsito e transe estão etimologicamente ligados [83] (trans-ire). Entrar em transe é ver-se no trânsito. De «transe» reza do dicionário: «momento aflitivo», «ato ou feito arriscado», «ocasião perigosa», «lance», «crise de angústia», «morte», «combate, luta», «estado de médium, ao apossar-se dele o espírito» (A. Buarque de Holanda). Que farta colheita! Que de mais precisamos? Morte é trânsito e o trânsito é transe. Momento aflitivo, angustiante, ao ver-se diante da estreiteza da porta, correndo no risco de cair no entremundos antes de lhe alcançar a soleira, luta contra o «si mesmo», que dificulta o transpô-la, o sentir-se apossado do «outro», quando ainda não se renunciou totalmente ao «mesmo». Momento decisivo da metamorfose é esta morte latente na vida.

Latente na vida do homem e latente na vida do mundo, no mundo deste homem e no homem deste mundo e, sobretudo, no deus a que homem e mundo se conformam, ou no que o deus se conforma a homem e mundo. Concomitância da metamorfose-alteração: o deus-projeto [v. projeto] é outro, outros são homem e mundo. Na metamorfose, tudo muda do mesmo para o outro, mas os três outros dispõem-se em semelhante triangulação cosmogônica. Outro mensageiro propõe outra mensagem diante de outro intérprete; outro intérprete interpreta outra mensagem de outro mensageiro. Temos outra mensagem que é mundo e homem que dentro do mundo está, e outro intérprete que é homem que está fora, diante do mundo. Mas que é do mensageiro? Mais uma vez, a catástrofe do triângulo, o abatimento dos lados sobre a base; mas agora dizemos que o estar oculto o deus no homem e no mundo, assume outro sentido; o deus morreu e a sua mortevida ao mundo e ao homem. Uma vida. Outro lhes dará outra. Quantas vidas podemos viver, na vida que nos foi dada? Quantas mortes morremos e quantas havemos de morrer? Tantas quantas a nossa disponibilidade no-las permita. Morte ou iniciação; iniciação ou morte é só para quem se dispõe, para quem dispõe do «si mesmo», para quem do «si mesmo» dispôs, a ponto de rejeitá-lo, em parte ou no todo. Cada vez que rejeito uma parte do «mim mesmo», morro da morte ritual do iniciando; a iniciação preenche o vazio e, de novo, «cheio de mim», mas com parte que há pouco não era minha, sou outro, alterei-me, metamorfoseei-me. Mas esta ainda não é a inteira disponibilidade. Disponibilidade inteira é rejeição de tudo o que de «mim mesmo» me enchia. Só a Morte, que por último morrerei, desenvolverá, desencobrirá, desocultará o que, em toda a enternidade, «eu» fui, sou e serei: a minha irredutível subjetividade. [EudoroMito:83-84]