O aparecimento da sociedade – a ascensão da administração do lar, de suas atividades, seus problemas e dispositivos organizacionais – do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública não apenas turvou a antiga fronteira entre o privado e o político, mas também alterou o significado dos dois termos e a sua importância para a vida do indivíduo e do cidadão, ao ponto de torná-los quase irreconhecíveis. Hoje, não apenas não concordaríamos com os gregos que uma vida vivida na privatividade do que é “próprio ao indivíduo” (idion), fora do mundo do que é comum, é “idiota” por definição, mas tampouco concordaríamos com os romanos, para os quais a privatividade oferecia um refúgio apenas temporário dos assuntos da res publica. O que hoje chamamos de privado é uma esfera de intimidade cujos primórdios podemos remeter aos últimos períodos da civilização romana, embora dificilmente a qualquer período da Antiguidade grega, mas cujas peculiares multiplicidade e variedade eram certamente desconhecidas de qualquer período anterior à era moderna.
Não se trata de mera mudança de ênfase. Na percepção dos antigos, o caráter privativo da privatividade, indicado pela própria palavra, era sumamente importante: significava literalmente um estado de encontrar-se privado de alguma coisa, até das mais altas e mais humanas capacidades do homem. Quem quer que vivesse unicamente uma vida privada – um homem que, como o escravo, não fosse admitido para adentrar o domínio público ou que, como o bárbaro, tivesse escolhido não estabelecer tal domínio – não era inteiramente humano. Hoje não pensamos mais primeiramente em privação quando empregamos a palavra “privatividade” e isso em parte se deve ao enorme enriquecimento da esfera privada por meio do moderno individualismo. Não obstante, parece ainda mais importante o fato de que a privatividade moderna é pelo menos tão nitidamente oposta ao domínio social – desconhecido dos antigos, que consideravam o seu conteúdo como assunto privado – quanto do domínio político propriamente dito. O fato histórico decisivo é que a privatividade moderna, em sua função mais relevante, a de abrigar o que é íntimo, foi descoberta não como o oposto da esfera política, mas da esfera social, com a qual é, portanto, mais próxima e autenticamente relacionada. [ArendtCH, 6]