Filosofia – Pensadores e Obras

presente e passado

Este «antes», que não é a mais antiga presença do seu (e do nosso) presente, não no-lo desvela a História, [342] pois esta se define precisamente pela sua forçada resignação a deixar o passado fora de si. Isto, que pode parecer paradoxal ou, pelo menos, bastante insólito para quem persiste em considerar a História como conhecimento do passado, não é insólito nem paradoxal para quem já se acomodou à ideia que ela se põe fora de si, quando não encalça as pisadas da presença do presente.

Antes de prosseguir, tenho de repetir-me, o que não é de mais, pensando que não calcamos, aqui, a solidez da rotina. Dentro desta presença, ou presente a esta presença, há um atual, que é presença próxima, e um antigo, que é presença distante, mas ambas as presenças são-no de um presente que não é instante pontual, mas a dilatada in-stância do «antes» no «depois» (repare-se que «antigo» é o latino antiquus ou anticus, e que este deriva de ante). Lastimo; mas não posso mais dispensar-me de explicitar o que está implícito nesse «presente», cuja presença a História persegue, cuja presença é desvelamento do próprio ser da História.

Presente é o Homem. Presença do presente é presença do Homem no Mundo; presente que se denuncia pela recusa de um mundo que, miticamente falando, lhe fora dado com a mesma gratuidade com que um mundo foi dado à águia e à serpente, ao cervo e ao leão. Presente é o Homem. Presente é o Homem que, sobre e contra este mundo dos outros, vai construindo o seu, e que a si próprio se cria, enquanto e porquanto constrói a sua ambiência própria. Presente é o Homem, esse inimigo inexorável da vida sua e de todos os seres viventes. Presente é o Homem, que, só em pensá-la, se faz absoluto soberano da natureza. Presente é o Homem, artífice de todos os artifícios, não só dos artifícios de madeira natural das florestas, e de blocos de mármore da montanha, mas também de outros bem maiores, que são os de um espírito divorciado da natureza, que se avolumam e agigantam em poderosas redes conceituais. Presente é o Homem, que só se afirma, negando, que só aceita, recusando, que só constrói, destruindo. Presente é o Homem, e a História faz-se presença da positividade do reverso dessa moeda corrente cujo anverso é a negação, a repulsa e a recusa devastadoras. Carregamos nas cores sombrias que tingem a figura da rejeição hominizante, pois, se agora nos voltamos para a presença do passado, fazemo-lo já na convicção de que o passado se constitui desses rejeitos necessários, necessariamente rejeitados para que se abrisse espaço e tempo ao projeto que designamos por «homem-presente à presença do presente», isto é, presente à presença de si mesmo, o que, no fundo, equivale a nomear o projeto da historicidade. [343]

Então, sempre é certo que o passado não é objeto da História. E que, sendo a historicidade o corpo vivo da presença do presente, a presença do passado vem a ser aquele limite da presença do presente, de que antes falávamos, sem que pudéssemos designá-lo, ainda, em sua inteira verdade. Também agora nos é dado acrescentar que o limite não é apenas o «lugar» da exaustão da presença do presente, e que a exaustão é dupla: onde a presença do presente se exaure, aí se exaure também a presença do passado. O limite é da ordem dos confins: no mesmo «lugar» confinam as duas presenças, extenuadas. Daí que tão fácil tivesse sido pensar-se que a História tem por objeto o conhecimento do passado: este reside a um passo do antigo, mas esse passo nunca a História o deu, nunca poderá dá-lo, como jamais ninguém dará o passo que transponha a distância para a lonjura, e o agora para o outrora. [EudoroMito:343-344]