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Oliver Sacks (RC) – rio da consciência

domingo 31 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

“O tempo é a substância de que sou feito”, disse Jorge Luis Borges. “O tempo é um rio que me leva embora, mas eu sou o rio.” Nossos movimentos, nossas ações estendem-se no tempo, assim como as nossas percepções, os pensamentos, os conteúdos da consciência. Vivemos no tempo, organizamos o tempo, somos inteiramente criaturas do tempo. Mas será que o tempo em que vivemos, ou segundo o qual vivemos, é contínuo como o rio de Borges? Ou será mais comparável a uma sucessão de momentos descontínuos, como as contas de um colar?

David   Hume  , no século VIII, defendia a ideia de momentos descontínuos, e para ele a mente nada mais era do que “um pacote ou coleção de percepções distintas, que sucedem umas às outras com uma rapidez inconcebível e estão perpetuamente em fluxo e movimento”.

William James   escreveu em 1890, nos seus Princípios de psicologia, que a “visão humiana”, como ele a chamava, era ao mesmo tempo eloquente e exasperante. Para começar, ela parecia contrariar a intuição. Em seu famoso capítulo sobre o “fluxo de pensamento”, James observou que a consciência, para seu dono, parece ser sempre contínua, “sem ruptura, brecha ou divisão”, jamais “cortada em pedacinhos”. O conteúdo da consciência pode estar sempre em mudança, porém nós passamos sem solavancos de um pensamento a outro, de um percepto a outro, sem interrupções, sem pausas. Para James, o pensamento fluía, daí sua introdução do termo “fluxo de consciência”. Mas ele se perguntava: “Será que a consciência realmente é descontínua? […] Será que apenas parece contínua a si mesma, por uma ilusão análoga à do zootrópio?”.

Antes de 1830, aproximadamente, não tínhamos como fazer representações ou imagens dotadas de movimento (exceto produzindo um modelo com o funcionamento real). Tampouco ocorreria à maioria das pessoas que uma sensação ou ilusão de movimento pudesse ser transmitida por imagens estáticas. Como é que imagens poderiam denotar movimento sendo imóveis? A própria ideia era paradoxal, uma contradição. Mas o zootrópio provou que era possível combinar imagens individuais no cérebro para obter a ilusão de movimento contínuo.

O zootrópio (e muitos outros aparelhos semelhantes, com uma variedade de nomes) era bastante popular na época de James, e dificilmente faltava em um lar de classe média vitoriana. Esses instrumentos possuíam um tambor ou disco no qual eram pintados ou colados desenhos em sequência — “quadros congelados” de animais em movimento, jogos de bola, acrobatas em ação, plantas crescendo. Girava-se o tambor ou disco, e os desenhos separados eram vistos em rápida sucessão; a uma velocidade crítica, de repente isso gerava a percepção de uma imagem única a mover-se constantemente. Embora os zootrópios fossem muito procurados como brinquedos, originalmente foram projetados (em geral, por cientistas ou filósofos) com um propósito muito sério: esclarecer os mecanismos do movimento animal e da própria visão.

Se James tivesse escrito alguns anos mais tarde, poderia ter usado a analogia com o cinema. Um filme, com seu fluxo conciso de imagens ligadas tematicamente, sua narrativa visual integrada pelo ponto de vista e valores de seu diretor, é uma boa metáfora para o fluxo de consciência. Os recursos técnicos e conceituais do cinema — zoom, fading, dissolução, omissão, alusão e justaposição de todo tipo — imitam bem e de muitos modos os fluxos e guinadas da consciência.

Henri Bergson   usou essa analogia em seu livro de 1907, A evolução criadora, no qual toda uma seção trata do “mecanismo cinematográfico do pensamento e a ilusão mecanicista”. Porém, quando Bergson falava em “cinematografia” como um mecanismo elementar do cérebro e da mente, ele se referia a um tipo muito especial de cinematografia, no qual os “instantâneos” não eram isoláveis uns dos outros, e sim ligados organicamente. Em Tempo e livre-arbítrio, ele escreveu que esses momentos de percepção “permeiam-se uns aos outros”, “fundem-se” uns nos outros, como as notas de uma composição musical (em contraste com “as batidas vazias e sucessivas de um metrônomo”).

James também escreveu sobre conectividade e articulação, e para ele esses momentos são ligados por toda a trajetória e tema de uma vida:

O conhecimento de alguma outra parte do fluxo, passada ou futura, próxima ou remota, sempre se mistura ao nosso conhecimento do presente.

[…] Essas remanescências de velhos objetos, essas chegadas de novos, são os germes da memória e da expectativa, o senso retrospectivo e prospectivo de tempo. Fornecem à consciência aquela continuidade sem a qual ela não poderia ser chamada de fluxo.

No mesmo capítulo, sobre a percepção do tempo, James cita uma fascinante conjectura de James Mill (o pai de John Stuart Mill), sobre como poderia ser a consciência se ela fosse descontínua, um colar de contas de sensações e imagens separadas: “Nunca poderíamos ter conhecimento algum exceto o do instante presente. Cada uma das nossas sensações, no momento em que cessasse, desapareceria para sempre, e nós seríamos como se nunca tivéssemos sido. […] Seríamos absolutamente incapazes de adquirir experiência”.

James se pergunta se a existência poderia realmente ser possível nessas circunstâncias, com a consciência reduzida a um “lampejo de vagalume […] [com] tudo além dele na escuridão total”. Essa é exatamente a condição de uma pessoa com amnésia, embora neste caso o “momento” possa ser medido em apenas alguns segundos. Quando descrevi meu paciente amnésico Jimmie, o “Marinheiro Perdido” de O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, escrevi: “Ele está […] isolado em um único momento da existência, rodeado por um fosso ou lacuna de esquecimento. […] É um homem sem um passado (ou futuro), encalhado em um momento sem significado que muda constantemente”.


Ver online : O Rio da Consciência