Filosofia – Pensadores e Obras

representações intuitivas

intuitiven Vorstellungen

A diferença capital entre todas as nossas representações é a entre intuitivas e abstratas. Estas últimas constituem apenas uma classe de representações, os conceitos – que são sobre a face da terra propriedade exclusiva do homem, cuja capacidade para formulá-los o distingue dos animais e desde sempre foi nomeada razão. [Unicamente Kant tornou confuso este conceito. Para uma discussão remeto ao apêndice deste livro, bem como aos “Problemas fundamentais da ética”, Fundamento da moral §6, p 145-54, 1.ed] Mais adiante consideraremos tais representações abstratas por si mesmas; antes, porém, falaremos exclusivamente das REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS. Estas abrangem todo o mundo visível, ou a experiência inteira, ao lado das suas condições de possibilidade. Trata-se, como dito, de uma descoberta muito importante de Kant o fato de que justamente semelhantes condições, formas do mundo visível, o mais universal em sua percepção, o elemento comum a todos os seus fenômenos, isto é, tempo e espaço, possam ser não apenas pensados in abstracto por si e separados do seu conteúdo, mas também intuídos imediatamente. Intuição que não é como um fantasma, extraído por repetição da experiência, mas tão independente desta que, ao contrário, a experiência tem antes de ser pensada como dependente dela, visto que as propriedades do espaço e do tempo, conhecidas a priori pela intuição, valem para toda experiência possível como leis com as quais, na experiência, tudo tem de concordar. Eis por que, no meu ensaio sobre o princípio de razão, considerei o tempo e o espaço, na medida em que são intuídos puramente e vazios de conteúdo, uma classe especial de representações que subsistem por si mesmas. De extrema importância é a propriedade descoberta por Kant de que justamente essas formas universais da intuição são [47] intuíveis por si, independentes da experiência, e cognoscíveis segundo sua inteira conformidade a leis, nisso baseando-se a matemática com sua infalibilidade. Contudo, uma propriedade não menos digna de consideração das mesmas é que, aqui, o princípio de razão, que determina tanto a experiência como lei de causalidade e motivação quanto o pensamento como lei de fundamentação dos juízos, assume uma figura inteiramente peculiar, à qual dei o nome de princípio de razão de ser, que, no tempo, é a sequência de seus momentos e, no espaço, é a posição de suas partes que se determinam reciprocamente ao infinito. SMVR1 Livro I §3

Contudo, guardemo-nos do grande mal-entendido de que, por ser a intuição intermediada pelo conhecimento da causalidade, existe uma relação de causa e efeito entre sujeito e objeto. Antes, a mesma só tem lugar, sempre, entre objeto imediato e mediato, sempre, pois, apenas entre objetos. Precisamente sobre aquela pressuposição falsa assenta-se a tola controvérsia acerca da realidade do mundo exterior, na qual se enredam [55] dogmatismo e ceticismo, o primeiro entrando em cena ora como realismo, ora como idealismo. O realismo põe o objeto como causa, e o efeito dele no sujeito. O idealismo fichtiano faz do objeto um efeito do sujeito. Como, entretanto – no que nunca é demais insistir –, entre sujeito e objeto não há relação alguma segundo o princípio de razão, segue-se que nem uma nem outra das duas afirmações pode ser comprovada, e o ceticismo faz ataques vitoriosos a ambas. De fato, visto que a lei de causalidade já precede como sua condição a intuição e a experiência, e, assim, não pode ser aprendida desta (como o queria Hume); segue-se também que sujeito e objeto já precedem como primeira condição a qualquer experiência, logo também precedem ao princípio de razão em geral, já que este é apenas a forma de todo objeto, a maneira universal de sua aparição: o objeto, não obstante, já pressupõe sempre o sujeito: por isso entre os dois não pode haver relação alguma de fundamento a consequência. Meu ensaio sobre o princípio de razão mostrou justamente isso. O conteúdo do princípio de razão é a forma essencial de todo objeto e precede a ele como tal, ou seja, é a maneira universal de todo ser-objeto. Mas, desse modo, o objeto pressupõe em toda parte o sujeito como seu correlato necessário. Sujeito que permanece sempre fora do domínio de validade do referido princípio. A controvérsia sobre a realidade do mundo exterior baseia-se exatamente sobre a falsa extensão da validade do princípio de razão ao sujeito. Partindo desse mal-entendido ela nunca pôde entender a si mesma. O dogmatismo realista, ao considerar a representação como efeito do objeto, quer separar representação e objeto, que no fundo são uma coisa só, e assumir uma causa completamente diferente da representação, um objeto em si independente do sujeito: algo no todo impensável, pois, precisamente como objeto, este já pressupõe sempre de novo o sujeito e permanece, por isso, sempre apenas uma sua representação. Contrapõe-se a ele o ceticismo, sob a mesma falsa pressuposição de que na representação se tem todas as vezes apenas o efeito, nunca a causa, portanto conhece-se apenas o fazer-efeito, jamais o ser dos objetos. Fazer-efeito que, contudo, não poderia ter semelhança alguma com o ser, todavia falsamente assumida, já que a lei de causalidade é primeiro tomada a partir da experiência, cuja realidade deve novamente assentar nela. Em face desses procedimentos, tem-se de [56] fazer uma correção de ambos, primeiro com o ensinamento de que objeto e representação são uma única e mesma coisa; em seguida, que o ser dos objetos intuíveis é precisamente o seu fazer-efeito, exatamente neste consistindo a efetividade das coisas, e que exigir a existência do objeto exteriormente à representação do sujeito, bem como um ser da coisa efetiva diferente de seu fazer-efeito, não possui sentido algum e constitui uma contradição. Eis por que o conhecimento da maneira de fazer efeito de um objeto intuído o esgota como objeto mesmo, isto é, como representação, fora da qual nada resta dele para o conhecimento. Neste sentido, o mundo intuído no espaço e no tempo, a dar sinal de si como causalidade pura, é perfeitamente real, sendo no todo aquilo que anuncia de si – e ele se anuncia por completo e francamente como representação, ligada conforme a lei de causalidade. Trata-se da realidade empírica do mundo. Por sua vez, a causalidade está apenas no entendimento e para o entendimento; daí todo o mundo que faz-efeito, isto é, efetivo, ser sempre como tal condicionado pelo entendimento, nada sendo sem ele. Porém, não exclusivamente por esse motivo, mas já porque, em geral, objeto algum se deixa pensar, isento de contradição, sem o sujeito, temos de negar absolutamente ao dogmático a sua explanação da realidade do mundo exterior como algo independente do sujeito. O mundo inteiro dos objetos é e permanece representação, e precisamente por isso é, sem exceção e em toda a eternidade, condicionado pelo sujeito, ou seja, possui idealidade transcendental. Desta perspectiva não é uma mentira nem uma ilusão. Ele se oferece como é, como representação, e em verdade como uma série de representações cujo vínculo comum é o princípio de razão. Assim, o mundo, como tal, é compreensível para o entendimento saudável, mesmo em sua significação mais íntima, e lhe fala uma linguagem perfeitamente clara. Meramente ao espírito pervertido por sofismas pode ocorrer disputar acerca da sua realidade, o que todas as vezes ocorre pelo uso incorreto do princípio de razão, que de fato liga todas as representações entre si, não importa o seu tipo, mas de modo algum as liga com o sujeito, ou com algo que não seria sujeito nem objeto mas mero fundamento do objeto; um absurdo, visto que apenas objetos podem ser fundamento e, em verdade, sempre de outros objetos. Caso se investigue mais a fundo a origem dessa polêmica acerca da realidade do [57] mundo exterior, então se encontrará que, além daquele falso uso do princípio de razão naquilo que se encontra fora de seu domínio, ainda Há uma confusão especial envolvendo as suas figuras. Noutros termos, a figura que ele tem exclusivamente em referência aos conceitos ou representações abstratas é aplicada às REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS, aos objetos reais, e, assim, exige-se um fundamento do conhecer para objetos que não podem ter outro senão um fundamento do devir. [Cf minha nota ao §3] As representações abstratas, os conceitos ligados em juízos, são regidas com certeza pelo princípio de razão, na medida em que cada uma delas tem seu valor, sua validade, sua existência inteira, aqui denominada verdade, única e exclusivamente mediante a relação do juízo com algo fora dele, seu fundamento de conhecimento, ao qual, portanto, sempre tem de ser referida. Os objetos reais, as REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS, ao contrário, são regidos pelo princípio de razão não como princípio de razão de conhecer, mas de devir, como lei de causalidade. Cada um de tais objetos paga o seu tributo a ele pelo fato de ter vindo-a-ser, isto é, ter surgido como efeito de uma causa. A exigência, aqui, de um fundamento de conhecimento não tem validade alguma, nem sentido, mas pertence a uma classe completamente diferente de objetos. Em função disso, o mundo intuitivo, por mais que se permaneça nele, não desperta escrúpulo nem dúvida no contemplador. Aqui não há erro nem verdade (confinados ao domínio abstrato da reflexão). Aqui o mundo se dá aberto aos sentidos e ao entendimento, com ingênua verdade como aquilo que é, como representação intuitiva, a desenvolver-se legalmente no vínculo da causalidade. SMVR1 Livro I §5

O procedimento objetivo pode ser desenvolvido mais consequentemente e levado o mais longe possível quando se dá como materialismo propriamente dito. Este pressupõe a matéria, junto com o tempo e o espaço, como subsistindo absolutamente, e salta por sobre a relação com o sujeito, unicamente no qual tudo isso decerto existe. O materialismo assume a lei de causalidade como fio. condutor, e com ela quer progredir, tomando-a como uma ordenação de coisas a subsistir por si, veritas aeterna [verdade eterna]; em consequência, salta por sobre o entendimento, unicamente no qual e para o qual existe a lei de causalidade. Então, tenta encontrar o primeiro e mais simples estado da matéria, para, em seguida, desenvolver todos os outros a partir dele, ascendendo do mero mecanismo ao quimismo, [71] polaridade, vegetação, animalidade. Ora, supondo que tudo isso desse certo, o último elo da cadeia seria a sensibilidade animal, o conhecimento, que, portanto, agora, entraria em cena como uma mera modificação da matéria, um estado produzido a partir desta pela causalidade. Se com REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS seguíssemos o materialismo até este ponto, então, ao chegar no ápice, seríamos subitamente assaltados pelo riso inextinguível dos deuses do Olimpo, na medida em que, como despertando de um sonho, perceberíamos de repente que seu último resultado, laboriosamente produzido, o conhecimento, já era pressuposto como condição absolutamente necessária no primeiríssimo ponto de partida, a mera matéria que pensávamos figurar, mas de fato tínhamos pensado tão-somente no sujeito que a representa, no olho que a vê, na mão que a sente, no entendimento que a conhece. Assim, desvelar-se-ía a inesperada e enorme petitio principii, [petição de princípio] pois subitamente se mostraria o último elo como o ponto fixo do qual o primeiro já pendia, e a cadeia formaria um círculo. O materialista se assemelha ao Barão de Munchhausen, que, debatendo-se na água e montado em seu cavalo, puxa este para cima com as pernas, e levanta a si mesmo pela ponta da peruca estendida ao alto. Daí que a absurdidade fundamental do materialismo consiste em partir do objetivo, em tomar algo objetivo por fundamento último de explicação, seja a matéria como ela é apenas pensada in abstracto, ou já revestida de forma e dada empiricamente, portanto o estofo, como os elementos químicos fundamentais e suas combinações primárias. Procedendo assim, considera a matéria como existente em si e absolutamente, para dela fazer surgir a natureza orgânica e, ao fim, o sujeito que conhece, e assim explica a este de maneira completa; – enquanto, em verdade, todo objetivo, já como tal, é condicionado de maneira variada pelo sujeito que conhece e suas formas cognitivas, pressupondo-os. Logo, caso se abstraia o sujeito, o que é objetivo desaparece por completo. O materialismo é, portanto, a tentativa de nos explicitar o que é dado imediatamente a partir do que é dado mediatamente. Todo objetivo, extenso, que faz-efeito, portanto todo material, que o materialismo considera [72] um fundamento tão sólido de suas explicitações, que uma redução a ele (sobretudo se o resultado forem choques e contra-choques) não deixa nada a desejar – tudo isso é algo dado de maneira inteiramente mediata e condicionada, portanto, tem subsistência meramente relativa, pois passou pela maquinaria e fabricação do cérebro; por conseguinte, entrou em suas formas, tempo, espaço e causalidade, apenas devido às quais se expôs como extenso no espaço e fazendo efeito no tempo. De algo dado dessa maneira o materialismo pretende explicar inclusive o que é dado imediatamente, a representação (na qual tudo existe) e, ao fim, até mesmo a vontade, a partir da qual, antes, todas aquelas forças fundamentais, que se exteriorizam pelo fio condutor das causas (portanto legalmente) são na verdade para se explicitar. – À afirmação de que o conhecimento é modificação da matéria, contrapõe-se sempre com igual direito a afirmação contrária, de que toda matéria é apenas modificação do conhecer do sujeito, como representação do mesmo. Não obstante, o fim e ideal de qualquer ciência da natureza é, no fundo, um materialismo desenvolvido até as suas últimas consequências. Todavia, este é por nós aqui reconhecido como manifestamente impossível, o que confirma uma outra verdade, que resultará da nossa consideração posterior, de que toda ciência no sentido próprio do termo, compreendida como conhecimento sistemático guiado pelo fio condutor do princípio, de razão, nunca alcança-um fim último, nem pode fornecer uma explicação completa e suficiente, porque jamais roca a essência mais íntima do mundo, jamais vai além da representação, antes, basicamente, somente conhece a relação de uma representação com outra. SMVR1 Livro I §7

Os conceitos [representações abstratas] formam uma classe particular de representações, encontrada apenas no espírito do homem, e diferente toto genere das REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS consideradas até agora. Não podemos, por isso, jamais alcançar um conhecimento evidente de sua essência, mas tão-somente um conhecimento abstrato e discursivo. Seria, pois, absurdo exigir que eles fossem comprovados pela experiência – na medida em que esta é compreendida como o mundo externo real, que justamente é representação intuitiva – ou devessem ser trazidos perante os olhos, ou perante a fantasia como os objetos intuíveis. Os conceitos permitem apenas pensar, não intuir, e tão-somente os efeitos que o homem produz por eles são objetos da experiência propriamente dita. É o caso da linguagem, da ação planejada e refletida, da ciência e de tudo o que delas resulta. A fala, como objeto da experiência externa, manifestamente não é outra coisa senão um telégrafo bastante aperfeiçoado que comunica sinais arbitrários com grande rapidez e nuances sutis. Que significam, porém, semelhantes sinais? Como são interpretados? Por acaso, quando alguém fala, traduzimos o seu discurso instantaneamente em imagens da fantasia, que voam e se movimentam diante de nós com rapidez relâmpago, encadeadas, transformadas e matizadas de acordo com a torrente das palavras e suas flexões gramaticais? Que tumulto, então, não ocorreria em nossa cabeça durante a audição de um discurso ou a leitura de um livro! Mas de modo algum se passa dessa forma. O sentido do discurso é imediatamente intelectualizado, concebido e determinado de maneira precisa, sem que, via de regra, fantasmas se imiscuam. E a razão que fala para a razão, sem sair de seu domínio, e o [86] que ela comunica e recebe são conceitos abstratos, representações não intuitivas, as quais, apesar de formadas uma vez para sempre e em número relativamente pequeno, abarcam, compreendem e representam todos os incontáveis objetos do mundo efetivo. Por aí é explicável por que um animal nunca pode falar e inteligir, embora possua o instrumento da linguagem e também as REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS: justamente porque as palavras indicam aquela classe de representações inteiramente peculiar, cujo correlato subjetivo é a razão, não possuindo, assim, nenhum sentido e referência para os animais. Desse modo, a linguagem, como qualquer outro fenômeno que creditamos à razão e como tudo o que diferencia o homem do animal, pode ser explicitada por esta única e simples fonte: os conceitos, representações abstratas e universais, não individuais, não intuitivas no tempo e no espaço. Apenas em casos particulares passamos dos conceitos à intuição, formando fantasmas como intuitivos representantes dos conceitos, aos quais, todavia, nunca são adequados. Isto mereceu abordagem especial no meu ensaio sobre o princípio de razão, §28, pelo que me dispenso aqui de repetição. Com o que foi ali dito, compare-se o que escreveram Hume no décimo segundo dos seus Philosophical essays, p 244, e Herder em sua Metacrítica (de resto um livro ruim), parte I, p 274 (a Ideia platônica, possível pela união de fantasia e razão, constituirá o tema principal do terceiro livro do presente escrito). SMVR1 Livro I §9

Embora, pois, os conceitos sejam desde o fundamento diferentes das REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS, ainda assim se encontram numa relação necessária com estas, sem as quais nada seriam. Relação que, por conseguinte, constitui toda a sua essência e existência. A reflexão é necessariamente cópia, embora de tipo inteiramente especial, é repetição do mundo intuitivo primariamente figurado num estofo completamente heterogêneo. Por isso os conceitos podem ser denominados de maneira bastante apropriada representações de representações. O princípio de razão possui entre estas uma figura própria; e, assim como a figura pela qual ele rege uma classe de representações também sempre constitui e esgota a essência completa dela, na medida em que são representações; assim como, e isso já vimos, o tempo é absolutamente sucessão e nada mais, o espaço é absolutamente situação e nada mais, a matéria é absolutamente causalidade e nada mais; – [87] assim também a essência completa dos conceitos, ou da classe de representações abstratas, reside exclusivamente na relação que o princípio de razão exprime nelas. Ora, como tal relação é a do fundamento de conhecimento, segue-se que a representação abstrata possui sua essência, inteira e exclusivamente, em sua relação com uma outra representação que é seu fundamento de conhecimento. Esta última pode ser de novo um conceito, ou representação abstrata, que por sua vez também pode ter um semelhante fundamento de conhecimento; mas não ao infinito, pois a série de fundamentos de conhecimento tem de findar num conceito que tem seu fundamento no conhecimento intuitivo. Em verdade, o mundo todo da reflexão estriba sobre o mundo intuitivo como seu fundamento de conhecer. Eis por que a classe das representações abstratas possui como distintivo em relação à classe das REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS o fato de nestas o princípio de razão sempre exigir apenas uma referência a outra representação da mesma classe, enquanto naquelas exige, ao fim, uma referência a uma representação de outra classe. SMVR1 Livro I §9

Aqueles conceitos que, como especificado, referem-se ao conhecimento intuitivo não imediatamente, mas pela intermediação de um ou muitos outros conceitos, denominaram-se de preferência abstracta; ao contrário, aqueles que possuem seu fundamento imediatamente no mundo intuitivo, denominaram-se concreta. No entanto, esta última denominação combina muito inapropriadamente com os conceitos por ela descritos, visto que também estes sempre ainda são abstracta e de modo algum REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS. Tais denominações procedem de uma consciência muito obscura da diferença aí indicada; podem, no entanto, ser conservadas com o significado referido. Exemplos do primeiro tipo, portanto abstracta em sentido estrito, são conceitos como “relação, virtude, investigação, princípio” etc.; exemplos do último tipo, ou os inapropriadamente chamados concreta, são os conceitos de “homem, pedra, cavalo” etc. Se não fosse uma comparação muito figurada e brincalhona, poder-se-ia de maneira muito acertada denominar os últimos conceitos o andar térreo e os primeiros, os andares superiores do edifício da reflexão [Cf cap 5 e 6 do segundo tomo]. SMVR1 Livro I §9

Não é uma característica essencial do conceito, como muitas vezes se diz, que ele abranja muito em si, ou seja, que muitas outras REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS, ou mesmo abstratas estejam para ele na relação do fundamento de conhecimento, isto é, sejam pensadas por ele. Eis aí uma sua característica secundária e derivada, que, embora exista sempre potencialmente, não tem de se dar sempre, e provém de o conceito ser representação de uma representação, isto é, possuir sua essência inteira e exclusivamente em sua referência a outra representação. Ora, como ele não é essa representação mesma, a qual muitas vezes pertence a uma outra classe completamente diferente de representações, vale dizer, intuitivas, podendo possuir determinações temporais, espaciais e em geral muitas outras referências que não são pensadas de maneira alguma no conceito, segue-se que muitas representações não essencialmente diferentes são pensadas pelo mesmo conceito, isto é, podem ser nele subsumidas. Só que esse valer para muitas coisas não é uma característica essencial do conceito, mas meramente acidental. Pode haver conceitos mediante os quais um único abjeto real é pensado. Tais conceitos, entretanto, são representações abstratas e universais e de modo algum particulares e intuitivas. Desse tipo, por exemplo, é o conceito que alguém faz de uma cidade determinada, porém conhecida só pela geografia. Embora apenas essa cidade seja aí pensada, o seu conceito poderia possivelmente servir para muitas outras cidades que se diferenciam apenas em certos aspectos. Logo, um conceito possui generalidade não porque é abstraído de muitos objetos, mas, ao contrário, justamente porque a generalidade, ou seja, a não determinação do particular, é essencial ao conceito como representação abstrata da razão, apenas por isso podem diversas coisas ser pensadas mediante um mesmo conceito. SMVR1 Livro I §9

A razão é de natureza feminina, só pode dar depois de ter recebido. Abandonada a si mesma possui apenas as formas destituídas de conteúdo com que opera. Conhecimento racional puro e perfeito só há os dos quatro princípios aos quais atribuí verdade metalógica, portanto, os princípios de identidade, de contradição, do terceiro excluído e de razão suficiente do conhecer. Pois até mesmo o restante da lógica já não é mais conhecimento racional perfeitamente puro, já que pressupõe relações e combinações das esferas conceituais. Conceitos em geral, todavia, só existem depois das REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS prévias, em relação às quais se constitui toda a essência deles que, por conseguinte, já as pressupõe. Por outro lado, na medida em que essa pressuposição não se estende ao conteúdo determinado dos conceitos, mas somente, em geral, a uma existência dele, a lógica pode, sim, tomada em seu conjunto, passar por uma ciência pura da razão. Em todas as demais ciências a razão adquire o seu conteúdo a partir das REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS. Na matemática, a partir das relações do espaço e do tempo, conhecidas intuitivamente antes de qualquer experiência. Na ciência pura da natureza, isto é, naquilo que sabemos sobre o curso da natureza antes de qualquer experiência, o conteúdo da ciência provém do entendimento puro, ou seja, do conhecimento a priori da lei de causalidade, sua ligação com as intuições puras do espaço e do tempo. Nas demais ciências, tudo aquilo que não foi extraído das fontes mencionadas pertence à experiência. Saber em geral significa: ter determinados juízos em poder do próprio espírito para reprodução arbitrária, juízos estes que têm algum tipo de fundamento suficiente de conhecer exterior a si mesmos, isto é, são verdadeiros. Unicamente o conhecimento abstrato, pois, é um saber, que, portanto, é condicionado pela razão. Dos animais não podemos propriamente dizer que sabem algo, embora possuam conhecimento intuitivo, para o qual também dispõem de recordação e até mesmo de fantasia, comprovadas por seus sonhos. Atribuímos aos animais consciência, conceito este que, embora seja derivado de saber, coincide com o de representação em geral, não importa seu tipo. Eis por que [99] atribuímos vida às plantas, mas não consciência. – saber, numa palavra, é a consciência abstrata, o ter-fixo em conceitos da razão aquilo que foi conhecido em geral de outra maneira. SMVR1 Livro I §10

Não me deterei aqui mencionando anedotas e exemplos com o fim de exemplificar a minha explicação, pois se trata de algo tão simples e acessível, que dispensa tal procedimento. Como prova do que foi dito, que o leitor leve em conta qualquer risível que lhe ocorra. Todavia, a nossa explicação é ao mesmo tempo confirmada e elucidada pelo desdobramento de dois tipos possíveis de risível, nos quais este se divide, e que procedem justamente daquela explicação, a saber: ou no conhecimento estão presentes dois ou mais objetos reais bem diferentes, REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS, identificadas arbitrariamente pela unidade de um conceito que as engloba – caso em que se tem o dito espirituoso. Ou, ao contrário, o conceito primeiro se encontra no conhecimento e se vai dele para a realidade e para o fazer-efeito sobre ela, isto é, para o agir, e assim, objetos que noutros aspectos são fundamentalmente diferentes, porém pensados naquele conceito, são vistos e tratados da mesma maneira, até que a sua grande diferença entre em cena, para surpresa e admiração de quem age – caso em que se tem o disparate cômico. Em conformidade com isso, todo risível é ou um caso de dito espirituoso, ou de uma ação disparatada, dependendo de se ter partido desde a discrepância dos objetos para a identidade do conceito, ou vice-versa: o primeiro caso é sempre voluntário, o último sempre involuntário e imposto de fora. Inverter de modo aparente esse ponto de vista e mascarar o dito espirituoso com o disparate cômico é a arte do – bobo da corte e do palhaço. Tal personagem, plenamente consciente da diversidade dos objetos, une-os com secreto dito espirituoso num conceito e, partindo deste, obtém da diversidade ulteriormente encontrada entre os objetos aquela surpresa que ele mesmo havia preparado. – Infere-se desta curta, porém suficiente, teoria do risível que, tirante o último caso do fazedor de brincadeiras, o dito espirituoso sempre se deve mostrar em palavras, o disparate cômico, entretanto, na maioria das vezes em ações, embora também em palavras quando meramente expressa a intenção, em vez de efetivamente consumá-la, ou também quando se exprime em meros juízos e opiniões. SMVR1 Livro I §13

Após as considerações sobre a razão enquanto faculdade especial e exclusiva do homem, e sobre aqueles fenômenos e realizações próprios da natureza humana, falta ainda falar da razão na medida em que conduz a ação das pessoas, portanto, podendo nesse aspecto ser denominada [138] prática. Porém, o que aqui será mencionado encontra em grande parte o seu lugar em outro contexto, a saber, no apêndice deste livro, em que se contesta a existência da chamada razão prática de Kant, que ele (certamente por comodidade) expõe como fonte imediata de todas as virtudes e sede de um deve absoluto (ou seja, caído do céu). A refutação minuciosa, desde os fundamentos, desse princípio kantiano da moral foi por mim ulteriormente realizada nos Dois problemas fundamentais da ética. – Em função disso, tenho aqui muito pouco a falar sobre a real influência da razão, no sentido autêntico deste conceito, sobre o agir. Já no início de nossa consideração acerca dessa faculdade observamos, em termos gerais, como a ação e o comportamento do homem se diferenciam bastante da ação e do comportamento animal, e como semelhante diferença deve ser vista tão-somente como consequência da presença de conceitos abstratos na consciência. A influência destes sobre a nossa existência inteira é tão determinante e significativa que, em certo sentido, pode-se dizer que estamos para os animais, assim como os animais que vêem estão para os destituídos de olhos (certas larvas, vermes, zoófitos). Estes, pelo tato, conhecem apenas o que lhes está imediatamente presente no espaço e lhes chega pelo contato; os animais que veem, ao contrário, conhecem um amplo círculo do que está próximo e distante. Da mesma forma, a ausência de razão limita os animais às REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS que lhes são imediatamente presentes no tempo, ou seja, objetos reais. O homem, ao contrário, em virtude do conhecimento in abstracto, abrange, ao lado do presente efetivo e próximo, ainda o passado inteiro e o futuro, junto com o vasto reino das possibilidades. Divisamos livremente a vida em todos os lados, a vida distante, além do presente e da realidade efetiva. Nesse sentido, portanto, o que no espaço é o olho para o conhecimento sensível, corresponde, em certa medida, ao que no tempo é a razão para o conhecimento interior. E assim como a visibilidade dos objetos só tem valor e significação desde que indique a sua palpabilidade, assim também todo o valor do conhecimento abstrato reside sempre na sua referência ao conhecimento intuitivo. Eis por que o homem natural sempre atribui mais valor àquilo que foi conhecido imediata e intuitivamente do que aos conceitos abstratos, meramente pensados. Ele prefere o conhecimento empírico ao lógico. O contrário pensam as [139] pessoas que vivem mais nas palavras que nos atos, que enxergaram mais no papel e nos livros que no mundo efetivo, e que, ao degenerarem, tornam-se pedantes e apegados à letra. Daí se torna concebível como Leibniz e Wolf, junto aos seus seguidores, puderam errar tanto a ponto de afirmarem, em conexão com Duns Skotus, que o conhecimento intuitivo não passa de um conhecimento abstrato confuso! Em honra de Espinosa seja dito que seu senso de correção, ao contrário, explicava todo conceito ordinário como tendo se originado da confusão do que foi conhecido intuitivamente (Eth II, prop 40, Schol. I). – Daquele pensamento invertido também resultou, na matemática, o desprezo por sua evidência propriamente dita, para fazer valer apenas a evidência lógica. Do mesmo pensamento invertido ainda resultou que, em geral, todo conhecimento não abstrato seja concebido sob o amplo conceito de sentimento, merecedor de pouca consideração, e que, por fim, a ética kantiana afirme que a pura e boa vontade despertada imediatamente pelo conhecimento das circunstâncias e que conduz à ação justa e benevolente, é mero sentimento, o que o faz tomá-la como destituída de valor e mérito: ao contrário, só as ações derivadas de máximas abstratas são por ele reconhecidas como dotadas de valor moral. SMVR1 Livro I §16

A visão panorâmica e multifacetada da vida em seu todo, que o homem tem pela razão e constitui vantagem em face dos animais, é também comparável a um diminuto, descolorido e abstrato esquema geométrico que indica seu caminho de vida; com isso, ele está para os animais como o navegante, que, com suas cartas marítimas, compasso e quadrante, conhece com precisão a sua rota a cada posição no mar, está para a tripulação leiga que vê somente ondas e céu. Por isso é digno de consideração, sim, espantoso como o homem, ao lado de sua vida in concreto, sempre leva uma segunda in abstracto. Na primeira está sujeito a todas as tempestades da realidade efetiva e à influência do presente, tendo de se esforçar, sofrer, morrer como o animal. Sua vida in abstracto, entretanto, como se dá à sua percepção racional, é o calmo reflexo da vida in concreto do mundo em que vive, sendo justamente o seu mencionado diminuto esquema. Aqui, no domínio da calma ponderação, aquilo que antes o assaltava por inteiro, movimentando-o vigorosamente, aparece-lhe como algo frio, descolorido e alheio ao momento: ele se torna um mero observador e espectador. Esse [140] recolher-se na reflexão faz o homem parecer um ator que, depois de seu desempenho e até que entre novamente em cena, ocupa um lugar na plateia entre os espectadores, de onde, sereno, assiste à sucessão dos acontecimentos, mesmo que seja a preparação de sua morte (na peça); depois, porém, volta ao palco e age e sofre como estava escrito. A partir dessa dupla vida provém aquela serenidade do homem, tão diferente da ausência de pensamento do animal e com a qual alguém, depois de ponderação prévia, decisão calculada ou conhecida necessidade, suporta ou pratica com sangue frio aquilo que para si é da maior, amiúde da mais terrível, significação: o suicídio, a execução, o duelo, os empreendimentos arriscados de todo tipo e em geral as coisas contra as quais se insurge toda a sua natureza animal. Por aí se vê em que medida a razão domina a natureza animal e exclama ao forte: [citação em latim em II. 24, 521: “Decerto tens um coração de ferro!”]. Aqui de fato é possível dizer que a razão se exterioriza de maneira prática. Portanto, em qualquer lugar onde a conduta é conduzida pela faculdade racional, os motivos são conceitos abstratos, e o determinante não são REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS, particulares, nem a impressão do momento que conduz o animal: aí se mostra a razão prática. Que, todavia, tudo isso seja por inteiro diferente e independente do valor moral da ação, que a ação racional e a virtuosa são duas coisas Completamente distintas, que a razão se encontra unida tanto à grande maldade quanto à grande bondade, que o seu auxílio confere grande eficácia seja a esta primeira ou à segunda, que ela está igualmente preparada e disponível para executar metodicamente e de maneira consequente tanto os propósitos nobres quanto os vis, tanto a máxima inteligente quanto a imprudente, em consequência de sua natureza feminina, receptiva, retentiva, que não produz por si mesma – tudo isso foi tratado de maneira pormenorizada e ilustrado por exemplos no apêndice desta obra. O dito nele encontraria aqui o seu lugar apropriado, porém, em virtude da polêmica contra a pretensa razão prática de Kant, teve de lá ser abordado, pelo que remeto o leitor a esse apêndice. SMVR1 Livro I §16

De grau em grau, objetivando-se cada vez mais nitidamente, a Vontade atua no reino vegetal, em que o elo de seus fenômenos não são propriamente causas, mas excitações. Vontade que aqui ainda é completamente destituída de conhecimento, é força obscura que impele. Assim ela o é na [214] parte vegetativa do fenômeno animal, em sua geração e formação, e na manutenção da economia interna dele, em que são ainda as meras excitações o que determina necessariamente o seu fenômeno. Os graus cada vez mais elevados de objetidade da Vontade levam finalmente ao ponto no qual o indivíduo, expressando a Ideia, não mais pode conseguir seu alimento para assimilação pelo mero movimento provocado por excitação, pois esta tem de ser esperada. Aqui o alimento é de tipo mais especialmente determinado e, com a crescente variedade dos fenômenos, a profusão e o tumulto se tornaram tão grandes, que eles se perturbam mutuamente; de modo que o acaso, do qual o indivíduo movido por mera excitação tem de esperar o alimento, seria demasiado desfavorável. O alimento, por conseguinte, tem de ser procurado e escolhido desde o momento em que o animal sai do ovo ou ventre da mãe, nos quais vegetava sem conhecimento. Daí ser aqui necessário o movimento por motivo e, por isso, o conhecimento, que portanto aparece como um meio de ajuda, mechane, exigido nesse grau de objetivação da Vontade para conservação do indivíduo e propagação da espécie. O conhecimento aparece representado pelo cérebro ou por um grande gânglio; precisamente como qualquer outro esforço ou determinação da Vontade que se objetiva é representado por um órgão, quer dizer, expõe-se para a representação como um órgão. [Cf cap 22 do segundo tomo; bem como o meu escrito Sobre a vontade na natureza p 54 ss. e p 70-9 da primeira edição, ou p 46 ss. e p 63-72 da segunda edição] – Com esse meio de ajuda, essa mechane surge de um só golpe o mundo como representação com todas as suas formas: objeto e sujeito, tempo e espaço, pluralidade e causalidade. O mundo mostra agora o seu segundo lado. Até então pura e simples vontade, doravante é simultaneamente representação, objeto do sujeito que conhece. A Vontade, até então a seguir na obscuridade o seu impulso, com extrema certeza e infalibilidade, inflamou neste grau de sua objetivação uma luz para si, meio este que se tornou necessário para a supressão da crescente desvantagem que resultaria da profusão e da índole complicada de seus fenômenos, o que afetaria os mais complexos deles. A infalível certeza e regularidade com que a Vontade atuava ate então na natureza inorgânica e na meramente vegetativa [215] assentava-se no fato de que ali ela era ativa exclusivamente em sua essência originária, como ímpeto cego; Vontade sem o auxílio, no entanto sem a perturbação de um segundo mundo inteiramente outro, o mundo como representação. Só que este mundo, em verdade, é apenas a imagem copiada da sua essência, entretanto de natureza por completo diferente, e que agora intervém na conexão de seus fenômenos. Doravante cessa a infalível certeza da Vontade. Os animais mesmos já estão sujeitos à ilusão, ao engano. Contudo, têm apenas REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS; não têm conceitos nem reflexão; estão portanto presos ao presente e não podem levar em conta o futuro. – É como se esse conhecimento a-racional não fosse em todos os casos suficiente para os fins da Vontade, com o que ela casualmente precisou de um auxílio. Com isso podemos observar o fenômeno bastante notável de que a atuação cega da Vontade e a ação iluminada pelo conhecimento invadem uma o domínio da outra da maneira mais surpreendente em dois tipos de fenômeno. Num primeiro caso, referente às ações dos animais guiadas por conhecimento intuitivo e motivos, encontramos uma ação sem motivos, logo, consumada com a mesma necessidade da Vontade que atua cegamente: refiro-me ao impulso industrioso dos animais que, não sendo conduzidos por motivo ou conhecimento algum, até transmitem a aparência de executar as suas obras por meio de motivos abstratos, racionais. Um outro caso, oposto a este, é aquele em que a luz do conhecimento penetra na oficina da Vontade que atua cegamente e assim ilumina às funções vegetativas do organismo humano: refiro-me à clarividência magnética. – Por fim, lá onde a Vontade atingiu o grau mais elevado de sua objetivação e não é mais suficiente o conhecimento do entendimento, do qual o animal é capaz e cujos dados são fornecidos pelos sentidos, dos quais surgem simples intuições ligadas ao presente, um ser complicado, multifacetado, plástico, altamente necessitado e indefeso como é o homem teve de ser iluminado por um duplo conhecimento para poder subsistir. Com isso, coube-lhe, por assim dizer, uma potência mais elevada do conhecimento intuitivo, um reflexo deste, vale dizer, a razão como faculdade de conceitos abstratos. Com esta surge a clareza de consciência que abarca panoramas do futuro e do passado e, em função destes, ponderação, cuidado, habilidade para a ação calculada e [216] independente do presente, por fim a consciência totalmente clara das próprias decisões voluntárias enquanto tais. Se, de um lado, com o conhecimento meramente intuitivo surge a possibilidade da ilusão e do engano, e assim é suprimida a infalibilidade na atuação destituída de conhecimento da Vontade, tem de vir em seu auxílio, em meio às exteriorizações guiadas pelo conhecimento da Vontade, o instinto e o impulso industrioso como exteriorizações destituídas de conhecimento da Vontade; por outro lado, com o aparecimento da razão é quase que inteiramente perdida aquela segurança e infalibilidade das exteriorizações da Vontade (que no outro extremo, na natureza inorgânica, aparece inclusive como estrita conformidade a leis): o instinto entra por completo no segundo plano. A ponderação, que agora deve a tudo substituir, produz (como exposto no primeiro livro) vacilações e incertezas; o erro se torna possível, obstando em muitos casos a adequada objetivação da Vontade em atos. Pois, embora a Vontade já tenha tomado no caráter a sua direção determinada e inalterável, em conformidade com o qual aparece de maneira infalível caso seja dada a ocasião dos motivos, ainda assim o erro pode falsear as suas exteriorizações, na medida em que motivos ilusórios, agindo como se fossem reais, ocupam o lugar destes e os suprimem. [Os escolásticos dizem com bastante acerto: [citação em latim: “a causa final não faz efeito segundo sua existência real, mas segundo sua existência conhecida” (Cf Suarez, Disp Metaph Disp XXIII, sect 7 et 8)]. Por exemplo, a superstição que compele o homem por motivos imaginários a modos de ação que são exatamente o oposto de como sua vontade se exteriorizaria nas circunstâncias existentes: Agamenon sacrifica sua filha; um avaro dá esmolas por puro egoísmo na esperança de um retorno cem vezes maior, e assim por diante. SMVR1 Livro II §27

A matéria, enquanto tal, não pode ser exposição de uma Ideia, pois, como vimos no primeiro livro, é por inteiro causalidade. Seu ser é o puro fazer-efeito. A causalidade é figuração do princípio de razão; o conhecimento da Ideia, todavia, exclui radicalmente o conteúdo deste princípio. Também vimos no segundo livro que a matéria é o substrato comum de todos os fenômenos particulares das Ideias, consequentemente, apresenta-se como o elo entre a Ideia e o fenômeno (coisa particular). Por conseguinte, seja por uma razão ou outra, a matéria por si mesma não pode expor Ideia alguma: o que se comprova a posteriori pelo fato de não ser possível representação intuitiva alguma da matéria enquanto tal, mas apenas um conceito abstrato dela. Nas REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS expõem-se apenas formas e qualidades cujo sustentáculo é a matéria e nas quais as Ideias se manifestam. Isso corresponde ao fato de a causalidade (essência inteira da matéria) não ser por si mesma intuitivamente exponível: mas só uma determinada conexão causai o é. – Por outro lado, todo fenômeno de um Ideia, na medida em que esta entrou na forma do princípio de razão, ou no principium individuationis, tem de se expor na matéria como qualidade desta. Dessa forma, como dito, a matéria é o elo entre a Ideia e o principium individuationis, que é a forma de conhecimento do indivíduo, ou princípio de razão. – Platão observa muito corretamente que, ao lado da Ideia e do fenômeno (a coisa particular), a compreenderem juntos todas as coisas do mundo, há ainda a matéria como um terceiro termo diferente [287] de ambos (Timeu, 48-9). O indivíduo, como fenômeno da Ideia, é sempre matéria. Cada qualidade desta é também sempre fenômeno de uma Ideia e, como tal, passível de uma consideração estética, isto é, conhecimento da Ideia que nela se expõe. Isso vale até mesmo para as qualidades mais gerais da matéria, sem as quais ela nunca existe, e que constituem a objetidade mais fraca da Vontade. Tais qualidades são: gravidade, coesão, rigidez,, fluidez, reação contra a luz etc. SMVR1 Livro III §43

A influência que o conhecimento, enquanto médium dos motivos, tem não só sobre a vontade mas também sobre o seu aparecimento em ações fundamenta também a diferença capital entre o agir do homem e o do animal, na medida em que o modo de conhecimento de ambos é diverso. De fato, o animal possui apenas REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS, o homem, devido à [384] razão, ainda possui representações abstratas, conceitos. Embora animal e homem sejam determinados por motivos com igual necessidade, o homem, entretanto, tem a vantagem de uma decisão eletiva. Esta amiúde foi vista como uma liberdade da vontade em atos individuais; contudo, é apenas a possibilidade de um conflito duradouro entre vários motivos, até que o mais forte determine com necessidade a vontade. Para isso os motivos têm de ter assumido a forma de pensamentos abstratos, pois só por estes é possível uma deliberação propriamente dita, isto é, uma avaliação de fundamentos opostos para o agir. No caso do animal, a escolha só pode se dar entre motivos presentes intuitivamente; por conta disso, está limitada à esfera estreita de sua apreensão atual e intuitiva. Por conseguinte, a necessidade na determinação da vontade pelo motivo, igual àquela no efeito pela causa, só pode ser exibida intuitiva e imediatamente nos animais, porque aqui o espectador tem os motivos tão imediatamente diante dos olhos quanto o seu efeito, enquanto nos homens os motivos quase sempre são representações abstratas, inacessíveis ao espectador, sendo que até mesmo ao agente é ocultada a necessidade do seu efeito por detrás do conflito delas. Apenas in abstracto podem várias representações se encontrar na consciência uma ao lado da outra, como juízos e séries de conclusão, e, então, fazer efeito reciprocamente, livres de qualquer determinação temporal, até que a mais forte domine as restantes e determine a vontade. Eis aí a perfeita decisão eletiva, ou capacidade de deliberação, uma vantagem do homem em face dos animais, devido à qual se lhe atribuiu a liberdade da vontade, na suposição de que seu querer era um mero resultado das operações do intelecto, isento de um impulso determinado a lhe servir de base; quando, em verdade, a motivação só faz efeito se fundamentada, e sob a pressuposição de um impulso determinado, que no seu caso é individual, ou seja, um caráter. Uma exposição detalhada dessa capacidade de deliberação e da diferença entre o arbítrio animal e humano por ela produzidos se encontra no meu Os dois problemas fundamentais da ética (I.ed., p 35 e ss.), ao qual portanto remeto aqui o leitor. Ademais, semelhante capacidade de deliberação no homem também pertence às coisas que tornam a sua existência tão mais atormentada que a do animal; pois em geral nossas grandes dores não se situam no presente, como REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS [385] ou sentimento imediato, mas na razão, como conceitos abstratos, pensamentos atormentadores, dos quais os animais estão completamente livres, pois vivem apenas no presente, portanto num estado destituído de preocupação e digno de inveja. SMVR1 Livro IV §55

É assombroso como Kant, sem mais reflexão, segue seu caminho, indo atrás de sua simetria, tudo ordenando segundo ela, sem jamais levar em conta em sisi mesmo um dos objetos assim tratados. Quero explicar-me mais detalhadamente. Após ele levar em consideração o conhecimento intuitivo só na matemática, negligencia por completo o conhecimento intuitivo restante, no qual o mundo se coloca perante nós, e atém-se tão-somente ao pensamento abstrato; o qual, entretanto, recebe toda a sua significação e valor primeiro do mundo intuitivo, infinitamente mais significativo, mais universal, mais rico em conteúdo que a parte abstrata de nosso conhecimento. De fato, e este é o ponto principal, Kant nunca chegou a distinguir claramente o conhecimento intuitivo do conhecimento abstrato. Justamente por isso, como veremos depois, enreda-se em contradições insolúveis consigo mesmo. – Após ter concluído todo o mundo dos sentidos com a expressão que nada diz “ele é dado”, faz agora, como [542] dito, da tábua lógica dos juízos a pedra de toque do seu edifício. Mas aqui também, em momento algum, reflete sobre o que se encontra propriamente diante dele. As formas do juízo são decerto palavras e combinações de palavra. Deveria, portanto, ter sido primeiro perguntado o que elas designam imediatamente; com o que se teria descoberto que são conceitos. A pergunta a fazer em seguida versaria sobre a natureza dos conceitos, e, a partir da resposta, dever-se-ia observar qual relação eles têm com as REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS nas quais o mundo existe. Com isso a intuição e a reflexão seriam separadas. Teria sido então investigado não só como a intuição pura a priori e apenas formal mas também como seu conteúdo, a intuição empírica, chega à consciência. Depois se teria mostrado qual o papel que o entendimento desempenha nisso, portanto, em geral, o que é o entendimento e, em contrapartida, o que é propriamente a razão, cuja crítica estava ali sendo escrita. É bastante notável que ele não determine esta última uma vez sequer de forma ordenada e suficiente; só ocasionalmente fornece sobre ela explanações incompletas, incorretas, tal qual exigidas pelo contexto, em total contradição com a regra de Descartes antes citada. Por exemplo, na p 11 (V, 24) da Crítica da razão pura, ela é a faculdade dos princípios a priori; na p 299 (V, 356) é dita de novo a faculdade dos princípios e é oposta ao entendimento, que é a faculdade das regras! Doravante se deveria pensar que entre princípios e regras existe uma ampla diferença, que nos justifica admitir para cada uma deles uma faculdade particular. No entanto, é dito que essa grande diferença deve residir meramente no fato de que, aquilo conhecido a priori pela pura intuição, ou pelas formas do entendimento, é uma regra, e apenas o que resulta a priori de meros conceitos é um princípio. Voltaremos depois a esta distinção arbitrária e inadmissível quando tratarmos da dialética. Na p 330 (V, 386) a razão é a faculdade de inferir: o simples julgar (p 69; V, 94) é frequentemente definido como a operação do [543] entendimento. Com isto, porém, ele diz propriamente: julgar é a operação do entendimento quando o fundamento do juízo for empírico, transcendental ou metalógico (ensaio sobre o princípio de razão, §31, 32, 33); mas se este fundamento for lógico, como aquele em que consiste a inferência, age aqui uma faculdade de conhecimento bem especial, e muito mais aprimorada, a razão. Sim, mais ainda, na p 303 (V, 360), explana-se que as consequências imediatas de uma proposição seriam ainda assunto do entendimento, e só aquelas nas quais é usado um conceito mediador seriam tarefa da razão; como exemplo cita que, da premissa “todos os homens são mortais”, seria retirada pelo simples entendimento a conclusão “alguns homens são mortais”; ao contrário, a conclusão “todos os sábios são mortais” exigiria uma faculdade completamente diferente e muito mais aprimorada, a razão. Como foi possível que um grande pensador produzisse algo assim?! Na p 553 (V, 581), a razão, subitamente, é a condição permanente de todas as ações arbitrárias. Na p 614 (V, 642) ela consiste em que podemos prestar conta de nossas afirmações; nas p 643, 644 (V, 67I, 672) consiste em unir os conceitos do entendimento em ideias, assim como o entendimento une a diversidade dos objetos em conceitos. Na p 646 (V, 674) a razão nada é senão a faculdade de deduzir o particular do universal. SMVR1 Apêndice §71

Volto agora ao grande erro de Kant, já tocado acima, a saber, o fato de ele não ter separado de modo apropriado o conhecimento intuitivo do conhecimento abstrato, nascendo daí uma irremediável confusão, que agora temos de considerar detalhadamente. Caso tivesse separado rigorosamente as REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS dos conceitos, estes pensados meramente in abstracto, tê-los-ia conservado à parte e sempre teria sabido, em cada situação, com qual dos dois estava lidando. Porém este não foi o caso. E a censura a isso ainda não se tornou pública, portanto talvez seja inesperada. Seu “objeto da experiência”, sobre o qual fala constantemente, o objeto propriamente dito das categorias, não é a representação intuitiva, mas também não é o conceito abstrato, é diferente de ambos, e, no entanto, é os dois ao mesmo tempo, vale dizer, um completo disparate. Por mais inacreditável que possa parecer, faltou-lhe clareza de consciência ou boa vontade para pôr-se de acordo consigo mesmo e assim explanar distintamente a si e aos demais se o seu “objeto da experiência, isto é, do conhecimento dado pela aplicação das categorias”, é a representação intuitiva no espaço e no tempo (minha primeira classe de representações) ou meramente o conceito abstrato. Por mais estranho que seja, paira diante dele constantemente um híbrido entre os dois, daí advindo a infeliz confusão que tenho agora de trazer à luz e para cujo fim tenho de atravessar toda a doutrina dos elementos em geral. SMVR1 Apêndice §71

Teria ainda muitas particularidades a refutar no prosseguimento ulterior da analítica transcendental, temo todavia esgotar a paciência do leitor, e deixo-as portanto para a sua reflexão. Mas sempre de novo se nos apresenta na Crítica da razão pura aquele erro principal e fundamental de Kant, que acima censurei detidamente: a completa ausência de distinção entre o conhecimento abstrato, discursivo, o intuitivo. Isso espalha uma contínua sombra sobre toda a teoria kantiana da faculdade de conhecimento e nunca permite ao leitor saber em algum momento sobre o que de fato se fala, de tal maneira que, em vez compreender, sempre apenas suspeita, procura compreender o que foi dito a cada vez alternadamente acerca do pensamento e da intuição, porém sempre ficando em suspense. Aquela inacreditável ausência de lucidez sobre a essência das representações intuitiva e abstrata leva Kant, no capítulo “da distinção de todos os objetos em fenômenos e númenos”, como logo mais adiante discutirei em detalhe, à monstruosa afirmação de que sem pensamento, portanto sem conceitos abstratos, não haveria de modo algum conhecimento de um objeto, e que a intuição, visto que não é pensamento, também não é conhecimento algum, e em geral não passa de uma mera afecção da sensibilidade, uma mera sensação! Mais ainda, que intuição sem conceito é totalmente [591] vazia; conceito sem intuição, entretanto, é sempre ainda alguma coisa (p 253; V, 309). Isto é exatamente o oposto da verdade; justamente porque os conceitos obtêm toda significação, todo conteúdo, exclusivamente a partir de sua referência às representações, das quais foram abstraídos, extraídos, isto é, formados pelo abandono de todo inessencial. Por isso, se deles é retirado o alicerce da intuição, são vazios e nulos. Intuições, ao contrário, têm em si mesmas grande e imediata significação (nelas, de fato, objetiva-se a coisa-em-si). Fazem o papel de si mesmas, expressam a si, não têm conteúdo meramente emprestado, como os conceitos. Pois sobre elas impera o princípio de razão apenas como lei de causalidade, e determina, enquanto tal, apenas sua posição no espaço e no tempo, sem condicionar todavia seu conteúdo e seu significado, como no caso dos conceitos, em relação aos quais o referido princípio vale como fundamento do conhecer. De resto, parece, é como se Kant, exatamente aqui, quisesse propriamente distinguir a representação intuitiva da abstrata. Ele repreende Leibniz e Locke. O primeiro por ter reduzido tudo às representações abstratas, o segundo às REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS. No entanto, distinção alguma é alcançada e, embora Locke e Leibniz efetivamente tenham cometido esse erro, Kant mesmo cai num terceiro, que inclui os dois erros anteriores, a saber, ter misturado intuitivo e abstrato numa tal extensão que daí nasce um híbrido monstruoso, uma não-coisa, da qual não é possível representação distinta alguma, e que, por conseguinte, só podia confundir, aturdir e pôr em conflito os discípulos. SMVR1 Apêndice §71

Em todos os casos descritos e concebíveis a distinção entre ações racionais e irracionais remete à questão de saber se os motivos são conceitos abstratos ou REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS. Justamente por isso a definição por mim fornecida da razão concorda precisamente com o uso linguístico de todos os tempos e povos, algo que não se deve tomar como casual ou arbitrário, mas ser visto como proveniente justamente da distinção, da qual cada homem está consciente, das diferentes faculdades do espírito. O homem fala conforme essa consciência, embora certamente não o eleve à clareza da definição abstrata. Nossos antepassados não fizeram as palavras sem lhes atribuir um sentido determinado, e assim elas ficariam esperando possíveis filósofos chegarem séculos mais tarde e lhes determinar naquilo que deveriam ser pensadas, ao contrário, indicaram por elas conceitos bem determinados. As palavras, portanto, não mais estão sem dono. Sujeitá-las a um sentido totalmente diferente do que foi tido até agora significa abuso, concessão de uma licença para cada um poder usá-la no sentido que lhe aprouver, com o que, daí, resulta inevitavelmente uma confusão sem fim. Locke mesmo expôs detalhadamente que a maioria das discórdias na filosofia não passa do falso uso das palavras. Para esclarecimento, lance-se apenas um olhar ao escandaloso, abuso que hoje em dia os filosofastros pobres de pensamento praticam com as palavras substância, consciência, verdade, entre outras. Também as declarações e definições de todos os filósofos, em todos os tempos, sobre a razão, [646] excetuando-se os filósofos modernos, não concordam menos com minha definição que os conceitos prevalecentes entre todos os povos acerca daquela prerrogativa do homem. Veja-se o que Platão, no quarto livro da República e em inumeráveis passagens esparsas, chama logimon ou logistikon tes psyche [a parte racional da alma]; veja-se também o que Cícero diz sobre isso em De Nat. Deor., III, 26-31, e Leibniz e Locke nas passagens já citadas no primeiro livro. Não haveria aqui fim para as citações, se quiséssemos mostrar como todos os filósofos antes de Kant falaram sobre a razão no sentido por mim atribuído, embora não soubessem explanar a sua natureza com perfeita determinidade e distinção, remetendo-a assim a um único ponto. Em síntese, o que se entendia por razão, antes da entrada em cena de Kant, mostram-no no todo dois ensaios de Sulzer no primeiro volume da sua miscelânea de escritos filosóficos, um intitulado Zergliederung des Begriffes der Vernunft, outro Uber den gegenseitigen Einfluss von Vernunft uni Sprache. Em contrapartida, quando se lê o que é dito nos dias atuais sobre a razão – sob a influência do erro kantiano, depois aumentado como uma avalanche – obrigatoriamente teremos de admitir que todos os sábios da antiguidade, bem como todos os filósofos anteriores a Kant, absolutamente não possuíam faculdade de razão, pois as agora descobertas percepções imediatas, intuições, apreensões, pressentimentos da razão, permaneceram-lhes tão desconhecidas como o é a nós o sexto sentido dos morcegos. De resto, no que me concerne, tenho de confessar: em minha limitação, não consigo apreender ou representar de qualquer outro modo senão como sexto sentido dos morcegos aquela faculdade de razão que percebe diretamente, ou apreende, ou intui intelectualmente o supra-sensível, o absoluto, junto com as longas narrativas que acompanham tudo isso. É preciso, porém, dizer em favor da invenção ou descoberta de uma semelhante razão que percebe imediatamente tudo que lhe agrada, que a mesma é um expédient incomparável para livrar-nos e às nossas ideias fixas, do mundo, da maneira a mais fácil, apesar da crítica de Kant à razão. A invenção e a aceitação obtidas por esse expediente fazem honra à época. SMVR1 Apêndice §71