Filosofia – Pensadores e Obras

propriedade privada

Parece ser da natureza da relação entre os domínios público e privado que o estágio final do desaparecimento do domínio público seja acompanhado pela ameaça de liquidação também do domínio privado. Nem é por acaso que toda a discussão veio a transformar-se em um argumento quanto à desejabilidade ou indesejabilidade da posse privada da propriedade. Pois a palavra “privada” em conexão com a propriedade, mesmo em termos do pensamento político antigo, perde imediatamente o seu caráter privativo e grande parte de sua oposição ao domínio público em geral; aparentemente, a propriedade possui certas qualificações que, embora situadas no domínio privado, sempre foram tidas como sendo da máxima importância para o corpo político.

A profunda conexão entre o privado e o público, manifesta em seu nível mais elementar na questão da propriedade privada, corre hoje o risco de ser mal interpretada em razão do moderno equacionamento entre a propriedade e a riqueza, de um lado, e a inexistência de propriedade e a pobreza, de outro. Essa má interpretação é ainda mais importuna visto que ambas, a propriedade e a riqueza, são historicamente de maior relevância para o domínio público que qualquer outra questão ou preocupação privada, e desempenharam, pelo menos formalmente, mais ou menos o mesmo papel como principal condição para a admissão ao domínio público e à plena cidadania. É, portanto, fácil esquecer que a riqueza e a propriedade, longe de constituírem a mesma coisa, têm caráter inteiramente diverso. O atual surgimento, em toda parte, de sociedades real ou potencialmente muito ricas, nas quais ao mesmo tempo basicamente não existe propriedade, porque a riqueza de qualquer dos cidadãos individualmente consiste em sua participação na renda anual da sociedade como um todo, mostra claramente quão pouco essas duas coisas estão conectadas.

Antes da era moderna, que começou com a expropriação dos pobres e em seguida passou a emancipar as novas classes destituídas de propriedades, todas as civilizações tiveram por base o caráter sagrado da propriedade privada. A riqueza, ao contrário, fosse possuída privadamente ou publicamente distribuída, nunca antes fora sagrada. Originalmente, a propriedade significava nada mais nada menos que o indivíduo possuía seu lugar em determinada parte do mundo e, portanto, pertencia ao corpo político, isto é, que chefiava uma das famílias que constituíam em conjunto o domínio público. Essa parte do mundo possuída privadamente era tão completamente idêntica à família à qual pertencia [v. família] que a expulsão de um cidadão podia significar não apenas o confisco de sua propriedade, mas a efetiva destruição de sua própria morada. [v. comunidade] A riqueza de um estrangeiro ou de um escravo não substituía, em nenhuma circunstância, essa propriedade, [v. peculium] ao passo que a pobreza não destituía o chefe de família desse lugar no mundo e da cidadania dele decorrente. Nos tempos antigos, quem viesse perder o seu lugar perdia quase automaticamente a cidadania, além da proteção da lei. [v. família] A sacralidade dessa privatividade assemelhava-se à sacralidade do oculto, ou seja, do nascimento e da morte, o começo e o fim dos mortais que, como todas as criaturas vivas, surgem das trevas de um submundo e retornam a elas. [v. lar] A feição não privativa do domínio doméstico residia originalmente no fato de ser ele o domínio do nascimento e da morte, que deve ser ocultado do domínio público por abrigar coisas ocultas aos olhos humanos e impenetráveis ao conhecimento humano. [v. mistérios] É ocultado porque o homem não sabe de onde vem quando nasce, nem para onde vai quando morre.

Não o interior desse domínio, que permanece oculto e sem significado público, mas a sua aparência externa também é importante para a cidade, e ele aparece no domínio da cidade por meio dos limites entre uma casa e outra. A lei era originalmente identificada com essa linha divisória, [v. lex] que, em tempos antigos, era ainda na verdade um espaço, uma espécie de terra de ninguém, [Coulanges menciona uma antiga lei grega segundo a qual não se permitia que dois edifícios se tocassem (A cidade antiga, Anchor, 1956, p. 63)] entre o privado e o público, abrigando e protegendo ambos os domínios e ao mesmo tempo separando-os um do outro. É verdade que a lei da pólis transcendia essa antiga concepção da qual, no entanto, retinha seu significado espacial original. A lei da cidade-Estado não era nem o conteúdo da ação política (a ideia de que a atividade política é fundamentalmente o ato de legislar, embora de origem romana, é essencialmente moderna e encontrou sua mais alta expressão na filosofia política de Kant), nem um catálogo de proibições, baseado, como ainda o são todas as leis modernas, nos “Não Farás” do Decálogo. Era bem literalmente uma muralha, sem a qual poderia existir um aglomerado de casas, um povoado (asty), mas não uma cidade, uma comunidade política. Essa lei-muralha era sagrada, mas só o recinto amuralhado era político. [v. urbis] Sem ela, seria tão impossível haver um domínio político como existir uma propriedade sem uma cerca que a delimitasse; a primeira resguardava e circundava a vida política, enquanto a outra abrigava e protegia o processo biológico vital da família. [O legislador, portanto, não precisava ser um cidadão; muitas vezes, era convocado de fora. Sua obra não era política; a vida política, porém, só podia começar depois que ele houvesse terminado sua legislação.]

Assim, não é realmente exato dizer que a propriedade privada, antes da era moderna, era vista como condição axiomática para admissão ao domínio público; ela era muito mais que isso. A privatividade era como que o outro lado escuro e oculto do domínio público, e como ser político significava atingir a mais alta possibilidade da existência humana, não possuir um lugar privado próprio (como no caso do escravo) significava deixar de ser humano. [ArendtCH, 8]