Página inicial > Modernidade > Horkheimer (ER:98-103) – o ego abstrato

Horkheimer (ER:98-103) – o ego abstrato

quarta-feira 3 de novembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

português

O ser humano, no processo de sua emancipação, compartilha o destino do resto do seu mundo. A dominação da natureza envolve a dominação do homem. Cada aspecto niilista. A subjetivação, que exalta o sujeito, natureza externa, humana ou não-humana, como para fazê-lo deve subjugar a natureza em si mesmo. A dominação torna-se “interiorizada” por si mesma. O que geralmente é indicado como um objetivo — a felicidade do indivíduo, a riqueza e a saúde — ganha significação exclusivamente a partir da sua potencialidade funcional. Esses termos designam as condições [98] favoráveis para a produção intelectual e material. Portanto a auto-renúncia do indivíduo na sociedade industrialista não tem nenhum objetivo que transcenda esta sociedade. Tal abnegação causa a racionalidade em relação ao maior e a irracionalidade em relação à existência humana. A sociedade e suas instituições, não menos do que o próprio indivíduo, trazem a marca dessa discrepância. Desde que a subjugação da natureza, dentro e fora do homem, não tem motivo significativo, a natureza não é de fato transcendida ou reconciliada, mas simplesmente reprimida.

A resistência e a revolta que emergem dessa repressão da natureza tem acossado a civilização desde os seus começos, tanto na forma de rebeliões sociais — como nas insurreições espontâneas de camponeses no século XVI ou nos habitualmente organizados conflitos raciais dos nossos dias — como na forma de crime organizado e transtorno mental. Típicos da nossa era atual são a manipulação dessa revolta pelas forças predominantes da própria civilização e o uso da mesma como um meio de perpetuação das próprias condições que a provocaram e contra as quais se insurge. A civilização como irracionalidade racionalizada integra a revolta da natureza como outro meio ou instrumento.

Pode-se discutir aqui brevemente alguns dos aspectos desse mecanismo, como, por exemplo, a situação do homem numa cultura de autopreservação em função de si mesma; a interiorização da dominação pelo desenvolvimento do sujeito abstrato, o ego; a inversão dialética do princípio de dominação pela qual o homem se torna ele mesmo um instrumento da mesma natureza daquele que ele domina; o impulso mimético reprimido, como uma força destrutiva explorada pelos sistemas mais radicais de dominação social. Entre as tendências intelectuais sintomáticas da interligação entre governo e revolta, o darwinismo será discutido como um exemplo, não porque faltem ilustrações filosóficas mais [99] típicas da identidade entre a dominação do homem sobre a natureza e sua submissão à mesma, mas porque o darwinismo é um dos marcos do Iluminismo popular que abriram o caminho com lógica inescapável à situação cultural do presente.

Um fator na civilização pode ser descrito como a substituição gradual da seleção natural pela ação racional. A sobrevivência — ou, digamos, o sucesso — depende da capacidade de adaptação do indivíduo às pressões que a sociedade exerce sobre ele. Para sobreviver, um homem se transforma num mecanismo que reage a cada momento com a maneira mais apropriada às situações desconcertantes e difíceis que compõem a sua vida. Todo mundo deve estar pronto para enfrentar qualquer situação. Sem dúvida isso não é uma marca característica apenas do período moderno; tem sido atuante em toda a história da humanidade. Contudo, os recursos intelectuais e psicológicos do indivíduo têm variado com os meios de produção material. A vida de um camponês ou de um artesão holandês no século XVII, ou de um lojista no século XVIII, era certamente muito menos segura do que a de um trabalhador de nossos dias. Mas a emergência do industrialismo trouxe novos fenômenos qualitativos em seu bojo. O processo de ajustamento tornou-se agora mais deliberado e portanto total.

Exatamente porque toda a vida de hoje tende cada vez mais a ser submetida à racionalização e ao planejamento, também a vida de cada indivíduo, incluindo-se os seus impulsos mais ocultos, que outrora constituíam o seu domínio privado, deve agora levar em conta as exigências da racionalização e planejamento: a autopreservação do indivíduo pressupõe o seu ajustamento às exigências de preservação do sistema. Ele não tem mais possibilidades de escapar do sistema. E na medida em que o processo de racionalização não é mais o resultado de forças anônimas do mercado, mas é decidido pela consciência de uma minoria planejadora, também [100] a massa de sujeitos deve ajustar-se: o sujeito deve, por assim dizer, dedicar todas as suas energias para estar “dentro e a partir do movimento das coisas” [1], nos termos da definição pragmatista. Anteriormente a realidade era oposta e confrontada ao ideal, que era desenvolvido pelo indivíduo presumivelmente autônomo; presumia-se que a realidade se conformasse a esse ideal. Hoje tais ideologias são desacreditadas ou omitidas pelo pensamento progressista, que assim facilita involuntariamente a elevação da realidade ao status de ideal. Portanto o ajustamento se torna o modelo para todos os tipos imagináveis de comportamento subjetivo. O triunfo da razão formalizada e subjetiva é também o triunfo de uma realidade que se confronta com o sujeito como algo absoluto e esmagador.

O modo contemporâneo da produção exige mais flexibilidade do que nunca. Quanto maior for a iniciativa necessitada em praticamente todos os setores da vida, maiores são as exigências de adaptação às condições mutáveis. Se um artesão medieval pudesse adotar outro ofício, sua mudança seria muito mais radical do que a de alguém hoje que se torna sucessivamente um mecânico, um vendedor e um diretor de uma companhia de seguros. A cada vez maior uniformidade de técnicas torna cada vez mais fácil a mudança de empregos. Mas essa maior facilidade de transição de uma atividade para outra não significa que haja mais tempo para a especulação ou para os desvios dos padrões estabelecidos. Quanto mais artifícios inventamos para dominar a natureza, mais devemos nos submeter a eles se queremos sobreviver.

O homem tornou-se gradativamente menos dependente de padrões absolutos de conduta, de ideais universalmente unidos. Tomou-se tão completamente livre que não precisa de padrões, [101] exceto o seu próprio. Paradoxalmente, contudo, esse aumento de independência conduziu a um aumento paralelo de passividade. Por argutos que se tenham tomado os cálculos do homem em relação aos seus meios, a sua escolha de fins, que era anteriormente correlacionada com a crença numa verdade objetiva, tomou-se insensata: o indivíduo, purificado de todos os resíduos das mitologias, inclusive a mitologia da razão objetiva, reage automaticamente, de acordo com padrões gerais de adaptação. As forças econômicas e sociais adquiriram o caráter de poderes naturais cegos que o homem, a fim de poder se preservar a si mesmo, deve dominar, ajustando-se a eles. Como resultado final do processo, temos de um lado o eu, o ego abstrato esvaziado de toda substância, exceto da sua tentativa de transformar tudo no céu e na Terra em meios para a sua preservação, e do outro lado uma natureza esvaziada e degradada a ser um simples material, simples substância a ser dominada, sem qualquer outro propósito do que esse de sua própria dominação.

Para o homem médio, a autopreservação tornou-se dependente da velocidade de seus reflexos. A própria razão identificou-se com essa faculdade reguladora. Pode parecer que o homem de hoje tenha uma escolha muito mais livre do que a dos seus ancestrais, e em certo sentido tem. Sua liberdade cresceu tremendamente com o aumento das potencialidades produtivas. Em termos de quantidade, um trabalhador moderno tem um leque muito mais amplo de escolha de bens de consumo do que um aristocrata do ancien régime. A importância desse desenvolvimento histórico não deve ser subestimada; mas antes de interpretar a multiplicação de escolhas como um aumento de liberdade, como fazem os entusiastas da produção em série, devemos levar em conta a pressão inseparável desse aumento e a mudança de qualidade que é concomitante a essa nova espécie de escolha. A pressão consiste [102] na coerção contínua que as modernas condições sociais exercem sobre cada um; e a mudança pode ser ilustrada pela diferença entre um artesão do velho tipo, que escolhia o instrumento adequado para uma elaboração delicada, e o trabalhador de hoje, que deve decidir rapidamente qual das muitas alavancas ou comutadores deve puxar. Diferentes graus de liberdade estão envolvidos em conduzir um cavalo ou dirigir um automóvel moderno. A parte o fato de que o automóvel está ao alcance de uma percentagem muito maior da população do que a carruagem em seus dias, o automóvel é mais rápido e eficiente, requer menos cuidado e é talvez mais manobrável. Contudo, o acréscimo de liberdade trouxe uma mudança no caráter da liberdade. É como se as inúmeras leis, normas e instruções que devemos cumprir dirigissem o carro e não nós. Existem limites para a velocidade, advertências para dirigir mais devagar, parar e se manter dentro de certas faixas do tráfego, e até diagramas mostrando a forma da curva que está adiante. Devemos manter os olhos na estrada e ficar prontos para reagir a cada instante com o movimento certo. Nossa espontaneidade foi substituída por uma disposição de espírito que nos obriga a descartar-nos de qualquer emoção ou ideia que possa diminuir nossa atenção às exigências impessoais que nos assaltam.

original

The human being, in the process of his emancipation, shares the fate of the rest of his world. Domination of nature involves domination of man. Each subject not only has to take part in the subjugation of external nature, human and nonhuman, but in order to do so must subjugate nature in himself. Domination becomes ‘internalized’ for domination’s sake. What is usually indicated as a goal—the happiness of the individual, health, and wealth—gains its significance exclusively from its functional potentiality. These terms designate favorable conditions for intellectual and material production. Therefore self-renunciation of the individual in industrialist society has no goal transcending industrialist society. Such abnegation brings about rationality with reference to means and irrationality with reference to human existence. Society and its institutions, no less than the individual himself, bear the mark of this discrepancy. Since the subjugation of nature, in and outside of man, goes on without a meaningful motive, nature is not really transcended or reconciled but merely repressed.

Resistance and revulsion arising from this repression of nature have beset civilization from its beginnings, in the form of social rebellions—as in the spontaneous peasant insurrections of the sixteenth century or the cleverly staged race riots of our own day—as well as in the form of individual crime and mental derangement. Typical of our present era is the manipulation of this revolt by the prevailing forces of civilization itself, the use of the revolt as a means of perpetuating the very conditions by which it is stirred up and against which it is directed. Civilization as rationalized irrationality integrates the revolt of nature as another means or instrument.

Here it is in order to discuss briefly some of the aspects of this mechanism, e.g. the situation of man in a culture of self-preservation for its own sake; the internalization of domination by the development of the abstract subject, the ego; the dialectical reversal of the principle of domination by which man makes himself a tool of that same nature which he subjugates; the repressed mimetic impulse, as a destructive force exploited by the most radical systems of social domination. Among the intellectual trends that are symptomatic of the interconnection between rulership and revolt, Darwinism will be discussed as an instance, not because more typical philosophical illustrations of the identity of man’s domination over and submission to nature are lacking, but because Darwinism is one of the landmarks of popular enlightenment that pointed the way with inescapable logic to the cultural situation of the present day.

One factor in civilization might be described as the gradual replacement of natural selection by rational action. Survival—or, let us say, success—depends upon the adaptability of the individual to the pressures that society brings to bear on him. To survive, man transforms himself into an apparatus that responds at every moment with just the appropriate reaction to the baffling and difficult situations that make up his life. Everyone must be ready to meet any situation. This is doubtless not a feature characteristic of the modern period alone; it has been operative during the entire history of mankind. However, the individual’s intellectual and psychological resources have varied with the means of material production. The life of a Dutch peasant or craftsman in the seventeenth century, or of a shop owner in the eighteenth, was certainly much less secure than the life of a workman today. But the emergence of industrialism has brought qualitatively new phenomena in its train. The process of adjustment has now become deliberate and therefore total.

Just as all life today tends increasingly to be subjected to rationalization and planning, so the life of each individual, including his most hidden impulses, which formerly constituted his private domain, must now take the demands of rationalization and planning into account: the individual’s self-preservation presupposes his adjustment to the requirements for the preservation of the system. He no longer has room to evade the system. And just as the process of rationalization is no longer the result of the anonymous forces of the market, but is decided in the consciousness of a planning minority, so the mass of subjects must deliberately adjust themselves: the subject must, so to speak, devote all his energies to being ‘in and of the movement of things’* in the terms of the pragmatistic definition. Formerly reality was opposed to and confronted with the ideal, which was evolved by the supposedly autonomous individual; reality was supposed to be shaped in accordance with this ideal. Today such ideologies are compromised and skipped over by progressive thought, which thus unwittingly facilitates the elevation of reality to the status of ideal. Therefore adjustment becomes the standard for every conceivable type of subjective behavior. The triumph of subjective, formalized reason is also the triumph of a reality that confronts the subject as absolute, overpowering.

The contemporary mode of production demands much more flexibility than ever before. The greater initiative needed in practically all walks of life calls for greater adaptability to changing conditions. If a medieval artisan could have adopted another craft, his change-over would have been more radical than that of a person today who becomes successively a mechanic, a salesman, and director of an insurance company. The ever greater uniformity of technical processes makes it easier for men to change jobs. But the greater ease of transition from one activity to another does not mean that more time is left for speculation or for deviations from established patterns. The more devices we invent for dominating nature, the more must we serve them if we are to survive.

Man has gradually become less dependent upon absolute standards of conduct, universally binding ideals. He is held to be so completely free that he needs no standards except his own. Paradoxically, however, this increase of independence has led to a parallel increase of passivity. Shrewd as man’s calculations have become as regards his means, his choice of ends, which was formerly correlated with belief in an objective truth, has become witless: the individual, purified of all remnants of mythologies, including the mythology of objective reason, reacts automatically, according to general patterns of adaptation. Economic and social forces take on the character of blind natural powers that man, in order to preserve himself, must dominate by adjusting himself to them. As the end result of the process, we have on the one hand the self, the abstract ego emptied of all substance except its attempt to transform everything in heaven and on earth into means for its preservation, and on the other hand an empty nature degraded to mere material, mere stuff to be dominated, without any other purpose than that of this very domination.

For the average man self-preservation has become dependent upon the speed of his reflexes. Reason itself becomes identical with this adjustive faculty. It may seem that present-day man has a much freer choice than his ancestors had, and in a certain sense he has. His freedom has increased tremendously with the increase in productive potentialities. In terms of quantity, a modern worker has a much wider selection of consumer goods than a nobleman of the ancien régime. The importance of this historical development must not be underestimated; but before interpreting the multiplication of choices as an increase in freedom, as is done by the enthusiasts of assembly-line production, we must take into account the pressure inseparable from this increase and the change in quality that is concomitant with this new kind of choice. The pressure consists in the continual coercion that modern social conditions put upon everyone; the change may be illustrated by the difference between a craftsman of the old type, who selected the proper tool for a delicate piece of work, and the worker of today, who must decide quickly which of many levers or switches he should pull. Quite different degrees of freedom are involved in driving a horse and in driving a modern automobile. Aside from the fact that the automobile is available to a much larger percentage of the population than the carriage was, the automobile is faster and more efficient, requires less care, and is perhaps more manageable. However, the accretion of freedom has brought about a change in the character of freedom. It is as if the innumerable laws, regulations, and directions with which we must comply were driving the car, not we. There are speed limits, warnings to drive slowly, to stop, to stay within certain lanes, and even diagrams showing the shape of the curve ahead. We must keep our eyes on the road and be ready at each instant to react with the right motion. Our spontaneity has been replaced by a frame of mind which compels us to discard every emotion or idea that might impair our alertness to the impersonal demands assailing us.


[1Dewey, in Creative Intelligence.