Filosofia – Pensadores e Obras

normalização

Um fator decisivo é que a sociedade, em todos os seus níveis, exclui a possibilidade de ação, que outrora era excluída do lar doméstico. Ao invés de ação, a sociedade espera de cada um dos seus membros certo tipo de comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a “normalizar” os seus membros, a fazê-los comportarem-se, a excluir a ação espontânea ou a façanha extraordinária. Com Rousseau, encontramos essas exigências nos salões da alta sociedade, cujas convenções sempre equacionam o indivíduo com a sua posição dentro da estrutura social. O que importa é esse equacionamento com a posição social, e é irrelevante se se trata da efetiva posição na sociedade semifeudal do século XVIII, do título na sociedade de classes do século XIX, ou da mera função na atual sociedade de massas. O surgimento da sociedade de massas, pelo contrário, indica apenas que os vários grupos sociais foram absorvidos por uma sociedade única, tal como as unidades familiares antes deles; com o surgimento da sociedade de massas o domínio do social atingiu finalmente, após séculos de desenvolvimento, o ponto em que abrange e controla, igualmente e com igual força, todos os membros de uma determinada comunidade. Mas a sociedade iguala em quaisquer circunstâncias, e a vitória da igualdade no mundo moderno é apenas o reconhecimento político e jurídico do fato de que a sociedade conquistou o domínio público, e que a distinção e a diferença tornaram-se assuntos privados do indivíduo. [ArendtCH, 6]


“Com a perdição no impessoal já sempre se decidiu sobre o poder-ser fático mais imediato do ser-aí — as tarefas, regras, critérios de medida, a urgência e a amplitude do ser-no-mundo ocupado e preocupado” [HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo, § 54, p. 268]. Essa é a meu ver a passagem mais sintética e mais descritiva daquilo que está em jogo na compreensão heideggeriana do impessoal em Ser e tempo. O ser-aí cotidiano articula sempre existencialmente sentidos pretensamente positivos disponíveis no mundo. Esses sentidos sustentam a facticidade em sua versão sedimentada, de tal modo que o cotidiano antecipa a si mesmo no limite de possibilidades já abertas pelo mundo fático, ou seja, pelo que desde o princípio já era. A consequência disso é que o presente cotidianamente se mostra como repetição não criativa do mundo fático. Tal repetição não criativa da facticidade, então, tem consequências radicais para tudo aquilo que constitui o afã propriamente dito da cotidianidade. Incessantemente no cotidiano, nós nos deparamos com coisas que precisamos aparentemente fazer. Precisamos acordar na hora certa para mantermos a pontualidade no trabalho, precisamos estudar para fazer um concurso, manter o corpo em forma com atividades físicas, ler jornais para permanecermos informados [63] etc. etc. Um ente [Seiende] ontologicamente indeterminado, contudo, não precisa radicalmente fazer coisa alguma, uma vez que não tem por constituição nenhuma necessidade essencial originária. E o mundo circundante que torna pela primeira vez algo necessário, na medida em que a absorção inicial da existência em seu horizonte de sentido tem por correlato imediato a constituição de uma estrutura normatizante e normalizante de nossos comportamentos em geral: ele torna necessário dormir cedo para conseguir suportar o dia seguinte, estabelecer um ritmo de atividade no âmbito de nosso trabalho, realizar uma preparação para o casamento etc. etc. O que o mundo chama de uma tarefa, portanto, determina o que para nós, de saída e na maioria das vezes, aparece como tal. Há aqui toda uma pressão constitutiva das mil tarefas do mundo, dos mil trabalhos a serem realizados, das mil atividades a serem empreendidas. O mundo fático, porém, não determina apenas o que pode aparecer como uma tarefa para nós na cotidianidade. Ele também determina as regras para avaliar se a tarefa foi bem ou mal resolvida, para a orientação da execução propriamente dita da tarefa, para a vinculação normativa de um certo tipo de comportamento [Verhalten]. Ele não diz apenas que precisamos estudar, mas o quanto precisamos estudar; não apenas que precisamos constituir uma família, mas quando precisamos constituí-la etc. Além disso, não é tampouco o ser-aí cotidiano que define a urgência com que uma atividade precisa ser realizada. Se estudar é algo que alguém precisa fazer, como ele precisa estudar e com que urgência ele precisa começar a estudar, isso é algo que não é determinado pelo particular, mas que segue necessariamente orientações prévias oriundas da facticidade. Por fim, a amplitude da tarefa, ou seja, qual a dimensão de sua abrangência, também não é uma questão pessoal, mas se acha estabelecido previamente no horizonte mesmo de determinação da ação. Em suma, todos os nossos modos de relação com os utensílios (ocupação), assim como todos os nossos modos de relação com os outros (preocupação) se acham previamente determinados não em seu caráter factual, mas em seu caráter possível pelo domínio do impessoal, pela predominância da significância sedimentada na [64] constituição mesma de nossas possibilidades de ação em geral, o que se confunde ao mesmo tempo com as nossas possibilidades de ser. Dizer isso implica, ao mesmo tempo, afirmar a cotidianidade como o lugar da indecisão, na medida em que tudo o que é e pode ser já se encontra previamente decidido pelo mundo. Uma vez mais não porque é o mundo que realiza efetivamente cada uma das atividades cotidianas, mas porque é ele que diz o que é ou não possível. Descrever um projeto existencial, com isso, que aponte para a reconquista de si a partir da retomada do caráter de poder-ser do existir, a partir da necessidade de ser quem se é sempre a cada vez na possibilidade finita de ser, não significa aqui outra coisa senão escapar da indecisão na qual existe o ser-aí cotidiano e recuperar o âmbito da decisão. Heidegger descreve logo abaixo essa possibilidade por meio de um recobrar da escolha própria. [CasanovaMH1:63-65]