Filosofia – Pensadores e Obras

teogonia

(gr. theogonia; in. Theogony; fr. Théogonie; al. Theogonie; it. Teogonià).

Geração dos deuses e do mundo: cosmologia mítica (V. Platão, Leis, X, 886 c). [Abbagnano]


19. Uma leitura da Teogonia, despreocupada da minuciosa e exasperada pesquisa de interpolações, no texto que certamente pouco difere do conhecido pelos Gregos dos séculos vi e v, pelo menos na grande parte que nos foi transmitida, não denuncia que o seu autor vivesse naquele «regime de fascinação», dentro do qual surgira a diacosmese do Oceano. Outro problema, cuja solução adiamos (§§ 22 e segs.), é o de averiguar se ele ainda se acha exposto à luz do «fascinante mistério do horizonte». No poema teocosmogónico de Hesíodo, não há verso que dê lugar, nem à mais leve suspeita de que as águas primordiais constituíssem «uma forma só», das duas em que o Céu e a Terra se apartam: o Oceano já não é gênesis de todas as coisas, como o fora em Homero; pelo contrário, nasce do enlace amoroso dos dois grandes componentes cósmicos, Céu e Terra (v. 133), e, por conseguinte, vem a ser um, entre os demais Titãs. De comum a Homero e Hesíodo, resta apenas um traço: Oceano e Tétis deram origem a todos os rios da Terra. Irrisório e lamentável pedantismo seria o de quem ousasse motivar a profunda alteração que se verifica na Teogonia, a um desentendimento da lição homérica, por parte de Hesíodo, e imperdoável leviandade, a de quem pretendesse atribuí-la só a um dissentimento entre escolas de rapsodos, sediada, uma, na Grécia metropolitana, e outra, no litoral da Anatólia ou em alguma de suas cidades insulares. A verdade é que, no texto hesiódico, os mais hábeis comentadores rastejam o deliberado esforço de um teólogo-poeta, aplicando-se na demonstração de que, no suceder das dinastias [50] divinas, «o deus olímpico da tempestade não é um soberano como o foram os outros: nele se cumpre uma grande ordem, disposta para todos os tempos» (Lesky, 1968, p. 120). A instituição de uma Justiça de Zeus, perpassando por todo o universo, é o tema fundamental que vai culminar na dramaturgia de Esquilo (Solmsen); mas, em curso de desenvolvimento, surpreendemo-lo em Heráclito, que, se o não conhecesse, jamais teria dito: «Um, o Sábio Único, quer e não quer ser chamado pelo nome de Zeus» (frg. 32). Decerto, por de mais se reconhece que o tema não poucas vezes se afunda sob a desmedida carga do que, em conformidade com os nossos padrões estéticos, se apodaria de inútil ou acessório; valham, como notado exemplo, os numerosos versos por onde irrompe o gosto arcaico pela «catalogação». Mas a originalidade do poeta sempre ressalta em seu propósito bem sucedido, de mostrar que a soberania de Zeus se estabelece firmemente no fim de um processo em que, de certo modo, até as divindades vencidas se mantêm, pagando, embora, o preço de uma existência críptica, nos confins do mundo que a sorte da última batalha (Titanomaquia) pôs à mercê dos deuses vencedores. O que não se vê, nem se entrevê sequer, é se e como o final desígnio do poeta pôde retroagir tão longe, sobre os primeiros momentos da teogonia, e alterá-los de modo verificado por comparação com Homero. Não se vê, nem se adivinha, como o propósito que faz da Teogonia um «Hino a Zeus» — comparável ao do autor do Enuma Elish, convertendo a teocosmogonia babilónica em um hino a Marduk (Cornford, 1952) — tinha de suprimir a regência primordial do Oceano, reduzindo o esquema da sucessão a três dinastias, quando o «modelo» oriental, certamente seguido por Hurritas e Fenícios, e muito provavelmente por Homero, acusa a vigência de uma sucessão quaternária, na qual se pode dar por extremamente verosímil que o termo inicial se representa pelas águas originárias. Calma e resignação, diante do problema, não nos advém de pensar que em tão remotas épocas ainda estava a prêmio uma perfeita consequência das ideias, que substituísse o tumultuoso borbotar das imagens. Pois não cremos que a imaginação mito-poética seja tão desregrada quanto a lógica pretende que o é. O problema subsiste. [DE SOUSA, Eudoro. Horizonte e Complementaridade. Sempre o mesmo acerca do mesmo. Lisboa, INCM, 2002, p. 50-51]