VIDE ontologia da vida
O primeiro caráter que encontramos na vida é o da ocupação. Viver é ocupar-se; viver é fazer; viver é praticar. A vida é uma ocupação com as coisas; quer dizer um manejo das coisas, um tirar e pôr coisas, um andar entre coisas, um fazer com as coisas isto ou aquilo. Se prestamos atenção um instante naquilo que é ocupação com coisas, encontramos essa outra surpresa: que a ocupação com coisas não é propriamente ocupação mas preocupação. Ocupar-se, fazer algo segue imediatamente ao preocupar-se, ao ocupar-se previamente com o futuro. E é extraordinário que a vida comece por preocupar-se para ocupar-se; que a vida comece sendo uma preocupação do futuro, que não existe, para depois acabar sendo uma ocupação no presente que existe. Se a vida é ocupação preocupativa, ocupação de uma vida que está preocupada então diremos que por essência a vida é não—indiferença.
A vida não é indiferente; à vida não é indiferente ser ou não ser; não lhe é indiferente ser isto ou aquilo. As coisas reais, os objetos ideais — que, são entes, porém não o ente primário e autêntico que é a vida, mas entes secundários, que estão na vida — são indiferentes. A pedra não se importa com ser ou não ser; o triângulo retângulo não se importa com ser ou não ser. E são indiferentes não somente quanto às suas existências — não se importam com existir ou não existir — mas também são indiferentes quanto à sua consistência ou essência. Não somente não se importam com ser, mas também não se importam com ser isto ou aquilo. Porém a vida é justamente o contrário; a vida é a não-indiforcnça. Ou, dito de outro modo, o interesse. A vida se interessa: primeiro, com ser, e segundo, com ser isto ou ser aquilo; interessa-se com exjstir e consistir. Digamo-lo de modo talvez mais claro. Pense cada um em sisi mesmo. Vivermos não é somente existirmos (que já nos interessa muito); além disso, vivermos é vivermos de certa maneira, E existem momentos na história em que o interesse por essa certa maneira de viver é tão grande, que encontramos episódios históricos de povos, homens, coletividades ou indivíduos, que preferem morrer, a viver de outra maneira daquela como querem viver. O poeta latino Juvenal o exprimia dizendo aos patrícios degenerados de sua época que sacrificavam ao amor de viver as causas que tornam digno o viver: “Et propter vitam, vivendi perdere causas”. Como pode ter interesse em ser aquilo que já é? Todavia, a vida é de tal índole e natureza, que, mesmo sendo ou existindo, tem interesse por existir, e por existir de tal ou qual modo.
A vida nos apresenta esta aparente contradição: que a vida nos é e não nos é dada. Ninguém se dá a vida a si mesmo. Nós nos encontramos na vida; nosso eu se encontra na vida. Quando refletimos e nos dizemos: eu vivo, não sabemos como vivemos, nem por que nem quem nos deu a vida. Sabemos apenas que vivemos. Por conseguinte, de certo modo, a vida nos é dada. Porém essa mesma vida que nos é dada temos que fazê-la nós. Algo temos que fazer para viver. A vida nos foi dada, mas para seguir vivendo temos que fazer algo, temos que ocupar-nos em algo, temos que desenvolver atividades para viver. Todavia, a vida que nos foi dada está por sua vez por fazer. A vida nos apresenta constantemente problemas vitais para viver, que há que resolver. A vida temos que fazê-la, e em castelhano temos uma palavra para designar isto: a vida é um “que hacer”.
E chegamos a outro paradoxo maior: no magnífico e formidável problema que r filosofia, desde séculos, vem estudando sob o nome de liberdade e determinismo, a liberdade e o determinismo são dois termos contrapostos. Ou a vontade é livre e pode fazer o que quiser, ou a vontade está determinada por leis, e então aquilo que a vontade resolve fazer é já um efeito de causas, e, portanto, está integralmente determinada, como o percurso da bola de bilhar pela mesa está determinado mecanicamente pela quantidade de movimentos recebidos do taco e pelo rumo e direção que se lhe deu. Pois bem: se nós equacionamos o problema de liberdade ou determinismo, no caso da vida, diremos que nós na nossa vida somos livres, podemos fazer ou não fazer, podemos fazer isto ou aquilo, que a vida pode fazer isto ou aquilo. Mas tem que fazer algo forçosamente para ser, temos que fazer; para vivermos, temos que fazer nossa vida. Quer dizer, para vivermos livres, para vivermos livremente, para sermos livres vivendo, temos necessariamente que fazer essa liberdade, dado que a vida é algo a fazer. Quer dizer, que a liberdade, no seio da vida, coexiste irmanada com a necessidade; é liberdade necessária.
Como vamos resolver estas contradições? Não as podemos solucionar quando aplicamos à realidade existencial, à existência total, à vida, os conceitos estáticos e quietos que derivamos das coisas secundárias na lógica de Parmênides. Temos que tomar, pois, essas metafísico que é a vida. Essas que parecem contradições, parecem contradições a um intelecto cuja ideia do ser está tomada do ser desta lâmpada. Um intelecto, porém, cuja ideia do ser fosse tirada do contradições como expressão do caráter ôntico, próprio deste objeto ser da vida teria conceitos capazes de fazer conviver sem contradição aquilo que em nossas grosseiras expressões chamamos contradições na vida. [Morente]
VIDE vida e tempo