A uma forma do ser humano, a uma forma do ser homem, ou do ser do homem, a qualquer de formas tais, corresponde uma forma do ser mundano, uma forma de ser mundo, uma forma de ser do mundo. Homem e mundo são inseparáveis parceiros do mesmo jogo. E a parceria é tão necessária, tão indissolúvel, quanto o das duas projeções do mesmo ponto de um plano em qualquer sistema de coordenadas. Esta figuração geométrica bem pode fingir a inexorabilidade da Recusa. Mas enquanto a finge, também [28] vai sugerindo fingimentos a que não nos propúnhamos ou ainda não nos propúnhamos fingir. Precariamente firmados num estreito patamar do abismo a que descemos, sempre perigando a queda no sem fundo e olhando timidamente para cima ou por cima da coordenação homem-mundo, atendamos bem aos dois pontos coordenados, que o são por ambos se coordenarem a outro, aquele que se projeta nos eixos do sistema referencial. Se este «projeto» não se movesse no plano da figura, diríamos que, sempre inalterada a posição das suas coordenadas, um só Homem esteve, está e estará em um só Mundo. Poderíamos até olvidar-nos do Projeto para nos ocuparmos somente do Mundo em que o Homem está, ou do Homem que está no Mundo. Esta é a situação mais cômoda para um pensamento que desdenha de abrir seu caminho através do ermo intransitado. Suponhamos, porém, que mude a posição do Projeto (que, por impulso meu ou de outrem, o ponto se mova no plano da figura). A mercê da mudança súbita, aí ficamos nós perdidos do Homem e do Mundo, uma vez que um e outro, coordenadamente projetados, mudaram com a mudança do Projeto. Podemos dar mais um passo ao encontro do que nada tem de geométrico, reencalçando outro passo da geometria: um dos projetados (uma das coordenadas), Y (Homem ou Mundo), pode encarar-se como função do outro projetado (da outra coordenada), X (Mundo ou Homem), e, então, diremos que o mundo é função do homem ou que homem é função do mundo. Não razoamos no vazio: há correntes no oceano do pensamento já pensado, que corre num ou noutro sentido; ou o homem depende do mundo ou o mundo depende do homem. Mas a verdade mais verdadeira é que ambos dependem do Projeto, numa estreita e rigorosa solidariedade. [EudoroMito:28-29]
Poucos «feitos» do pensamento me parecem tão espantosos quanto o de tão raras dúvidas incidirem na existência de um só Mundo, posto na eternidade ou abandonado ao tempo que decorreu desde o instante em que se coloque o seu início; quanto o não querer falar-se de mundos que coexistem ou que um a outro se sucedem no mesmo lugar e tempo em que só evoluiria o Mundo. Pois — isso sabem-no os mais sábios — o Mundo não pode ser objeto de experiência. O que não impede a grande maioria dos homens de ter sido levada a crer na existência do Mundo, embora se permita acreditar que ele se ache em contínua mutação. Quanto a mim, prefiro crer que a mutação é descontínua, chegando a transpor a distância que vai do mesmo ao outro. E tão raras são as dúvidas acerca da existência de um só Homem. A enorme multidão dos homens crê no Homem, como crê no Mundo, ainda que os considere, cada um, pendendo para seu lado; crê que o Homem existe, embora com sensível hesitação também consinta que ele se ache em contínua mutação. Mais uma vez declaro e proclamo a minha preferência pela descontinuidade, a que vai do [30] mesmo ao outro. Proponho, consequentemente, que, em vez de falar-se em um só Homem que se transforma através dos tempos, se fale de homens profundamente dissemelhantes de «época» para «época» de uma história que não assente no preconceito da evolução do Homem. Referimo-nos primeiro ao Mundo, e depois ao Homem; poderíamos ter procedido ao invés. Em qualquer dos casos, deslizamos pelo pendor analítico da expressão verbal. Mas agora devemos acrescentar que melhor teria sido situar Homem e Mundo em duas pautas conexas ou, pelo menos, contíguas. Então claramente se veria que a mutação que vai do mesmo ao outro atinge solidariamente Homem e Mundo. Um e outro homem, um e outro mundo, não são apenas como quaisquer valores discretos que assumem duas variáveis independentes. Um homem está em um mundo, outro em outro. A mutação descontínua do Mundo, que nos permite designar «este mundo», é a mesma mutação descontínua do Homem, que nos deixa falar d’«este homem». Mas «este homem» e «este mundo» são interdependentes, co-pertinentes, são como pontos situados na mesma perpendicular às duas pautas. «Este homem», está n’«este mundo», como n’«este mundo» está «este homem». O mesmo se pode dizer por palavras menos ofensivas ao bom senso ou à opinião da maioria, se não se atendeu já a que, talvez irrefletidamente, se fala, por exemplo, do «mundo do selvagem» e do «mundo do civilizado», do «mundo do poeta» e do «mundo do cientista» e de outros tantos binários homem-mundo. [EudoroMito:30-31]
Como poderíamos arriscar a esperança de alguma vez o triângulo da complementaridade indelevelmente se imprimir na mente de alguns poucos? Mas, antes de qualquer expectativa de sucesso ou fracasso, repare-se que uma coisa já pode passar por certa: não é de esperar um momento que já chegou. Muitos, senão todos os que se dão ao cuidado de pensar, bem sabem que sempre correm o risco de se lhes entorpecerem os passos em [38] algum ponto do caminho dos caminhos do pensamento já trilhados, deixando disjuntos e inconjuntos «mundo sem homem» e «homem sem mundo». Um e outro já ficaram para trás, definitivamente para trás, em qualquer ponto das trilhas do pensamento pensado até o limite do pensável ou o liminar do impensado. Até a oposição os liga — homem e mundo — nas mais salutares expressões do espiritualismo e do materialismo, do realismo e do idealismo. A ninguém há que ensinar, por exemplo, que o homem é ele e a sua circunstância. Mas o perigo da disjunção subsiste enquanto nos dispensarmos de averiguar o que os conjunta e como se acham conjuntados. Só falta mostrar a natureza do nexo. O mais frequente é que no-lo apresentem como obnóxio, isto é, que nos digam que o mundo se sujeita ao homem ou que o homem se sujeita ao mundo. Neste caso, o nexo é só o da sujeição, que pressupõe a oposição e, às vezes, o confronto agressivo e exterminador; e, no extermínio, o nexo se perde. Insubsistente como tal, é também o nexo que eventualmente na gnosiologia se nos propõe: o homem é movido pelo anseio de conhecer o mundo. Está certo. Mas daí por diante prossegue-se nos sentidos opostos de dois membros de uma alternativa: ou o conhecimento submerge o homem no mundo ou faz que o mundo submirja no homem. Está claro que estes são casos extremos. O mais frequente é encontrar quem afirme que o conhecimento também sujeita o mundo, haja ou não haja quem pense que, conhecido ou não, o mundo permanece o mesmo diante do homem que permanece o mesmo, quer o conheça, quer não. Mas se o conhecedor e o conhecido, um por querer conhecer e outro por se dar a conhecer, ficam indiferentes um perante o outro, nem sobra ocasião para falar-se de nexo. Conexão verdadeira não se dá sem que se realizem possibilidades de mútuo afeiçoamento do mundo ao homem e do homem ao mundo. Mas todas as possibilidades são as que o Projeto previu. [EudoroMito:38-39]