Filosofia – Pensadores e Obras

Inferno

33. Facile est descensus. Decerto; porque ninguém desce ao Averno. Não há descida. Só há homens que nos Infernos se veem, por subitamente alheados do Mundo que outrora lhes parecia o seu. O Inferno não é lugar a que eu desça, mas lugar em que, estando, não quero estar; lugar de onde quero sair, porque dele já saí, sem que de haver saído me apercebesse. Ninguém desce aos Infernos. Deles tendo subido, depois dirão que lá desceram. Para mim, Inferno é não haver lugar, é sentimento de não havê-lo onde estou, quando sou outro que não era. Inferno é ser obrigado a viver a vida alheia, em lugar que o não é, por sê-lo de todos e de ninguém. Nãolugar para os Infernos, nem acima, nem sobre, nem abaixo da terra. Inferno é o nome que se dá a uma das possíveis correlações entre o homem e o mundo, ou, antes, à impossível relação de um com o outro, nos momentos privilegiados, em que «homem deste mundo» se desencontra com o «mundo deste homem». É nome de uma situação liminar: eunão sou o que fui, mas ainda não sou o que serei. Na liminaridade, já perdi o mundo em que vivia e ainda não ganhei o mundo em que vou viver. Inferno é, pois, não um lugar de qualquer mundo, nem um não-lugar de entremundos. Ninguém suportará facilmente o ver-se pairando sobre o Caos, criador de mundos. Por isso, as catábases da tradição literária greco-latina ou do Oriente próximo chegam-nos cifradas em aventuras que todas as demais superam. Primeiro, são os deuses, depois, alguns heróis; mas do comum dos homens não se conta que algum tenha descido aos Infernos. Por aí mesmo se define o homem comum: não tendo forças para se exceder, não passa além dos limites do mundo único, que julga existir, do que para ele existe e para o qual existe ele. O mesmo dizemos se dissermos que uma catábase descreve a transcensão da comum experiência humana — o que se dá sempre que, no limite de um mundo, se veja o liminar de outro. O lado religioso do mito é um ritual de iniciação.

34. Não sendo lugar em que ímpios e renegados expiam seus crimes, destes Infernos, a saída é a que nos leva a dizer que lá [58] descemos. Na mais verdadeira das verdades, difficile est ascensus. A subida é árdua. Não é fácil passar de um mundo para outro que lhe não é contíguo; o passo sempre exige a sobre-humana audácia de caminhar sobre o abismo do entremundos, a consumada arte do funâmbulo que se resguarda da vertigem fatal, não olhando para o tão pouco em que seus pés se sustentam, imaginando desde o último passo do lado de cá que dado está o primeiro do lado de lá, expulsando de sua mente a representação do abismo, propositadamente se olvidando dele, conseguindo esquecê-lo enquanto sobre ele caminha. O Inferno é onde quase todos vivem sem que o saibam e donde bem poucos saem para sabê-lo (este «para sabê-lo» não me satisfaz: não saio dos Infernos «para saber que lá estive»; sei-o, entre muitas outras coisas que vim a saber, depois que dele saí). Este saber não o é disto ou daquilo, disto e daquilo; é um saber da não-verdade de tudo quanto era isto ou aquilo; ou isto e aquilo. É um saber de que tudo está envolvido e encoberto, no mundo que o Homem vem construindo. Porque o Inferno é feito disso: do Mundo que o Homem constrói e do Homem que constrói o Mundo. Aí tudo está envolvido e encoberto. Talvez o mito da descida de Innana-Ishtar aos Infernos não ponha em evidência o seu mais verídico significado. A cada uma das sete portas a deusa se despoja de um de seus vestidos, de um de seus adornos, e ao Grande Em Baixo chega de corpo nu. O mito parece desconhecer que a nudez do corpo ou é a mais opaca túnica da alma ou que a alma é a mais espessa vestimenta do corpo. Daí que o mitógrafo emende a mão, acrescentando que Ereshkigal ordena que sobre a aparente nudez de Innana-Ishtar se esparzam as águas da morte. Nada mais completamente revestido, encoberto e envolvido do que um morto nu. O que na verdade o mito diz é que, entre nós, a divindade da deusa se descobre no que parece envolvê-la: a sumptuosidade das vestes que deixara pelo caminho. Nos Infernos, nua, a deusa se encobre de humanidade. Uma catábase é o superlato mito de um ritual de «passagem».

35. Todos nós estivemos nos Infernos, quase todos neles passarão a vida, uns poucos souberam de lá ter estado. Estes dizem que desceram aos Infernos. Poucos; não só porque tão estreita é a porta de saída, quanta é larga a de entrada, mas também porque o Inferno não é o de antes: oferece confortos, está disposto de modo a oferecê-los cada vez em maior quantidade e melhor qualidade, pois quer-nos acariciados de sonhos, quer-nos em [59] momentâneo esquecimento do trabalho que nos custa a sua acomodação, durante uma vigília que ainda é sono, mas sono esburacado de pesadelos. Outrora dizia-se que, em se morrendo, nossa alma podia ir para o Inferno. Os tempos mudaram as ideias. A nossa vida começa lá, vida de corpo e alma; começa e acaba lá, para o Homem que persista em sê-lo. Misteriosíssimo mistério é o de existir quem não se acomode à comodidade desse Mundo (se a conquistou). Não podemos decifrá-lo, porque mistérios não se decifram; são, eles mesmos, cifra indecifrável, porque não fomos nós quem os cifrou. Só nos foi dado o poder de alegorizá-los. Daquele mistério, decerto não faltarão alegorias. Uma, poderia ser esta: quem não se acomoda ao Mundo Infernal, sonhou mundo que não é o Mundo, sonhou que não lhe era defeso procurar a porta estreita, sonhou que nem assim tão estreita era que não lhe permitisse transpô-la. Acreditou no sonho, achou a porta e saiu. Viu-se suspenso sobre o abismo do entremundos. Não se atemorizou. E já de dentro de outro mundo, pôde, enfim, dizer que já descera aos Infernos. Decisivo foi crer que o sonho lhe viera de fora de onde dormia; que o sonho não surdira do «si mesmo» nem era surpreendente figura de circunstância; que o sonho era um apelo, que era, não aparência, mas aparição do que nunca vira em seu redor; uma instância dirigida ao que ele era, no fundo do que nunca fora. Decisivo foi crer, e poucos se dispõem a crer, pois crer é aderir a outro, e a outro não adere quem se apegou ao mesmo, quero dizer, ao «si mesmo». Lástima que não sejamos mais egoístas, não no sentido em que «egoísmo» se opõe a «altruísmo», mas naquele, mais difícil de aprender, em que «eu» me oponho a «mim». Através do «si mesmo», «ele» escutou o apelo. Catábase é sinal de conversão ou reversão, em todo o caso de metamorfose. [EudoroMito:57-60]