s. f. (pal. hindustani que significa ilusão), no Vedanta e na filosofia hindu em geral, conjunto dos desejos e tendências individuais que mascaram nosso verdadeiro destino; maya é o “véu da ilusão”, que se assimila à miragem do deserto. Designa o mais baixo grau do conhecimento segundo a filosofia búdica (e na filosofia de Schopenhauer, que é inspirada na meditação hindu). [Larousse]
Quem compreendeu com clareza, a partir do mencionado ensaio introdutório, a identidade perfeita do conteúdo do princípio de razão em meio à diversidade de suas figuras, também ficará convencido do quão importante é precisamente o conhecimento da mais simples de suas formas, reconhecida por nós no tempo, para a intelecção de sua essência mais íntima. Assim como no tempo cada momento só existe na medida em que aniquila o precedente, seu pai, para por sua vez ser de novo rapidamente aniquilado; assim como passado e futuro (independentes das consequências de seu conteúdo) são tão nulos quanto qualquer sonho, o presente, entretanto, é somente o limite sem extensão e contínuo entre ambos – assim também reconheceremos a mesma nulidade em todas as outras formas do princípio de razão, convencendo-nos de que, do mesmo modo que o tempo, também o espaço e, como este, tudo que se encontra simultaneamente nele e no tempo, portanto tudo o que resulta de causas e motivos, [48] possui apenas existência relativa, existe apenas por e para um outro que se lhe assemelha, isto é, por sua vez também relativo. O essencial dessa visão é antigo: Heráclito lamentava nela o fluxo eterno das coisas; Platão desvalorizava seu objeto como aquilo que sempre vem-a-ser, sem nunca ser; Espinosa o nomeou meros acidentes da substância única, existente e permanente; Kant contrapôs o assim conhecido, como mero fenômeno, à coisa-em-si; por fim, a sabedoria milenar dos indianos diz: “Trata-se de MAYA, o véu da ilusão, que envolve os olhos dos mortais, deixando-lhes ver um mundo do qual não se pode falar que é nem que não é, pois assemelha-se ao sonho, ou ao reflexo do sol sobre a areia tomado a distância pelo andarilho como água, ou ao pedaço de corda no chão que ele toma como uma serpente”. (Tais comparações são encontradas, repetidas, em inumeráveis passagens dos Vedas e dos Puranas.) O que todos pensam e dizem, entretanto, não passa daquilo que nós também agora consideramos, ou seja: o mundo como representação submetido ao princípio de razão. SMVR1 Livro I §3
A questão acerca da realidade do mundo exterior, tal qual a consideramos até agora, sempre se originou de um engano da razão consigo mesma, alçado a confusão geral, de modo que a questão só podia ser respondida mediante o esclarecimento de seu conteúdo. Após o exame da essência inteira do princípio de razão, da relação entre sujeito e objeto e da índole propriamente dita da intuição sensível, a questão tinha de ser suprimida, justamente porque não lhe restou mais significação, alguma. Só que ela [58] possui ainda uma outra origem, por inteiro diferente da puramente especulativa até agora mencionada, uma origem propriamente empírica, embora sempre suscitada de um ponto de vista especulativo. Dessa perspectiva, possui um sentido muito mais compreensível que o anterior. Trata-se do seguinte. Temos sonhos. Não seria toda a vida um sonho? Ou, dito de maneira mais precisa: há um critério seguro para distinguir o sonho da realidade, os fantasmas dos objetos reais? A alegação de que o sonhado possui vivacidade e clareza menores que a intuição efetiva não merece ser levada em conta, pois ninguém ainda teve ambos presentes para poder efetuar a comparação, mas se pôde apenas comparar a lembrança do sonho com a realidade presente. Kant soluciona assim a questão: “O encadeamento das representações entre si conforme a lei de causalidade diferencia a vida do sonho”. Porém, também no sonho cada coisa particular se encadeia conforme o princípio de razão em todas as suas figuras, e tal encadeamento é quebrado meramente entre a vida e o sonho, e entre os sonhos isolados. A resposta de Kant, pois, só poderia soar assim: o sonho longo (a vida) tem encadeamento completo nele mesmo conforme o princípio de razão, mas não o possui com os sonhos breves, embora cada um destes, neles mesmos, possua o mesmo encadeamento. Entre estes e aquele, por conseguinte, rompe-se a ponte e ambos se diferenciam. – Não obstante, estabelecer segundo esse critério uma investigação sobre se algo aconteceu ou foi sonhado seria muito difícil e amiúde impossível; pois de modo algum estamos em condições de seguir membro a membro o encadeamento causal entre cada acontecimento vivenciado e o momento presente, e nem por isso podemos considerá-los como sonhados. Daí normalmente não utilizarmos na vida real aquele tipo de investigação para diferenciar o sonho da realidade. O único critério seguro para diferenciação entre os dois não é outro senão o inteiramente empírico do despertar, através do qual, com certeza, o encadeamento causal entre os acontecimentos sonhados e os da vida desperta são sensível e expressamente rompidos. Uma prova esplêndida disso fornece a observação que Hobbes faz no Leviatã, capítulo 2, a citar: que facilmente tomamos os sonhos por realidade quando, sem intencioná-lo, dormimos vestidos, e mais ainda quando, além disso, algum projeto ou negócio absorve todos os nossos [59] pensamentos e nos ocupa tanto no sonho quanto no despertar. Nesses casos, o despertar é quase tão pouco notado quanto o adormecer. Sonho e realidade fluem conjuntamente, confundindo-se. Resta então, obviamente, apenas a aplicação do critério kantiano: mas se, depois, como muitas vezes é o caso, o encadeamento causal com o presente, ou a sua ausência, não pode absolutamente ser estabelecido, segue-se que para sempre fica indecidido se um evento ocorreu ou foi sonhado. Aqui, de fato, é trazido bastante próximo de nós o parentesco íntimo entre vida e sonho. Não queremos nos envergonhar em admiti-lo, após ele ter sido reconhecido e expresso por muitos espíritos magnânimos. Os Vedas e Puranas não sabem de comparação melhor para todo o conhecimento do mundo efetivo, que eles chamam manto de MAYA, nem empregam outra mais frequentemente do que o sonho, Platão fala repetidas vezes que as pessoas vivem apenas em sonho, unicamente o filósofo se empenha em acordar. Píndaro diz (II. c 135): [citação em grego e latim: “O homem é o sonho de uma sombra”] e Sófocles: [citação em grego e latim de Ajax I 25: “Vejo que nós, viventes, nada somos senão figuras ilusórias, imagens de sombras fugidias”]. SMVR1 Livro I §5
No ápice da arte poética, tanto no que se refere à grandeza do seu efeito quanto à dificuldade da sua realização, deve-se ver a tragédia; e de fato ela assim foi reconhecida. Observe-se aqui algo de suma significação para toda a nossa visão geral de mundo: o objetivo dessa suprema realização poética não é outro senão a exposição do lado terrível da vida, a saber, o inominado sofrimento, a miséria humana, o triunfo da maldade, o império cínico do acaso, a queda inevitável do justo e do inocente. E em tudo isso se encontra uma indicação significativa da índole do mundo e da existência. É o conflito da Vontade consigo mesma, que aqui, desdobrado plenamente no grau mais elevado de sua objetidade, entra em cena de maneira aterrorizante. Ele se torna visível no sofrimento da humanidade, em parte produzido por acaso e erro, que se apresentam como os senhores do mundo e personificados como destino e perfídia, os quais aparecem enquanto intencionalidade; em parte advindo da humanidade mesma, por meio dos entrecruzados esforços voluntários dos indivíduos e da maldade e perversão da maioria. Trata-se de uma única e mesma Vontade que em todos vive e aparece, cujos fenômenos, entretanto, combatem entre si e se entredevoram. A Vontade aparece num dado indivíduo mais violentamente, em outro mais fracamente; aqui e ali ela aparece com mais, ou menos, consciência, sendo mais, ou menos, abrandada pela luz do conhecimento. Por fim, esse conhecimento, no indivíduo purificado e enobrecido pelo sofrimento mesmo, atinge o ponto no qual o fenômeno, o véu de MAYA, não mais o ilude. Ele vê através da forma do fenômeno, do principium individuationis, com o que também expira o egoísmo nele baseado. Com isso, os até então poderosos motivos perdem o seu poder e, em vez deles, o conhecimento perfeito da essência do mundo, atuando como quietivo da Vontade, produz a resignação, a renúncia, não apenas da vida, mas de toda a Vontade de vida mesma. Assim, vemos ao fim da tragédia os mais nobres, após longa luta e sofrimento, desistirem dos alvos até então [333] perseguidos veementemente, e, para sempre, abdicam de todos os gozos da vida, ou desta se livram com alegria, como fez o príncipe constante de Calderon, ou a Gretchen no Fausto, ou Hamlet, a quem Horácio gostaria de seguir voluntariamente, porém aquele pede que permaneça e respire por mais algum tempo neste ingrato mundo de dores, a fim de esclarecer o destino de Hamlet e zelar por sua memória. Do mesmo modo a donzela de Orleans e a noiva de Messina. Todos morrem purificados pelo sofrimento, ou seja, após a Vontade de vida já ter antes neles morrido. A palavra final no Maomé de Voltaire expressa isso literalmente, quando a agonizante Palmira diz a Maomé: “O mundo é para tiranos, vive!” – Por sua vez, a exigência da chamada justiça poética baseia-se sobre o desconhecimento total da essência da tragédia, em verdade desconhecimento da essência do mundo. Da maneira mais gritante percebe-se essa inépcia literária nas críticas obtusas, coerente com sua ingenuidade, que o Dr. Samuel Johnson dirige a peças isoladas de Shakespeare, censurando a sua licenciosidade: qual fato levou as Ofélias, as Desdêmonas, as Cordélias a serem culpáveis? – Só a visão de mundo rasa, otimista, racional-protestante, ou, melhor dizendo, judaica, fará a exigência de justiça poética para, com a satisfação desta, encontrar a sua própria. O sentido verdadeiro da tragédia reside na profunda intelecção de que os heróis não expiam os seus pecados individuais, mas o pecado original, isto é, a culpa da existência mesma: Pues el delito mayor / Del hombre es haber nacido [“Pois o crime maior / Do homem é ter nascido.”] como Calderon exprime com franqueza. SMVR1 Livro III §51
O ponto de vista dado e o modo de abordagem indicado já sugerem que neste livro de ética não se devem esperar prescrições nem doutrinas do dever, muito menos o estabelecimento de um princípio moral absoluto parecido a uma receita universal para a produção de todas as virtudes. Também não falaremos de “dever incondicionado”, porque este, como exposto no apêndice, contém uma contradição, nem tampouco falaremos de uma “lei para a liberdade” (que se encontra no mesmo caso). Não discursaremos sobre o “dever”, pois, assim o fazendo, falamos a crianças e povos em sua infância, e não àqueles que assimilaram em si mesmos toda a cultura de uma época madura. De fato, é uma contradição flagrante denominar a Vontade livre, e no entanto prescrever-lhe leis segundo as quais deve querer: “deve querer!”, ferro-madeira [sideroxylon]! À luz de toda [354] a nossa visão, contudo, a Vontade é não apenas livre mas até mesmo todo-poderosa. Dela provém não só seu agir, mas também seu mundo. Tal qual ela é, assim aparecerá seu agir assim aparecerá seu mundo: ambos são seu autoconhecimento e nada mais. Ela determina a si e justamente por aí determina seu agir e seu mundo: estes dois são ela mesma, pois exterior à Vontade não há nada. Só assim ela é verdadeiramente autônoma; sob qualquer outro aspecto, entretanto, é heterônoma. Nossa tarefa filosófica, portanto, só pode ir até a interpretação e a explanação do agir humano e suas diversas e até mesmo opostas máximas, das quais ele é a expressão viva, de acordo sua essência mais íntima e conteúdo. Isso será feito em conexão com nossa discussão prévia e exatamente da mesma maneira como até então procuramos interpretar os demais fenômenos do mundo, ou seja, trazendo a essência mais íntima deles a conceitos distintos e abstratos. Nossa filosofia afirmará aqui a mesma imanência afirmada em tudo o que foi antes discutido. Não usará, e assim respeita a grande doutrina de Kant, as formas do fenômeno, cuja expressão geral é o princípio de razão, como uma vara de saltar para sobrevoar o fenômeno, único a lhes conferir significação, e depois pousar no vasto domínio das ficções vazias. Este mundo efetivo da cognoscibilidade, no qual estamos e que está em nós, permanece como matéria e limite de nossa consideração. Mundo tão rico em conteúdo que nem a mais profunda investigação da qual o espírito humano é capaz poderia esgotá-lo. Ora, visto que o mundo efetivo e cognoscível jamais recusará matéria e realidade também para nossas considerações éticas, tampouco quanto o recusou para as considerações anteriores, nada será menos necessário do que procurarmos refúgio em conceitos negativos e vazios de conteúdo, para assim fazer acreditar que dizemos algo quando levantamos solenemente as sobrancelhas e pronunciamos “absoluto”, “infinito”, “supra-sensível” e semelhantes puras negações (citação em grego e latim de Jul. or 5: “Trata-se apenas de uma negação, unida com noção obscura”), as quais, antes, poder-se-ia chamar de Terra Alada dos Cucos. Não colocaremos sobre a mesa tais [355] conclusões vazias de conteúdo. Enfim, tanto agora quanto nos livros precedentes não contamos histórias, fazendo-as valer por filosofia, pois somos da opinião de que está infinitamente distante do conhecimento filosófico do mundo quem imagina poder conceber a essência dele historicamente, por mais que faça uso de disfarces. Este é o caso, entretanto, assim que, numa visão do ser em si do mundo, encontre-se algum tipo de vir-a-ser, ou tendo-vindo-a-ser [Gewordensein], ou vir-vir-a-ser [Werdenwerden], algo parecido a um antes e um depois que detém a última significação, com o que, em consequência, distinta ou indistintamente é procurado e achado um ponto inicial e final do mundo, bem como o caminho entre eles, e o indivíduo filosofante conhece exatamente a sua posição nesse caminho. Semelhante forma histórica de filosofar fornece na maioria das vezes uma cosmogonia, a qual admite muitas variedades, ou então um sistema da emanação, doutrina da queda; ou ainda, por conta da dúvida desesperadora advinda dessas tentativas estéreis, é-se levado a um último caminho, oferecendo-se uma doutrina do constante vir-a-ser, brotar, nascer, vir a lume a partir da escuridão, do fundamento obscuro, do fundamento originário, do fundamento infundado e outros semelhantes disparates. Porém, tudo isso se pode rapidamente descartar mediante a observação de que toda uma eternidade, isto é, um tempo infinito já transcorreu até o momento presente, pelo que tudo o que pode e deve vir-a-ser já teve de vir a ser. Todas essas filosofias históricas, não importa seus ares, fazem de conta que Kant nunca existiu e tomam O tempo por uma determinação da coisa-em-si, com o que permanecem naquilo denominado por Kant fenômeno, em oposição à coisa-em-si, e por Platão o que sempre vem-a-ser (sem nunca ser), em oposição ao ser (que nunca vem-a-ser); ou finalmente aquilo denominado pelos indianos Véu de MAYA. Trata-se aqui precisamente do conhecimento que pertence ao princípio de razão, com o qual jamais se atinge a essência íntima das coisas, mas somente se perseguem fenômenos ao infinito, num movimento sem fim e sem alvo – semelhante [356] ao esquilo que corre na roda de uma gaiola – até que se cansa e pára, acima ou abaixo, num ponto aleatório, para o qual então se exige respeito. O autêntico modo de consideração filosófico do mundo, ou seja, aquele que nos ensina a conhecer a sua essência íntima e, dessa maneira, nos conduz para além do fenômeno, é exatamente aquele que não pergunta “de onde”, “para onde”, “por que”, mas sempre e em toda parte pergunta apenas pelo que do mundo, vale dizer, não considera as coisas de acordo com alguma relação, isto é, vindo a ser e perecendo, numa palavra, conforme uma das quatro figuras do princípio de razão, mas, diferentemente, tem por objeto precisamente aquilo que permanece após eliminar-se o modo de consideração que segue o referido princípio, noutros termos, tem por objeto o ser do mundo sempre igual a si e a aparecer em todas as relações, porém sem se submeter a estas, numa palavra, as Ideias mesmas. A filosofia, como a arte, procede de tal conhecimento. Ora, como veremos neste livro, também é desse conhecimento que procede aquela disposição de espírito, única que conduz à verdadeira santidade e à redenção do mundo. SMVR1 Livro IV §53
Entretanto, trouxemos agora à consciência distinta que, embora o fenômeno particular da Vontade principie e finde temporalmente, a Vontade mesma, como coisa-em-si, em nada é afetada, muito menos o correlato de todo objeto, o sujeito que conhece e nunca é conhecido; e que à Vontade de vida a vida é certa. Porém, aqui não se deve pensar nas doutrinas da perduração, pois à Vontade, considerada como coisa-em-si, assim como ao puro sujeito do conhecer, eterno olho cósmico, cabe tão pouco uma permanência quanto um perecimento, pois estas são determinações válidas exclusivamente no tempo, enquanto a Vontade e o puro sujeito do conhecer se encontram exteriores a ele. Daí se segue que o egoísmo do indivíduo (este fenômeno particular da Vontade iluminado pelo sujeito do conhecer) pode, a partir da visão que expomos, tão pouco haurir alimento e consolo para seu desejo de afirmar-se por um tempo infinito, quanto o poderia a partir do conhecimento de que após sua morte o restante mundo exterior permanece no tempo, o que é apenas a expressão daquela mesma visão, porém considerada de maneira objetiva, logo, temporalmente. Pois só como fenômeno alguém é transitório; ao contrário, como [366] coisa-em-si, é destituído de tempo, portanto sem fim. Mas também só como fenômeno alguém é diferente das outras coisas do mundo; como coisa-em-si é a Vontade que aparece em tudo, a morte removendo a ilusão que separa a consciência própria das demais: e isto é a perduração. Ora, não ser atingido pela morte, algo válido exclusivamente para o indivíduo como coisa-em-si, coincide, para o fenômeno, com a perduração do mundo exterior que resta [No Veda isso é expresso ao se dizer que quando um homem morre, sua faculdade de ver se torna una com o sol, seu olfato com a terra, seu paladar com a água. sua audição com o ar, sua fala com o fogo, e assim por diante (Upanixade, I, p 249 ss.); e ainda pelo fato de que, em cerimônia especial, a pessoa moribunda transfere um por um seus sentidos e faculdades inteiras ao filho, como se fosse continuar a viver nele (ibidem, 2, p 82 ss.)]. Daí o fato de que a consciência interna e meramente sentida Daquilo que acabamos de elevar ao conhecimento distinto, evita, como foi dito, o envenenamento da vida do ser racional pelo pensamento sobre a morte, já que tal consciência é a base daquele ânimo vital que conserva cada vivente e o capacita a continuar vivendo serenamente, como se não existisse morte, ao menos pelo tempo em que tem em mira a vida e para ela se dirige. Todavia, nada impede que, quando a morte entre em cena para o indivíduo no particular e na efetividade, ou apenas na fantasia, ele tenha então de encará-la nos olhos, sendo assim assaltado pelo medo da morte, tentando de todas as maneiras escapar dela, pois, pelo tempo em que seu conhecimento dirigia-se à vida enquanto tal, era apto a reconhecer a imortalidade; contudo, quando a morte lhe aparece diante dos olhos, conhece-a como aquilo que é, ou seja, o fim, no tempo, do fenômeno temporal particular. Assim, o que tememos na morte de maneira alguma é a dor, pois esta reside manifestamente do lado de cá. Ademais, muitas vezes nos refugiamos da dor justamente na morte, e inversamente, às vezes enfrentamos a dor mais terrível só para escapar da morte por mais alguns instantes, apesar de esta poder ser rápida e fácil. Portanto, distinguimos entre dor e morte como dois males inteiramente diferentes. O que de fato tememos na morte é o sucumbir do indivíduo, como ela sonoramente proclama ser. Ora, como o indivíduo é a Vontade de vida mesma [367] numa objetivação singular, todo o seu ser se insurge contra a morte. – No entanto, ali onde o sentimento nos deixa sem ajuda, e numa tal amplitude, a razão pode entrar em cena e superar em grande parte a impressão adversa dele, ao colocar-nos num ponto de vista superior, de onde temos em mira não o particular, mas o todo. Nesse sentido, um conhecimento filosófico da essência do mundo que chegasse ao ponto de vista no qual estamos agora em nossa consideração, mas não fosse mais adiante, poderia, mesmo neste ponto de vista, superar os terrores da morte, desde que no indivíduo a reflexão tivesse poder sobre o sentimento imediato. Um homem que assimilasse firmemente em seu modo de pensar as verdades até agora referidas, e, ao mesmo tempo, não tivesse chegado a conhecer por experiência própria ou por uma intelecção mais ampla que o sofrimento contínuo é essencial a toda vida; e na vida encontrasse satisfação e de bom grado nela se deleitasse, e, ainda, por calma ponderação, desejasse que o decurso de sua vida, tal qual até então foi experienciado, devesse ser de duração infinda ou de retorno sempre novo; cujo ânimo vital fosse tão grande que, no retorno dos gozos da vida, de boa vontade e com prazer assumisse as suas deficiências e tormentos aos quais está submetido; um tal homem, ia dizer, se situaria “com firmes, resistentes ossos sobre o arredondado e duradouro solo da terra” e nada teria a temer. Armado com o conhecimento que lhe conferimos, veria com indiferença a morte voando em sua direção nas asas do tempo, considerando-a como uma falsa aparência, um fantasma impotente, amedrontador para os fracos, mas sem poder algum sobre si, que sabe: ele mesmo é a Vontade, da qual o mundo inteiro é objetivação ou cópia; ele, assim, tem não só uma vida certa mas também o presente por todo o tempo, presente que é propriamente a forma única do fenômeno da Vontade; portanto, nenhum passado ou futuro infinitos, no qual não existiria, pode lhe amedrontar, pois considera a estes como uma miragem vazia e um Véu de MAYA. Por conseguinte, teria tão pouco temor da morte quanto o sol tem da noite. – No Bhagavad-Gita Krishna coloca seu noviço, Arjuna, nesse ponto de vista, quando este, cheio de desgosto (parecido a Xerxes) pela visão dos exércitos prontos para o combate, perde a coragem e quer evitar a luta, a fim de evitar o sucumbir de tantos milhares. E quando Krishna o conduz a esse ponto de vista, e, assim, a morte daqueles [368] milhares não o pode mais deter: dá então o sinal para a batalha. – Tal ponto de vista é também descrito no Prometeu de Goethe, especialmente quando diz: Hier sitz ich, forme Menschen / Nach meinem Bilde, / Ein Geschlecht, das mir gleich sei, / Zu leiden, zu weinen, / Zu genießen uni zu freuen sich, / Und dein nicht zu achten, / Wie ich! [Aqui estou a formar o homem / Segundo minha imagem, / Uma raça igual a mim, / Para sofrer e chorar, / Ter prazer e alegrar-se, / E para te ignorar, / Como eu!]. SMVR1 Livro IV §54
O impulso sexual também se confirma como a mais decidida e forte afirmação da vida pelo fato de, para o homem natural, como para o animal, ele ser o fim último, o objetivo supremo de sua vida. Autoconservação é seu primeiro esforço e, tão logo essa seja assegurada, empenha-se só pela propagação da espécie. Enquanto mero ser natural não pode aspirar a nada [423] mais. A natureza, cuja essência íntima é a Vontade de vida, impulsiona com todas as forças o homem e o animal para a propagação. Após a natureza ter alcançado pelo indivíduo o seu objetivo, ela se torna por inteiro indiferente ao sucumbir dele, visto que, como Vontade de vida, preocupa-se tão-somente com a conservação da espécie, o indivíduo sendo-lhe nulo. – Ora, em virtude de a essência íntima da natureza, a Vontade de vida, expressar-se da maneira mais forte no impulso sexual, os poetas e filósofos antigos, dentre eles Hesíodo e Parmênides, disseram bastante significativamente que eros é o primeiro, o criador, o princípio do qual provêm todas as coisas (cf. Aristóteles, Metafísica, I, 4). Péricles disse: [citação em grego e latim: “Deus, quando quis criar o mundo, transformou-se a si mesmo em Eros”, Proclus ad Plat. Tim., I. III]. – Um tratamento detalhado desse tema por G. F. Schoemann veio recentemente a lume sob o título De cupidine cosmogonico, 1852. O MAYA do indianos, cuja obra e tecido é todo o mundo aparente, também foi parafraseado por amor. SMVR1 Livro IV §60
Decerto, para o conhecimento, nos moldes em que se apresenta a serviço da Vontade e como chega ao indivíduo enquanto tal, o mundo não aparece naquela forma em que finalmente é desvelado ao investigador, ou seja, como a objetidade de uma única e mesma Vontade de vida, que é o investigador mesmo; mas, como dizem os indianos, o Véu de MAYA turva o olhar do indivíduo comum. A este se mostra, em vez da coisa-em-si, meramente o fenômeno no tempo e no espaço, no principio individuationis e nas demais figuras do princípio de razão. Em tal forma de conhecimento limitado, o indivíduo não vê a essência das coisas, que é una, mas seus fenômenos isolados, separados, inumeráveis, bastante diferentes e opostos entre si. A ele aparece a volúpia como uma coisa, e o tormento como outra diferente; este homem como atormentado e assassino, aquele outro como mártir e vítima; a maldade como uma coisa, o padecimento como outra. Vê uma pessoa vivendo na alegria, na abundância e em volúpias, e, ao mesmo tempo, vê nas portas dela outro morrer atormentado por miséria e frio. Daí perguntar: onde se encontra a retaliação? Ora, ele mesmo, em ímpeto veemente da Vontade, que é a sua origem e a sua essência, lança-se às volúpias e aos gozos da vida, abraça-os firmemente e não sabe que, precisamente por tais atos de sua vontade, agarra e aperta a si firmemente as dores e os tormentos da vida, cujo visão o terrifica. Vê o padecimento, a maldade no mundo, mas, longe de reconhecer que ambos não passam de aspectos diferentes do fenômeno de uma Vontade de vida, toma-os como diferentes, sim, completamente opostos, e procura amiúde, através do mal, isto é, causando o sofrimento alheio, escapar do mal, do sofrimento do próprio indivíduo, envolto como está no principio individuationis, enganado pelo Véu de MAYA. – Pois, assim como em meio ao mar proceloso que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda montanhas d’água, o barqueiro está sentado no seu pequeno barco, confiante em sua frágil [450] embarcação, assim também o homem individual está sentado tranquilo em meio a um mundo pleno de tormentos, apoiado e confiante no principium individuationis, ou modo no qual o indivíduo conhece as coisas como fenômeno. O mundo ilimitado, e cheio de sofrimento em toda parte, no passado infinito, no futuro infinito, é-lhe estranho, sim, é para ele uma fábula: sua pessoa que desaparece, seu presente sem extensão, sua gratificação momentânea, só isso possui realidade para ele. A fim de mantê-los faz de tudo, pelo menos durante o tempo em que seus olhos não são abertos por um conhecimento melhor. Até então, só na profundeza mais interior de sua consciência vive o pressentimento obscuro de que talvez tudo isso não lhe seja totalmente estranho, mas tem uma ligação consigo, da qual o principium individuationis não pode protegê-lo. Desse pressentimento procede aquele inerradicável assombro comum a todos os homens (talvez até mesmo aos mais inteligentes animais) que subitamente os assalta quando, por algum acaso, erra no principio individuationis, na medida em que o princípio de razão, em alguma de suas figuras, parece sofrer uma exceção: como, por exemplo, quando parece que algum acontecimento se dá sem causa, ou um morto reaparece, ou de alguma maneira o já acontecido ou o futuro se tornam presentes, ou o distante se aproxima. O terror medonho em face de tais ocorrências baseia-se em errarmos com as formas cognitivas do fenômeno, únicas a separarem o nosso indivíduo do mundo restante. Essa separação, entretanto, reside exclusivamente no fenômeno, não na coisa-em-si: precisamente aí repousa a justiça eterna. De fato, toda felicidade temporal se situa, e toda sabedoria procede, de um solo minado. Elas protegem as pessoas contra desgraças e as provêm com prazeres; porém, a pessoa é mero fenômeno, e sua diferença dos outros indivíduos e a isenção de sofrimento destes assentam-se sobre a forma do fenômeno, sobre o principio individuationis. Assim, em conformidade com a verdadeira essência das coisas, cada um de nós carrega todos os sofrimentos do mundo como seus, sim, tem de considerar todos os sofrimentos possíveis como reais para si, enquanto é firme Vontade de vida, isto é, enquanto afirme a vida com toda força. Para o conhecimento que vê através do principium individuationis, uma vida feliz no tempo, presenteada pelo acaso, ou conquistada deste pela sabedoria em meio ao sofrimento de inumeráveis outros, é apenas um [451] sonho de um mendigo, no qual é um rei, porém tem de acordar e reconhecer que era tão-só uma ilusão fugidia aquilo que o separava do sofrimento da sua vida. SMVR1 Livro IV §63
Por mais que o Véu de MAYA envolva espessamente os sentidos da pessoa má, noutros termos, por mais firmemente que ela se enrede no principio individuationis, de acordo com o qual se considera absolutamente diferente dos demais seres e deles separada por um amplo abismo, conhecimento ao qual adere com todo o seu vigor, visto que somente ele se conforma ao seu egoísmo e lhe dá sustento, de maneira que o conhecimento é quase sempre corrompido pela vontade – lateja, entretanto, no mais íntimo de sua consciência o pressentimento de que essa ordem de coisas é simples fenômeno; em sisi mesmo, entretanto, trata-se de algo bem diferente; e não obstante o tempo e o espaço que a separam dos demais indivíduos e dos incontáveis tormentos que padecem, inclusive através dela, e os apresentar como estrangeiros, ainda assim é a Vontade de vida una e em si alheia à [465] representação e às suas formas que neles todos aparece, porém aqui, desconhecendo-se, aponta contra si as próprias armas e, ao procurar o aumento do bem-estar em um de seus fenômenos, precisamente por aí impõe o grande sofrimento ao outro. A má pessoa é justamente toda essa Vontade e por conseguinte não é exclusivamente quem atormenta mas ao mesmo tempo quem é atormentado, de cujo sofrimento é separada e mantida livre tão-somente por um sonho enganoso, cujas formas são o espaço e o tempo; sonho que todavia acaba e quem é mau tem em verdade de pagar o prazer com o tormento. Todo sofrer conhecido apenas como possível diz-lhe respeito tanto quanto a Vontade de vida, pois só para o conhecimento do indivíduo, por intermédio do principii individuationis, existem, como diferentes, a possibilidade e a efetividade, o próximo e o distante no tempo e no espaço, mas não em si mesmos. É essa verdade que, miticamente adaptada ao princípio de razão, é expressa no mito da transmigração das almas e assim traduzida na forma do fenômeno. No entanto, a sua mais pura expressão, livre de quaisquer misturas,’encontra-se naquele tormento obscuramente sentido e sem consolo, chamado peso de consciência. Porém, este também nasce de um segundo e imediato conhecimento intimamente associado àquele primeiro, a saber, o da força com a qual a Vontade de vida se afirma no indivíduo mau e vai muito além de seu fenômeno individual até a completa negação da mesma Vontade que aparece em outro indivíduo. Consequentemente, o horror íntimo do malvado em relação aos seus próprios atos, o qual ele tenta ocultar de si, contém ao mesmo tempo, junto ao pressentimento da nulidade e mera aparência do principii individuationis e da diferença por este posta entre si e outrem, também o conhecimento da veemência da própria vontade, da violência com a qual se entregou e apegou à vida, precisamente esta vida observada diante de si em seu lado terrível no tormento provocado em alguém por ele oprimido, e com quem, entretanto, é tão firmemente enlaçado que, exatamente dessa forma, o que há de mais horrível sai de si mesmo como um meio para afirmação completa da sua vontade. Reconhece a si como fenômeno concentrado da Vontade de vida, sente até que ponto está entregue à vida e com isto aos inumeráveis sofrimentos essenciais a esta, pois possui tempo sem fim e espaço sem fim para suprimir a diferença entre possibilidade e efetividade e, [466] assim, transformar todos os tormentos até agora por ele meramente conhecidos em tormentos sentidos. Os milhões de anos de constante renascimento decerto subsistem apenas em conceito, bem como só em conceito existem todo o passado e todo o futuro: o tempo preenchido, ou seja, a forma do fenômeno da Vontade é apenas o presente, e para o indivíduo o tempo é sempre novo. O indivíduo sempre se encontra nascido de novo, pois a vida é inseparável da Vontade de vida, e sua única forma é o Agora. A morte (que me seja desculpado repetir a comparação) é como o pôr-do-sol, quando o astro rei só aparentemente é tragado pela noite, mas em realidade, ele mesmo fonte de toda luz, brilha sem interrupção, trazendo novos dias a novos mundos, sempre nascendo e sempre se pondo. Princípio e fim dizem respeito apenas ao indivíduo, por meio do tempo, forma do fenômeno para a representação. Exterior ao tempo se encontra só a Vontade, a coisa-em-si de Kant, e sua objetidade adequada, as Ideias de Platão. Conseguintemente, o suicídio não fornece salvação alguma: o que cada um quer em seu íntimo, isto ele deve ser; e o que cada um É, precisamente isto ele quer. – Portanto, ao lado do conhecimento meramente sentido, da aparência e nulidade das formas da representação que separam os indivíduos, aquilo que dá à consciência moral o seu espinho é o auto-conhecimento da própria vontade e de seus graus. O decurso de vida desenha a imagem do caráter empírico, cujo original é o caráter inteligível. Ora, a má pessoa é horrorizada justamente por essa imagem, pouco importando se é produzida em grandes traços, com o que o mundo expressa a sua repugnância, ou em traços tão diminutos que só a pessoa má os vê: pois só a ela semelhantes traços concernem imediatamente. O passado seria indiferente, como mero fenômeno, e não poderia angustiar a consciência se o caráter não se sentisse livre de todo tempo, imutável através dele, pelo menos enquanto não nega a si. Eis por que coisas que aconteceram há muito tempo ainda continuam a pesar na consciência. A súplica: “Não me deixeis cair em tentação”, significa: “Não me deixeis ver quem sou”. – A violência com que o mau indivíduo afirma a vida é-lhe exibida no sofrimento por ele infligido a outrem, fazendo-lhe mensurar a distância que se encontra da renúncia e negação da Vontade, única redenção possível para o mundo e seus tormentos. Vê a extensão em que pertence ao mundo e quão [467] firmemente está ligado a ele. O sofrimento conhecido dos outros não o pôde comover; sucumbe à vida e ao sofrimento sentido. Fica em aberto se isto alguma vez irá quebrar e suplantar a veemência de sua vontade. SMVR1 Livro IV §65
Antes porém de falarmos do autêntico bom, em oposição ao mau, que já expusemos, é mister tratarmos da mera negação do mau como grau intermédio, ou seja, da justiça. O que é justo e injusto já foi acima abordado exaustivamente. Por isso aqui podemos dizer em poucas palavras o seguinte: quem reconhece e aceita voluntariamente o limite moral entre o injusto e o justo, mesmo ali onde o Estado ou outro poder não se imponha, quem, consequentemente, de acordo com a nossa explanação, jamais, na afirmação da própria vontade, vai até a negação da vontade que se expõe em outro indivíduo – é justo. Portanto, não infligirá sofrimento a outrem para aumentar o próprio bem-estar, vale dizer, não cometerá crimes, e respeitará o direito e a propriedade alheios. Vemos assim que para um semelhante homem justo, o principium individuationis não é mais, como para o homem mau, uma barreira absoluta. Ao contrário do homem mau, não afirma só o próprio fenômeno da Vontade, negando todos os demais como se fossem simples máscaras com essência totalmente diferente da sua. Ao contrário, pelo seu modo de ação, o homem justo mostra que reconhece sua essência, a Vontade de vida como coisa-em-si, também no fenômeno do outro dado como mera representação, portanto reencontra a si mesmo nesse fenômeno em um certo grau, ou seja, desiste de praticar a injustiça, isto é, não inflige injúrias. Exatamente neste grau vê através do Véu de MAYA e iguala a si o ser que lhe é exterior, sem injuriá-lo. SMVR1 Livro IV §66
Agora lhe é impossível permitir aos outros que padeçam na miséria, enquanto ele mesmo possui em abundância inclusive o supérfluo; como alguém que num dia se priva de alimento para no seguinte ter ainda mais do que efetivamente pode consumir. Pois àquele que pratica obras de amor, o Véu de MAYA se torna transparente e a ilusão do principii individuationis o abandona. Reconhece a si mesmo, à sua vontade, em cada ser, consequentemente também em quem sofre. Está livre da perfídia com a qual a Vontade de vida, desconhecendo-se a si, aqui em um indivíduo goza volúpias efêmeras e enganadoras, acolá em outro padece por isso na miséria e, dessa forma, inflige e suporta o tormento sem reconhecer que, como Tiestes, devora faminta a própria carne, e lamenta aqui o sofrimento imerecido, enquanto acolá comete crimes sem o menor pudor diante de Nemesis, sempre porque desconhece a si no fenômeno de outrem e, portanto, não percebe a justiça eterna, pois está enredada no principio individuationis, logo, no modo de conhecimento guiado pelo princípio de razão. Ser curado dessa ilusão e engano de MAYA e praticar obras de amor são uma única e mesma coisa. Estas últimas obras, entretanto, são sintomas inevitáveis e infalíveis daquele conhecimento. SMVR1 Livro IV §66
Agora, se essa visão através do principii individuationis, ou seja, esse conhecimento imediato da identidade da Vontade em todos os seus fenômenos existe num elevado grau de distinção, de imediato mostra uma influência ainda mais ampla, sobre a Vontade. Se aquele Véu de MAYA, o principium individuationis, é de tal maneira retirado aos olhos de um homem que este não faz mais diferença egoística entre a sua pessoa e a de outrem, no entanto compartilha em tal intensidade dos sofrimentos alheios como se fossem os seus próprios e assim é não apenas benevolente no mais elevado grau mas está até mesmo pronto a sacrificar o próprio indivíduo tão logo muitos outros precisem ser salvos; então, daí, segue-se automaticamente que esse homem reconhece em todos seres o próprio íntimo, o seu verdadeiro si-mesmo, e desse modo tem de considerar também os sofrimentos infindos de todos os viventes como se fossem seus: assim, toma para sisi mesmo as dores de todo o mundo; nenhum sofrimento lhe é estranho. Todos os tormentos alheios que vê e raramente consegue aliviar, todos os tormentos dos quais apenas sabe indiretamente, inclusive os que conhece só como possíveis, fazem efeito sobre o seu espírito como se fossem seus. Não é mais a alternância entre o bem e o mal-estar de sua pessoa o que tem diante dos olhos, como no caso do homem ainda envolvido pelo egoísmo, mas, ao ver através do principium individuationis, tudo lhe é igualmente próximo. Conhece o todo, apreende o seu ser e encontra o mundo entregue a um perecer constante, em esforço vão, em conflito íntimo e sofrimento contínuo. Vê, para onde olha, a humanidade e os animais sofredores. Vê um mundo que desaparece. E tudo isso lhe é agora tão próximo quanto para o egoísta a própria pessoa. Como poderia, mediante um tal conhecimento do mundo, afirmar precisamente esta vida por constantes atos da Vontade, e exatamente dessa forma atar-se cada vez mais fixamente a ela e abraçá-la cada vez mais vigorosamente? Se, portanto, quem ainda se encontra envolvido no principium individuationis conhece apenas coisas isoladas e sua relação com a própria pessoa, coisas que renovadamente se tornam motivos para seu querer, ao contrário, aquele conhecimento do todo e da essência das coisas torna-se quietivo de toda e [481] qualquer volição. Doravante a Vontade efetua uma viragem diante da vida; fica terrificada em face dos prazeres nos quais reconhece a afirmação desta. O homem, então, atinge o estado de voluntária renúncia, resignação, verdadeira serenidade e completa destituição de Vontade. – Quando às vezes em meio aos nossos duros sofrimentos sentidos, ou devido ao conhecimento vivo do sofrimento alheio e ainda envoltos pelo Véu de MAYA o conhecimento da nulidade e amargura da vida se aproxima de nós e gostaríamos de renunciar decisivamente para sempre ao espinho de suas cobiças e fechar a entrada a qualquer sofrimento, purificar-nos e santificar-nos, logo a ilusão do fenômeno nos encanta de novo e seus motivos colocam mais uma vez a Vontade em movimento. Não podemos nos libertar. As promessas da esperança, as adulações do tempo presente, a doçura dos gozos, o bem-estar que fazem a nossa pessoa partícipe da penúria de um mundo sofrente sob o império do acaso e do erro atraem-nos novamente ao mundo e reforçam os nossos laços de ligaçãg com ele. Por isso Jesus diz: “E mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus”. SMVR1 Livro IV §68
De tudo o que foi dito até agora segue-se que a negação da Vontade de vida, ou – é o mesmo – a resignação completa, a santidade, sempre procede do quietivo da Vontade que é o conhecimento do seu conflito interno e da sua nulidade essencial, a expressarem-se no sofrer de todo vivente. A diferença que expusemos como dois caminhos reside em se o conhecimento advém do simples e puro sofrimento conhecido e livremente adquirido por intermédio da visão através do principii individuationis, ou do sofrimento sentido imediatamente. Salvação verdadeira, redenção da vida e do sofrimento, é impensável sem a completa negação da Vontade. Até então cada um não passa dessa Vontade, cujo fenômeno é uma existência efêmera, um esforço sempre nulo e continuamente malogrado, o mundo tal qual exposto, cheio de sofrimento, ao qual todos pertencem irrevogavelmente de maneira igual. Pois encontramos acima que à Vontade de vida a vida é sempre certa, e sua única forma verdadeira é o presente, ao qual nunca escapa, por mais que nascimento e morte governem no fenômeno. Um mito indiano exprime isso quando diz: “eles renascerão ‘. A grande diferença ética dos caracteres tem a seguinte significação: a pessoa má se encontra infinitamente distante de atingir o conhecimento a partir do qual provém a negação da Vontade e, por conseguinte, é em verdade efetivamente presa de todos os tormentos que aparecem na vida como possíveis, pois até mesmo o estado atual e feliz de sua pessoa nada é senão um fenômeno intermediado pelo principium individuationis, ilusão de MAYA, sonho feliz de um mendigo. O sofrimento que na veemência e fúria do seu próprio ímpeto volitivo inflige aos outros é a medida do sofrimento cuja experiência em sua pessoa não quebra a Vontade, nem a conduz à negação final. Por outro lado, todo amor puro e verdadeiro, sim, até mesmo toda justiça livre já resultam da visão através do principii individuationis, a qual, caso entre em cena com sua plena força, produz a completa salvação e redenção, cujos acontecimentos são o acima descrito estado de resignação, a paz inabalável que o acompanha e a suprema alegria na morte. SMVR1 Livro IV §68
Nada mais difere tão amplamente da negação da Vontade de vida exposta suficientemente nos limites do nosso modo de consideração, e que constitui o único ato de liberdade da Vontade a entrar em cena no fenômeno, portanto é, como Asmus a define, a mudança transcendental, do que a efetiva supressão de seu fenômeno individual, na efetividade, pelo suicídio. Este, longe de ser negação da Vontade, é um acontecimento que vigorosamente a afirma. Pois a essência da negação da Vontade reside não em os sofrimentos mas em os prazeres repugnarem. O suicida quer a vida; porém está insatisfeito com as condições sob as quais a vive. Quando destrói o fenômeno individual, ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas tão-somente à vida. Ele ainda quer a vida, quer a existência e a afirmação sem obstáculos do corpo, porém, como a combinação das circunstâncias não o permite, o resultado é um grande sofrimento. A Vontade de vida mesma é encontrada nesse fenômeno particular tão fortemente travada, que não pode desdobrar o seu esforço. Por isso decide em acordo com a sua essência em si, que se encontra exterior às figuras do princípio de razão e para a qual todo fenômeno particular é indiferente, pois ela mesma permanece intocada em meio a todo nascer e perecer, e é o íntimo vital de todas as coisas. Pois aquela certeza firme, íntima que permite a todos nós vivermos sem o terror contínuo da morte, vale dizer, a certeza de que à Vontade jamais pode faltar o seu fenômeno, também apoia o ato de suicídio. A Vontade de vida aparece tanto na morte auto-imposta (Shiva), quanto no prazer da conservação pessoal (Vishnu) e na volúpia da procriaçao (Brahma). Essa é a significação íntima da unidade do Trimurti, que cada homem é por inteiro, embora no tempo seja destacada ora uma, ora outra de suas três cabeças. – O suicídio está para a negação da Vontade como a coisa particular está para a Ideia. O suicida nega tão-somente o indivíduo, não a espécie. Como à Vontade de vida a vida é sempre certa e a esta o sofrimento é essencial, o suicídio, a destruição arbitrária de um fenômeno particular é uma ação inútil e tola, pois a coisa-em-si permanece intacta como o arco-íris imóvel em meio à rápida mudança das gotas, que por instantes são o seu sustentáculo. O suicídio, em realidade, [504] é a obra-prima de MAYA na forma do mais gritante índice de contradição da Vontade de vida consigo mesma. Reconhecemos essa contradição nos fenômenos mais elementares da Vontade, na luta contínua de todas as exteriorizações das forças naturais e de todos os indivíduos orgânicos por matéria, tempo, espaço; vimos como esse conflito entra em cena aos poucos com distinção terrível nos graus ascendentes de objetivação da Vontade. Ao fim, no grau mais elevado desta, a Ideia de homem, esse conflito atinge o grau no qual não apenas os indivíduos a exporem a mesma Ideia se exterminam uns aos outros, mas o mesmo indivíduo declara guerra a si; e a veemência, com a qual ele quer a vida e se revolta contra a travação da mesma, a saber, o sofrimento, o leva a destruir-se, de tal maneira que a vontade individual, mediante um ato volitivo, suprime o corpo, o qual é apenas a sua visibilidade, e isso antes que o sofrimento quebre a vontade. Precisamente porque o suicida não pode cessar de querer, cessa de viver. A Vontade se afirma aqui justamente pela supressão de seu fenômeno, pois não pode mais afirmar-se de outro modo. Ora, como era exatamente o sofrimento, ao qual o indivíduo quer se furtar, o que, enquanto mortificação da Vontade, o poderia conduzir à negação de si mesmo e à redenção, daí se segue que, neste aspecto, o suicida se assemelha a um doente que, após ter começado uma dolorida operação de cura radical, não permite o seu término, preferindo permanecer doente. O sofrimento se aproxima e, enquanto tal, abre-lhe a possibilidade de negação da Vontade, porém ele a rejeita ao destruir o fenômeno da Vontade, o corpo, de tal forma que a Vontade permanece inquebrantável. – Eis por que todas as éticas, tanto filosóficas quanto religiosas, condenam o suicídio, embora elas mesmas nada possam fornecer senão estranhos argumentos sofísticos. Entretanto, se um homem, a partir de puros motivos morais, devesse guardar-se do suicídio, o sentido mais íntimo deste auto-ultrapassamento (não importa os conceitos com os quais sua razão o vista) seria o seguinte: “Eu não quero evitar o sofrimento, pois este pode contribuir para a supressão da Vontade de vida, cujo fenômeno é tão cheio de penúria; o conhecimento agora em mim já despertado da essência verdadeira do mundo é fortalecido e se torna o quietivo final da minha vontade e, assim, me redime para sempre”. SMVR1 Livro IV §69
O maior mérito de Kant é a distinção entre fenômeno e coisa-em-si – com base na demonstração de que entre as coisas e nós sempre ainda está o intelecto, pelo que elas não podem ser conhecidas conforme seriam em si mesmas. Ele foi conduzido a este caminho por Locke (vejam-se Prolegômenos a toda metafísica, §13, nota 2). Locke demonstrou que as qualidades secundárias das coisas, como som, odor, cor, dureza, moleza, lisura e semelhantes, baseadas nas afecções dos sentidos, não pertenceriam ao corpo objetivo, à coisa em si mesma, à qual ele antes atribuía só as qualidades primárias, isto é, aquelas que pressupõem somente o espaço e a impenetrabilidade, portanto extensão, forma, solidez, número, mobilidade. Porém essa distinção lockeana, fácil de achar e que se circunscreve à superfície das coisas, foi por assim dizer apenas um prelúdio juvenil da kantiana. Esta, de fato, partindo de um ponto de vista incomparavelmente mais elevado, explana tudo aquilo que Locke havia admitido como qualitates primarias, ou seja, qualidades da coisa em si mesma, como igualmente pertencentes só ao fenômeno das coisas em nossa faculdade de apreensão, e isso precisamente porque as condições delas, espaço, tempo e causalidade, são conhecidas por nós a priori. Assim, Locke abstraiu da coisa em si a participação que os órgãos dos sentidos têm no seu fenômeno; Kant, entretanto, ainda abstraiu a participação das funções [526] cerebrais (embora não sob este nome); com o que agora a distinção entre fenômeno e coisa-em-si adquiriu uma significação infinitamente maior e um sentido muito mais profundo. Para esse fim teve de efetuar a grande separação entre o nosso conhecimento a priori e o a posteriori, o que antes dele jamais houvera sido feito com o devido rigor e completude, nem com clara consciência: por conseguinte, isso se tornou a matéria principal de suas profundas investigações. – Aqui queremos observar desde já que a filosofia de Kant possui uma tripla relação com a de seus predecessores: em primeiro lugar, uma relação confirmatória e de ampliação com a de Locke, como acabamos de ver; em segundo, uma relação corretiva e de uso com a de Hume, que se encontra expressa da maneira mais distinta no prefácio aos Prolegômenos (este mais belo e mais compreensível de todos os escritos capitais de Kant, que é muito pouco lido, embora facilite extraordinariamente o estudo de sua filosofia); em terceiro, uma relação decididamente polêmica e destruidora com a filosofia leibniz-wolffiana. Deve-se conhecer todas as três teorias, antes de proceder ao estudo da filosofia kantiana, – Se, como mencionado acima, a distinção entre fenômeno e coisa-em-si, portanto a doutrina da completa diversidade entre ideal e real é a pedra de toque da filosofia kantiana, segue-se que a afirmação, que logo depois entra em cena, sobre a identidade absoluta entre esses dois fornece uma triste prova para o dito anteriormente citado de Goethe; e tanto mais que não se apoiava sobre nada senão a intuição intelectual de cabeças-de-vento, [No original alemão Windbeutelei intellektualer Anschauung. Windbeutel traduzi antes por “cabeça-de-vento”, daí a mesma solução para Windbeutelei. (N. T.)] e, de acordo com isso, era apenas um retorno à rudeza da visão comum, mascarada sob a imponência de ar distinto, de um tom bombástico e de galimatias. Ela se tornou o ponto de partida para o contra-senso ainda mais grosseiro do desajeitado e destituído de espírito Hegel. – Ora, se, na sua base, a separação, na maneira previamente explanada, efetuada por Kant entre fenômeno e coisa-em-si em muito superou em profundidade e clarividência tudo o que já existira, também foi infinitamente rica de consequências em seus resultados. Pois, descoberta com inteira autonomia e de maneira totalmente nova, ele apresentou aqui [527] a mesma verdade, por um novo lado e um novo caminho, que já Platão incansavelmente repete e na maioria das vezes exprime em sua linguagem do seguinte modo: este mundo que aparece aos sentidos não possui nenhum verdadeiro ser, mas apenas um incessante devir, ele é, e também não é; sua apreensão não é tanto um conhecimento mas uma ilusão. Isto é também o que Platão expressa miticamente na passagem mais importante de todas as suas obras, já citada no terceiro livro do presente escrito, ou seja, o início do sétimo livro da República, quando diz que os homens, firmemente acorrentados numa caverna escura, não viam nem a autêntica luz originária, nem as coisas reais, mas apenas a luz débil do fogo na caverna, e as sombras de coisas reais passando à luz desse fogo atrás de suas costas: eles opinavam contudo que as sombras eram a realidade e que a determinação da sucessão dessas sombras seria a verdadeira sabedoria. – A mesma verdade, reapresentada de modo completamente outro, é também uma doutrina capital dos vedas e puranas, a saber, a doutrina de MAYA, pela qual não se entende outra coisa senão aquilo que Kant nomeia o fenômeno em oposição à coisa-em-si; pois a obra de MAYA é apresentada justamente como este mundo visível no qual estamos, um efeito mágico que aparece na existência, uma aparência inconstante e inessencial, em si destituída de ser, comparável à ilusão de ótica e ao sonho, um véu que envolve a consciência humana, um algo do qual é igualmente falso e igualmente verdadeiro dizer que é, ou não é. – Kant, porém, não só expressou a mesma doutrina de um modo totalmente novo e original, mas fez dela, mediante a exposição mais calma e sóbria, uma verdade demonstrada e incontestável; já Platão e os indianos, por seu turno, fundamentaram suas afirmações meramente sobre uma intuição geral do mundo, produzindo-a como enunciado direto de sua consciência e a expondo mais mítica e poeticamente que filosófica e distintamente. Nesse sentido, estão para Kant como os pitagóricos Hiketas, Filolao e Aristarco, que já haviam afirmado o movimento da terra em torno do sol estacionário, estão para Copérnico. Tal conhecimento distinto e exposição tranquila e clarividente dessa índole onírica do mundo inteiro é propriamente a base de toda a filosofia kantiana, a sua alma e o seu maior mérito. Ele levou semelhante tarefa a efeito ao desmontar e exibir, peça por peça, toda a maquinaria de nossa faculdade de [528] conhecimento, pela qual se institui a fantasmagoria do mundo objetivo, com clareza de consciência e habilidade admiráveis. Toda a filosofia ocidental precedente, indizivelmente desconjuntada em face da kantiana, desconheceu aquela verdade e justamente por isso sempre discursou, propriamente dizendo, como se fosse em sonhos. Kant foi o primeiro que subitamente a despertou de seu sonho. Daí também o último dos dorminhocos (Mendelssohn) o ter chamado de destrói-tudo [Alleszermalmer]. Ele mostrou que as leis a regerem com inexorável necessidade na existência, isto é, na experiência em geral, não devem ser usadas na dedução e explanação da existência mesma, portanto a sua validade é apenas relativa, vale dizer, só começa depois que a existência, o mundo da experiência em geral já está posto e presente; que, em consequência, tais leis não podem ser nosso fio condutor quando passamos à explanação da existência do mundo e de nós mesmos. Todos os filósofos ocidentais anteriores tiveram a ilusão de que tais leis, segundo as quais os fenômenos estão conectados uns aos outros, e que eu compreendo – tempo, espaço, causalidade e inferência – sob a expressão de princípio de razão, seriam leis absolutas e não condicionadas por simplesmente nada, aeternae veritates, o mundo mesmo existiria só em consequência e em conformidade com elas e, conseguintemente, todo o enigma do mundo se deixaria resolver por meio de seu fio condutor. As hipóteses feitas para este fim, que Kant critica sob o nome de ideias da razão, serviam propriamente apenas para elevar o simples fenômeno, a obra de MAYA, o mundo das sombras de Platão à condição de única e suprema realidade, colocá-las no lugar da mais íntima e verdadeira essência das coisas, tornando assim impossível o conhecimento verdadeiro desta, numa palavra, adormecer ainda mais profundamente os sonhadores. Kant mostrou que aquelas leis, consequentemente o mundo mesmo, são condicionadas pelo modo de conhecer do sujeito. Daí se seguia que, por mais longe que se investigasse e inferisse, guiados por esse fio condutor, não se teria dado um só passo adiante no assunto principal, isto é, no conhecimento da essência do mundo em si, exterior à representação, mas apenas [529] se teria movido como o esquilo na roda. Pode-se portanto comparar todos os dogmáticos a pessoas que acham que, se caminhassem em linha reta, chegariam ao fim do mundo. Kant, porém, teria circunavegado o mundo e mostrado que, porque ele é redondo, não se pode sair dele por movimento horizontal, no entanto por meio de movimento perpendicular talvez isso nao seja impossível. Pode-se também dizer que o ensinamento de Kant propicie a intelecção de que o princípio e fim do mundo devem ser procurados não fora dele, mas dentro de nós mesmos. SMVR1 Apêndice §71
Caso se quisesse admitir a prova da tese na primeira antinomia, então se provaria demais, na medida em que semelhante prova valeria tanto para o tempo ele mesmo quanto para a mudança nele, por conseguinte seria provado que o tempo mesmo deve ter tido um começo, o que é um contra-senso. Ademais, o sofisma consiste nisto: em vez da falta de começo na série dos estados, o que primariamente era a questão, subitamente é introduzida a falta de fim (infinitude) da mesma e, então, é provado o que ninguém duvida, ou seja, que esta estaria em contradição lógica com a completude, e que, apesar disso, todo presente é o fim do passado. Mas o término de uma série sem começo pode sempre ser pensado sem prejuízo de sua falta de começo, bem como, inversamente, é possível o começo de uma série sem fim. Porém, contra o argumento, de fato correto da antítese, a saber, que as mudanças do mundo pressupõem absoluta e necessariamente uma série infinita de mudanças para trás, nada é evocado. A possibilidade de que a série causai finde algum dia num estado de repouso absoluto, isto o podemos pensar, mas de maneira alguma a possibilidade de um começo absoluto. [Que a assunção de um limite do mundo no tempo de maneira alguma é um pensamento necessário da razão, isto pode ser demonstrado até historicamente, visto que os hindus não ensinam uma vez sequer tal coisa, sequer na religião popular, quanto mais nos Vedas; mas procuram expressar mitologicamente a infinitude deste mundo que aparece, este tecido sem consistência e insubstancial de MAYA, por meio de uma monstruosa cronologia, destacando ao mesmo tempo, de modo engenhoso, o relativo de todos os períodos de tempo, no seguinte mito (Polier, Mythologie des Indous, v.2, p 585). As quatro idades, na última das quais nós vivemos, compreendem juntas 4.320.000 anos. Cada dia do criador Brama tem 1.000 de tais períodos das quatro idades, e sua noite, por sua vez, tem 1.000 períodos. O ano de Brama tem 365 dias e igual número de noites. Ele vive, sempre criando, 100 dos seus dias: e, quando morre, de imediato nasce um outro Brama, e assim de eternidade em eternidade. A mesma relatividade do tempo é expressa também pelo mito especial narrado por Polier (Werk, 2) a partir dos Puranas, no qual um Radscha, após uma visita de alguns instantes a Vishnu no seu céu, descobre no seu retorno à terra que muitos milhões de anos transcorreram, e um novo período apareceu, porque cada dia de Vishnu é igual a 100 retornos dos quatro períodos] SMVR1 Apêndice §71