abstrakten Vorstellungen
A diferença capital entre todas as nossas representações é a entre intuitivas e abstratas. Estas últimas constituem apenas uma classe de representações, os conceitos – que são sobre a face da terra propriedade exclusiva do homem, cuja capacidade para formulá-los o distingue dos animais e desde sempre foi nomeada razão. [Unicamente Kant tornou confuso este conceito. Para uma discussão remeto ao apêndice deste livro, bem como aos “Problemas fundamentais da ética”, Fundamento da moral §6, p 145-54, 1.ed] Mais adiante consideraremos tais REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS por si mesmas; antes, porém, falaremos exclusivamente das representações intuitivas. Estas abrangem todo o mundo visível, ou a experiência inteira, ao lado das suas condições de possibilidade. Trata-se, como dito, de uma descoberta muito importante de Kant o fato de que justamente semelhantes condições, formas do mundo visível, o mais universal em sua percepção, o elemento comum a todos os seus fenômenos, isto é, tempo e espaço, possam ser não apenas pensados in abstracto por si e separados do seu conteúdo, mas também intuídos imediatamente. Intuição que não é como um fantasma, extraído por repetição da experiência, mas tão independente desta que, ao contrário, a experiência tem antes de ser pensada como dependente dela, visto que as propriedades do espaço e do tempo, conhecidas a priori pela intuição, valem para toda experiência possível como leis com as quais, na experiência, tudo tem de concordar. Eis por que, no meu ensaio sobre o princípio de razão, considerei o tempo e o espaço, na medida em que são intuídos puramente e vazios de conteúdo, uma classe especial de representações que subsistem por si mesmas. De extrema importância é a propriedade descoberta por Kant de que justamente essas formas universais da intuição são [47] intuíveis por si, independentes da experiência, e cognoscíveis segundo sua inteira conformidade a leis, nisso baseando-se a matemática com sua infalibilidade. Contudo, uma propriedade não menos digna de consideração das mesmas é que, aqui, o princípio de razão, que determina tanto a experiência como lei de causalidade e motivação quanto o pensamento como lei de fundamentação dos juízos, assume uma figura inteiramente peculiar, à qual dei o nome de princípio de razão de ser, que, no tempo, é a sequência de seus momentos e, no espaço, é a posição de suas partes que se determinam reciprocamente ao infinito. SMVR1 Livro I §3
Contudo, guardemo-nos do grande mal-entendido de que, por ser a intuição intermediada pelo conhecimento da causalidade, existe uma relação de causa e efeito entre sujeito e objeto. Antes, a mesma só tem lugar, sempre, entre objeto imediato e mediato, sempre, pois, apenas entre objetos. Precisamente sobre aquela pressuposição falsa assenta-se a tola controvérsia acerca da realidade do mundo exterior, na qual se enredam [55] dogmatismo e ceticismo, o primeiro entrando em cena ora como realismo, ora como idealismo. O realismo põe o objeto como causa, e o efeito dele no sujeito. O idealismo fichtiano faz do objeto um efeito do sujeito. Como, entretanto – no que nunca é demais insistir –, entre sujeito e objeto não há relação alguma segundo o princípio de razão, segue-se que nem uma nem outra das duas afirmações pode ser comprovada, e o ceticismo faz ataques vitoriosos a ambas. De fato, visto que a lei de causalidade já precede como sua condição a intuição e a experiência, e, assim, não pode ser aprendida desta (como o queria Hume); segue-se também que sujeito e objeto já precedem como primeira condição a qualquer experiência, logo também precedem ao princípio de razão em geral, já que este é apenas a forma de todo objeto, a maneira universal de sua aparição: o objeto, não obstante, já pressupõe sempre o sujeito: por isso entre os dois não pode haver relação alguma de fundamento a consequência. Meu ensaio sobre o princípio de razão mostrou justamente isso. O conteúdo do princípio de razão é a forma essencial de todo objeto e precede a ele como tal, ou seja, é a maneira universal de todo ser-objeto. Mas, desse modo, o objeto pressupõe em toda parte o sujeito como seu correlato necessário. Sujeito que permanece sempre fora do domínio de validade do referido princípio. A controvérsia sobre a realidade do mundo exterior baseia-se exatamente sobre a falsa extensão da validade do princípio de razão ao sujeito. Partindo desse mal-entendido ela nunca pôde entender a si mesma. O dogmatismo realista, ao considerar a representação como efeito do objeto, quer separar representação e objeto, que no fundo são uma coisa só, e assumir uma causa completamente diferente da representação, um objeto em si independente do sujeito: algo no todo impensável, pois, precisamente como objeto, este já pressupõe sempre de novo o sujeito e permanece, por isso, sempre apenas uma sua representação. Contrapõe-se a ele o ceticismo, sob a mesma falsa pressuposição de que na representação se tem todas as vezes apenas o efeito, nunca a causa, portanto conhece-se apenas o fazer-efeito, jamais o ser dos objetos. Fazer-efeito que, contudo, não poderia ter semelhança alguma com o ser, todavia falsamente assumida, já que a lei de causalidade é primeiro tomada a partir da experiência, cuja realidade deve novamente assentar nela. Em face desses procedimentos, tem-se de [56] fazer uma correção de ambos, primeiro com o ensinamento de que objeto e representação são uma única e mesma coisa; em seguida, que o ser dos objetos intuíveis é precisamente o seu fazer-efeito, exatamente neste consistindo a efetividade das coisas, e que exigir a existência do objeto exteriormente à representação do sujeito, bem como um ser da coisa efetiva diferente de seu fazer-efeito, não possui sentido algum e constitui uma contradição. Eis por que o conhecimento da maneira de fazer efeito de um objeto intuído o esgota como objeto mesmo, isto é, como representação, fora da qual nada resta dele para o conhecimento. Neste sentido, o mundo intuído no espaço e no tempo, a dar sinal de si como causalidade pura, é perfeitamente real, sendo no todo aquilo que anuncia de si – e ele se anuncia por completo e francamente como representação, ligada conforme a lei de causalidade. Trata-se da realidade empírica do mundo. Por sua vez, a causalidade está apenas no entendimento e para o entendimento; daí todo o mundo que faz-efeito, isto é, efetivo, ser sempre como tal condicionado pelo entendimento, nada sendo sem ele. Porém, não exclusivamente por esse motivo, mas já porque, em geral, objeto algum se deixa pensar, isento de contradição, sem o sujeito, temos de negar absolutamente ao dogmático a sua explanação da realidade do mundo exterior como algo independente do sujeito. O mundo inteiro dos objetos é e permanece representação, e precisamente por isso é, sem exceção e em toda a eternidade, condicionado pelo sujeito, ou seja, possui idealidade transcendental. Desta perspectiva não é uma mentira nem uma ilusão. Ele se oferece como é, como representação, e em verdade como uma série de representações cujo vínculo comum é o princípio de razão. Assim, o mundo, como tal, é compreensível para o entendimento saudável, mesmo em sua significação mais íntima, e lhe fala uma linguagem perfeitamente clara. Meramente ao espírito pervertido por sofismas pode ocorrer disputar acerca da sua realidade, o que todas as vezes ocorre pelo uso incorreto do princípio de razão, que de fato liga todas as representações entre si, não importa o seu tipo, mas de modo algum as liga com o sujeito, ou com algo que não seria sujeito nem objeto mas mero fundamento do objeto; um absurdo, visto que apenas objetos podem ser fundamento e, em verdade, sempre de outros objetos. Caso se investigue mais a fundo a origem dessa polêmica acerca da realidade do [57] mundo exterior, então se encontrará que, além daquele falso uso do princípio de razão naquilo que se encontra fora de seu domínio, ainda Há uma confusão especial envolvendo as suas figuras. Noutros termos, a figura que ele tem exclusivamente em referência aos conceitos ou REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS é aplicada às representações intuitivas, aos objetos reais, e, assim, exige-se um fundamento do conhecer para objetos que não podem ter outro senão um fundamento do devir. [Cf minha nota ao §3] As REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS, os conceitos ligados em juízos, são regidas com certeza pelo princípio de razão, na medida em que cada uma delas tem seu valor, sua validade, sua existência inteira, aqui denominada verdade, única e exclusivamente mediante a relação do juízo com algo fora dele, seu fundamento de conhecimento, ao qual, portanto, sempre tem de ser referida. Os objetos reais, as representações intuitivas, ao contrário, são regidos pelo princípio de razão não como princípio de razão de conhecer, mas de devir, como lei de causalidade. Cada um de tais objetos paga o seu tributo a ele pelo fato de ter vindo-a-ser, isto é, ter surgido como efeito de uma causa. A exigência, aqui, de um fundamento de conhecimento não tem validade alguma, nem sentido, mas pertence a uma classe completamente diferente de objetos. Em função disso, o mundo intuitivo, por mais que se permaneça nele, não desperta escrúpulo nem dúvida no contemplador. Aqui não há erro nem verdade (confinados ao domínio abstrato da reflexão). Aqui o mundo se dá aberto aos sentidos e ao entendimento, com ingênua verdade como aquilo que é, como representação intuitiva, a desenvolver-se legalmente no vínculo da causalidade. SMVR1 Livro I §5
Os conceitos [REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS] formam uma classe particular de representações, encontrada apenas no espírito do homem, e diferente toto genere das representações intuitivas consideradas até agora. Não podemos, por isso, jamais alcançar um conhecimento evidente de sua essência, mas tão-somente um conhecimento abstrato e discursivo. Seria, pois, absurdo exigir que eles fossem comprovados pela experiência – na medida em que esta é compreendida como o mundo externo real, que justamente é representação intuitiva – ou devessem ser trazidos perante os olhos, ou perante a fantasia como os objetos intuíveis. Os conceitos permitem apenas pensar, não intuir, e tão-somente os efeitos que o homem produz por eles são objetos da experiência propriamente dita. É o caso da linguagem, da ação planejada e refletida, da ciência e de tudo o que delas resulta. A fala, como objeto da experiência externa, manifestamente não é outra coisa senão um telégrafo bastante aperfeiçoado que comunica sinais arbitrários com grande rapidez e nuances sutis. Que significam, porém, semelhantes sinais? Como são interpretados? Por acaso, quando alguém fala, traduzimos o seu discurso instantaneamente em imagens da fantasia, que voam e se movimentam diante de nós com rapidez relâmpago, encadeadas, transformadas e matizadas de acordo com a torrente das palavras e suas flexões gramaticais? Que tumulto, então, não ocorreria em nossa cabeça durante a audição de um discurso ou a leitura de um livro! Mas de modo algum se passa dessa forma. O sentido do discurso é imediatamente intelectualizado, concebido e determinado de maneira precisa, sem que, via de regra, fantasmas se imiscuam. E a razão que fala para a razão, sem sair de seu domínio, e o [86] que ela comunica e recebe são conceitos abstratos, representações não intuitivas, as quais, apesar de formadas uma vez para sempre e em número relativamente pequeno, abarcam, compreendem e representam todos os incontáveis objetos do mundo efetivo. Por aí é explicável por que um animal nunca pode falar e inteligir, embora possua o instrumento da linguagem e também as representações intuitivas: justamente porque as palavras indicam aquela classe de representações inteiramente peculiar, cujo correlato subjetivo é a razão, não possuindo, assim, nenhum sentido e referência para os animais. Desse modo, a linguagem, como qualquer outro fenômeno que creditamos à razão e como tudo o que diferencia o homem do animal, pode ser explicitada por esta única e simples fonte: os conceitos, REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS e universais, não individuais, não intuitivas no tempo e no espaço. Apenas em casos particulares passamos dos conceitos à intuição, formando fantasmas como intuitivos representantes dos conceitos, aos quais, todavia, nunca são adequados. Isto mereceu abordagem especial no meu ensaio sobre o princípio de razão, §28, pelo que me dispenso aqui de repetição. Com o que foi ali dito, compare-se o que escreveram Hume no décimo segundo dos seus Philosophical essays, p 244, e Herder em sua Metacrítica (de resto um livro ruim), parte I, p 274 (a Ideia platônica, possível pela união de fantasia e razão, constituirá o tema principal do terceiro livro do presente escrito). SMVR1 Livro I §9
Embora, pois, os conceitos sejam desde o fundamento diferentes das representações intuitivas, ainda assim se encontram numa relação necessária com estas, sem as quais nada seriam. Relação que, por conseguinte, constitui toda a sua essência e existência. A reflexão é necessariamente cópia, embora de tipo inteiramente especial, é repetição do mundo intuitivo primariamente figurado num estofo completamente heterogêneo. Por isso os conceitos podem ser denominados de maneira bastante apropriada representações de representações. O princípio de razão possui entre estas uma figura própria; e, assim como a figura pela qual ele rege uma classe de representações também sempre constitui e esgota a essência completa dela, na medida em que são representações; assim como, e isso já vimos, o tempo é absolutamente sucessão e nada mais, o espaço é absolutamente situação e nada mais, a matéria é absolutamente causalidade e nada mais; – [87] assim também a essência completa dos conceitos, ou da classe de REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS, reside exclusivamente na relação que o princípio de razão exprime nelas. Ora, como tal relação é a do fundamento de conhecimento, segue-se que a representação abstrata possui sua essência, inteira e exclusivamente, em sua relação com uma outra representação que é seu fundamento de conhecimento. Esta última pode ser de novo um conceito, ou representação abstrata, que por sua vez também pode ter um semelhante fundamento de conhecimento; mas não ao infinito, pois a série de fundamentos de conhecimento tem de findar num conceito que tem seu fundamento no conhecimento intuitivo. Em verdade, o mundo todo da reflexão estriba sobre o mundo intuitivo como seu fundamento de conhecer. Eis por que a classe das REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS possui como distintivo em relação à classe das representações intuitivas o fato de nestas o princípio de razão sempre exigir apenas uma referência a outra representação da mesma classe, enquanto naquelas exige, ao fim, uma referência a uma representação de outra classe. SMVR1 Livro I §9
Não é uma característica essencial do conceito, como muitas vezes se diz, que ele abranja muito em si, ou seja, que muitas outras representações intuitivas, ou mesmo abstratas estejam para ele na relação do fundamento de conhecimento, isto é, sejam pensadas por ele. Eis aí uma sua característica secundária e derivada, que, embora exista sempre potencialmente, não tem de se dar sempre, e provém de o conceito ser representação de uma representação, isto é, possuir sua essência inteira e exclusivamente em sua referência a outra representação. Ora, como ele não é essa representação mesma, a qual muitas vezes pertence a uma outra classe completamente diferente de representações, vale dizer, intuitivas, podendo possuir determinações temporais, espaciais e em geral muitas outras referências que não são pensadas de maneira alguma no conceito, segue-se que muitas representações não essencialmente diferentes são pensadas pelo mesmo conceito, isto é, podem ser nele subsumidas. Só que esse valer para muitas coisas não é uma característica essencial do conceito, mas meramente acidental. Pode haver conceitos mediante os quais um único abjeto real é pensado. Tais conceitos, entretanto, são REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS e universais e de modo algum particulares e intuitivas. Desse tipo, por exemplo, é o conceito que alguém faz de uma cidade determinada, porém conhecida só pela geografia. Embora apenas essa cidade seja aí pensada, o seu conceito poderia possivelmente servir para muitas outras cidades que se diferenciam apenas em certos aspectos. Logo, um conceito possui generalidade não porque é abstraído de muitos objetos, mas, ao contrário, justamente porque a generalidade, ou seja, a não determinação do particular, é essencial ao conceito como representação abstrata da razão, apenas por isso podem diversas coisas ser pensadas mediante um mesmo conceito. SMVR1 Livro I §9
A influência que o conhecimento, enquanto médium dos motivos, tem não só sobre a vontade mas também sobre o seu aparecimento em ações fundamenta também a diferença capital entre o agir do homem e o do animal, na medida em que o modo de conhecimento de ambos é diverso. De fato, o animal possui apenas representações intuitivas, o homem, devido à [384] razão, ainda possui REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS, conceitos. Embora animal e homem sejam determinados por motivos com igual necessidade, o homem, entretanto, tem a vantagem de uma decisão eletiva. Esta amiúde foi vista como uma liberdade da vontade em atos individuais; contudo, é apenas a possibilidade de um conflito duradouro entre vários motivos, até que o mais forte determine com necessidade a vontade. Para isso os motivos têm de ter assumido a forma de pensamentos abstratos, pois só por estes é possível uma deliberação propriamente dita, isto é, uma avaliação de fundamentos opostos para o agir. No caso do animal, a escolha só pode se dar entre motivos presentes intuitivamente; por conta disso, está limitada à esfera estreita de sua apreensão atual e intuitiva. Por conseguinte, a necessidade na determinação da vontade pelo motivo, igual àquela no efeito pela causa, só pode ser exibida intuitiva e imediatamente nos animais, porque aqui o espectador tem os motivos tão imediatamente diante dos olhos quanto o seu efeito, enquanto nos homens os motivos quase sempre são REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS, inacessíveis ao espectador, sendo que até mesmo ao agente é ocultada a necessidade do seu efeito por detrás do conflito delas. Apenas in abstracto podem várias representações se encontrar na consciência uma ao lado da outra, como juízos e séries de conclusão, e, então, fazer efeito reciprocamente, livres de qualquer determinação temporal, até que a mais forte domine as restantes e determine a vontade. Eis aí a perfeita decisão eletiva, ou capacidade de deliberação, uma vantagem do homem em face dos animais, devido à qual se lhe atribuiu a liberdade da vontade, na suposição de que seu querer era um mero resultado das operações do intelecto, isento de um impulso determinado a lhe servir de base; quando, em verdade, a motivação só faz efeito se fundamentada, e sob a pressuposição de um impulso determinado, que no seu caso é individual, ou seja, um caráter. Uma exposição detalhada dessa capacidade de deliberação e da diferença entre o arbítrio animal e humano por ela produzidos se encontra no meu Os dois problemas fundamentais da ética (I.ed., p 35 e ss.), ao qual portanto remeto aqui o leitor. Ademais, semelhante capacidade de deliberação no homem também pertence às coisas que tornam a sua existência tão mais atormentada que a do animal; pois em geral nossas grandes dores não se situam no presente, como representações intuitivas [385] ou sentimento imediato, mas na razão, como conceitos abstratos, pensamentos atormentadores, dos quais os animais estão completamente livres, pois vivem apenas no presente, portanto num estado destituído de preocupação e digno de inveja. SMVR1 Livro IV §55
Ao lado do caráter inteligível e do empírico, deve-se ainda mencionar um terceiro, diferente dos dois anteriores, a saber, o caráter adquirido, o qual se obtém na vida pelo comércio com o mundo e ao qual é feita referência quando se elogia uma pessoa por ter caráter, ou se a censura por não o ter, – Talvez se pudesse naturalmente supor que, como o caráter empírico, enquanto fenômeno do inteligível, é inalterável, e, tanto quanto qualquer fenômeno natural, é em si consequente, o homem também sempre teria de aparecer igual a si mesmo e consequente, com o que não seria necessário adquirir artificialmente, por experiência e reflexão, um caráter. Mas não é o caso. Embora sempre sejamos as mesmas pessoas, nem sempre nos compreendemos. Amiúde nos desconhecemos, até que, em certo grau, adquirimos o autoconhecimento. O caráter empírico, como simples impulso natural, é em si a-racional, e sua exteriorização é ademais perturbada pela razão, e tanto mais quanto mais alguém possui maior clareza [391] de consciência e força de pensamento, a fazerem pairar diante de si aquilo que diz respeito ao homem em geral enquanto caráter da espécie, em termos tanto de desejo, quanto de realizações. No entanto, dessa maneira, torna-se difícil a intelecção daquilo que, devido à individualidade, uma pessoa quer e pode em meio a tantas coisas. Dentro de si encontra disposições para todas as diferentes, aspirações e habilidades humanas: contudo, os diferentes graus destas na própria individualidade não se tornam claros sem o concurso da experiência. Ora, se a pessoa segue apenas as aspirações que são conformes ao seu caráter, sente, em certos momentos e disposições particulares, estímulo para aspirações exatamente contrárias e incompatíveis entre si: nesse sentido, se quiser seguir aquelas primeiras sem incômodo, estas últimas têm de ser completamente refreadas. Pois, assim como nosso caminho físico sobre a terra não passa de uma linha, em vez de uma superfície, assim também, na vida, caso queiramos alcançar e possuir uma coisa, temos de renunciar e abandonar à esquerda e à direita inumeráveis outras. Se não podemos nos decidir a fazer isso mas, igual a crianças no parque de diversões, estendemos a mão a tudo o que excita e aparece à nossa frente, então esta é a tentativa perversa para transformar a linha do nosso caminho numa superfície. Andamos em zigue-zague, ao sabor dos ventos, sem chegar a lugar algum. – Ou, para usar outra comparação: assim como, de acordo com a doutrina do direito de Hobbes, cada um de nós tem originariamente o direito a todas as coisas, mas não o exclusivo a cada uma delas, e no entanto se pode obter o direito exclusivo a coisas individuais renunciando-se ao direito a todas as demais, enquanto os outros fazem o mesmo em relação ao que escolheram; exatamente assim também se passa na vida, quando só podemos seguir com seriedade e sucesso alguma aspiração determinada, seja por prazer, honra, riqueza, ciência, arte, ou virtude, após descartarmos todas as aspirações que lhe são estranhas, renunciando a tudo o mais. Para isso o mero querer e a mera habilidade em fazer não são suficientes em si mesmos, mas um homem também precisa saber o que quer, e saber o que pode fazer. [392] Tão-somente assim mostrará caráter, para então poder consumar algo consistente. Antes que chegue a este ponto, apesar da consequência natural do caráter empírico, ainda é sem caráter; e, embora no todo permaneça fiel a si e tenha e siga o próprio caminho guiado por seu demônio interior, descreverá não uma linha reta, mas sim uma torta e desigual, hesitando, vagueando, voltando atrás, cultivando para si arrependimento e dor. Tudo porque nas grandes e pequenas coisas vê diante de si o tanto quanto é possível e alcançável pelo homem em geral, sem saber todavia qual parte de tudo isso é conforme à sua natureza, e realizável apenas por si, sim, fruível apenas por si. Dessa forma, a muitos invejará em virtude de posição e condição que, no entanto, convêm exclusivamente ao caráter deles, não ao seu, e nas quais se sentiria antes infeliz, até mesmo sem as conseguir suportar. Pois assim como o peixe só se sente bem na água, o pássaro no ar, a toupeira debaixo da terra, todo homem só se sente bem na sua atmosfera apropriada. Do mesmo modo, por exemplo, o ar da corte não é respirável por todos. Por falta de intelecção suficiente nessa ordem das coisas, muitos fazem os mais diversos e fracassados tipos de tentativa, violam o próprio caráter no particular e ainda têm de se render novamente a ele no todo: aquilo que conseguem tão penosamente contra a própria natureza não lhes dá prazer algum. O que assim aprendem permanece morto. Até mesmo do ponto de vista ético, um ato demasiado nobre para o seu caráter e nascido não de um impulso puro, imediato, mas de um conceito, de um dogma perderá todo mérito até mesmo aos seus olhos num posterior arrependimento egoístico. Velle non discitur. Assim como só pela experiência nos tornamos cônscios da inflexibilidade do caráter alheio e até então acreditávamos de modo pueril poder através de REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS, pedidos e súplicas, exemplos e nobreza de caráter fazê-lo abandonar seu caminho, mudar seu modo de agir, despedir-se de seu modo de pensar, ou até mesmo ampliar suas capacidades; assim também se passa conosco. Temos primeiro de aprender pela experiência o que queremos e o que podemos fazer: pois até então não o sabemos, somos sem caráter, e muitas vezes, por meio de duros golpes exteriores, temos de retroceder em nosso caminho, – Mas, se finalmente aprendemos, então alcançamos o que no mundo se chama caráter, o caráter adquirido. Este nada mais é senão [393] o conhecimento mais acabado possível da própria individualidade. Trata-se do saber abstrato, portanto distinto das qualidades invariáveis do nosso caráter empírico» bem como da medida e direção das nossas faculdades espirituais e corporais, portanto dos pontos fortes e fracos da nossa individualidade. Isso nos coloca na condição de agora guiar, com clareza de consciência e metodicamente, o papel para sempre invariável de nossa pessoa, que antes naturalizávamos sem regra, e preencher, segundo a instrução de conceitos fixos, as lacunas provocadas por humores e fraquezas. O modo de agir necessário e conforme à nossa natureza individual foi doravante trazido à consciência, em máximas distintas e sempre presentes, segundo as quais nos conduziremos de maneira tão clarividente como se fôramos educados sem erro provocado pelos influxos passageiros da disposição, ou da impressão do momento presente, sem a atrapalhação da amargura ou doçura de uma miudeza encontrada no meio do caminho, sem hesitação, sem vacilação, sem inconsequências. Não mais, feito noviços, vamos esperar, ensaiar, tatear para ver o que de fato queremos e o que estamos aptos a fazer, mas já o sabemos de uma vez por todas e temos apenas de em cada escolha aplicar princípios universais em casos particulares, para assim rápido tomar a decisão. Conhecemos nossa vontade em geral e não nos permitimos ser seduzidos por disposições ou exigências exteriores em vista de decidir no particular o que iria contrariar a vontade em geral. Conhecemos, portanto, o gênero e a medida de nossos poderes e fraquezas, economizando assim muita dor. Pois, propriamente dizendo, nenhum prazer é comparável ao do sentimento e uso das próprias faculdades, e a dor suprema é a carência percebida de faculdades lá onde são necessárias. Caso tenhamos investigado onde se encontram nossos pontos fortes e fracos, desenvolveremos, empregaremos, usaremos de todas as maneiras os nossos dons naturais mais destacados e sempre nos direcionaremos para onde são proveitosos e valiosos, evitando por inteiro e com auto-abnegação aqueles esforços em relação aos quais temos pouca aptidão natural. Guardaremo-nos de tentar aquilo que não nos permitirá ser bem-sucedidos. Apenas quem alcançou semelhante estado sempre será inteiramente a si mesmo com plena clareza de consciência e nunca trairá a si nos momentos cruciais, já que sempre soube o que podia esperar de si. SMVR1 Livro IV §55
Nesse sentido, portanto, o antigo filosofema sobre a liberdade da vontade, sempre contestado mas também sempre defendido não é sem fundamento, também não é sem sentido e referência o dogma da Igreja sobre o efeito da graça e do renascimento. Agora, porém, vemos inesperadamente ambos coincidirem em um, e podemos doravante também compreender em que sentido o admirável Malebranche podia afirmar: “La liberté est un mystère” [A liberdade é um mistério], e tinha razão. Pois exatamente aquilo que os místicos cristãos denominam efeito da graça e renascimento é para nós a única e imediata exteriorização da liberdade da vontade. Esta só entra em cena quando a Vontade, após alcançar o conhecimento de sua essência em si, obter dele um quietivo, quando então é removido o efeito dos motivos, os quais residem em outro domínio de conhecimento cujos objetos são apenas fenômenos. – Portanto, a possibilidade de a liberdade exteriorizar-se a si mesma é a grande vantagem do homem, ausente no animal, porque a condição dela é a clarividência da razão, que o habilita a uma visão panorâmica do todo da vida, livre da impressão do presente. O animal está destituído de qualquer possibilidade de liberdade, assim como da possibilidade de uma real, logo com clareza de consciência, decisão eletiva segundo um prévio e completo conflito de motivos, que para tal fim teriam de ser REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS. Por conseguinte, exatamente com a mesma necessidade com a qual a pedra cai para a terra é que o lobo faminto crava os dentes na carne da presa, sem a possibilidade de conhecer que ele é tanto o caçador quanto a caça. necessidade é o reino da natureza; liberdade é o reino da graça. SMVR1 Livro IV §70
Ora, como operação essencial do entendimento, por meio de suas doze categorias, é repetidas vezes citada “a ligação do diverso da intuição”. No entanto, nunca é suficientemente explanado, nem mostrado, o que é esse diverso da intuição, antes da ligação no entendimento. Ora, o tempo e o espaço, este nas suas três dimensões, são continua, isto é, todas as suas partes não são originariamente separadas, mas ligadas eles são as formas universais de nossa intuição; assim, tudo o que se expõe (é dado) neles, também já aparece originariamente como continuum, noutros termos, suas partes já entram em cena ligadas, e não necessitam de ligação adicional do diverso. Se, porém, se desejasse interpretar aquela unificação do diverso da intuição dizendo que refiro as diversas impressões sensoriais de um objeto somente a este único, portanto, por exemplo, quando vejo um sino reconheço que aquilo a afetar meu olho como amarelo, minhas mãos como liso e duro, meu ouvido como sonoro, é apenas um e mesmo corpo – então isso é, antes, uma consequência do conhecimento a priori do nexo causai (esta real e única função do entendimento) em virtude do qual todas aquelas diferentes impressões dos órgãos dos sentidos me conduzem tão-somente a uma causa comum das mesmas, ou seja, à natureza do corpo diante de mim, de maneira que meu entendimento, a despeito da diferença e pluralidade dos efeitos, apreende a unidade da causa como um objeto único que se expõe intuitivamente dessa forma. – Na bela recapitulação de seu ensinamento, que Kant dá na Crítica da razão pura p 719-26 (V, 747-754), ele explica as categorias talvez mais claramente que em qualquer outro lugar, vale dizer, como “a mera regra da síntese do que a percepção pode dar a posteriori”. Parece que algo pairava diante dele, semelhante ao fato de, na construção do triângulo, os ângulos darem a regra da composição das linhas: pelo menos nesta imagem se pode melhor esclarecer o que ele diz da função das categorias. O prefácio aos Princípios metafísicos da ciência da natureza contém uma longa nota que, igualmente, fornece uma explicação das categorias, asseverando que elas “em nada diferem das ações formais do entendimento no julgamento”, a não ser pelo fato de que, no último, sujeito e predicado sempre poderem trocar de posição. Em seguida, na mesma passagem, o juízo é em geral definido como “uma ação mediante a qual representações dadas primeiro se [561] tornam conhecimento de um objeto”. Ora, em conformidade com isso, os animais, por não julgarem, também não poderiam conhecer objeto algum. Em geral há, de acordo com Kant, apenas conceitos de objetos, não intuições. Eu, ao contrário, digo: objetos existem primariamente apenas para a intuição, e conceitos são sempre abstrações dessa intuição. Por isso o pensamento abstrato tem de orientar-se exatamente segundo o mundo encontrado na intuição, pois só a referência a este fornece conteúdo aos conceitos, e não podemos admitir para os conceitos outra forma determinada a priori senão a capacidade para a reflexão em geral, cuja essência é a formação de conceitos, isto é, de REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS, não intuitivas – o que constitui a única função da razão, como mostrei no primeiro livro desta obra. Peço, portanto, que atiremos onze categorias janela afora e conservemos tão-somente a de causalidade, porém reconhecendo que sua atividade já é condição da intuição, a quàl portanto não é meramente sensual, mas intelectual, e que o objeto assim intuído, o objeto da experiência, é uno com a representação, da qual ainda deve ser distinguida só a coisa-em-si. SMVR1 Apêndice §71
Teria ainda muitas particularidades a refutar no prosseguimento ulterior da analítica transcendental, temo todavia esgotar a paciência do leitor, e deixo-as portanto para a sua reflexão. Mas sempre de novo se nos apresenta na Crítica da razão pura aquele erro principal e fundamental de Kant, que acima censurei detidamente: a completa ausência de distinção entre o conhecimento abstrato, discursivo, o intuitivo. Isso espalha uma contínua sombra sobre toda a teoria kantiana da faculdade de conhecimento e nunca permite ao leitor saber em algum momento sobre o que de fato se fala, de tal maneira que, em vez compreender, sempre apenas suspeita, procura compreender o que foi dito a cada vez alternadamente acerca do pensamento e da intuição, porém sempre ficando em suspense. Aquela inacreditável ausência de lucidez sobre a essência das representações intuitiva e abstrata leva Kant, no capítulo “da distinção de todos os objetos em fenômenos e númenos”, como logo mais adiante discutirei em detalhe, à monstruosa afirmação de que sem pensamento, portanto sem conceitos abstratos, não haveria de modo algum conhecimento de um objeto, e que a intuição, visto que não é pensamento, também não é conhecimento algum, e em geral não passa de uma mera afecção da sensibilidade, uma mera sensação! Mais ainda, que intuição sem conceito é totalmente [591] vazia; conceito sem intuição, entretanto, é sempre ainda alguma coisa (p 253; V, 309). Isto é exatamente o oposto da verdade; justamente porque os conceitos obtêm toda significação, todo conteúdo, exclusivamente a partir de sua referência às representações, das quais foram abstraídos, extraídos, isto é, formados pelo abandono de todo inessencial. Por isso, se deles é retirado o alicerce da intuição, são vazios e nulos. Intuições, ao contrário, têm em si mesmas grande e imediata significação (nelas, de fato, objetiva-se a coisa-em-si). Fazem o papel de si mesmas, expressam a si, não têm conteúdo meramente emprestado, como os conceitos. Pois sobre elas impera o princípio de razão apenas como lei de causalidade, e determina, enquanto tal, apenas sua posição no espaço e no tempo, sem condicionar todavia seu conteúdo e seu significado, como no caso dos conceitos, em relação aos quais o referido princípio vale como fundamento do conhecer. De resto, parece, é como se Kant, exatamente aqui, quisesse propriamente distinguir a representação intuitiva da abstrata. Ele repreende Leibniz e Locke. O primeiro por ter reduzido tudo às REPRESENTAÇÕES ABSTRATAS, o segundo às representações intuitivas. No entanto, distinção alguma é alcançada e, embora Locke e Leibniz efetivamente tenham cometido esse erro, Kant mesmo cai num terceiro, que inclui os dois erros anteriores, a saber, ter misturado intuitivo e abstrato numa tal extensão que daí nasce um híbrido monstruoso, uma não-coisa, da qual não é possível representação distinta alguma, e que, por conseguinte, só podia confundir, aturdir e pôr em conflito os discípulos. SMVR1 Apêndice §71