Página inicial > Modernidade > Hobbes: o movimento das paixões

Hobbes: o movimento das paixões

quarta-feira 8 de abril de 2020, por Cardoso de Castro

  

Monteiro & Nizza da Silva

Há nos animais dois tipos de movimento que lhes são peculiares. Um deles chama-se vital; começa com a geração, e continua sem interrupção durante toda a vida. Deste tipo são a circulação do sangue, o pulso, a respiração, a digestão, a nutrição, a excreção, etc. Para estes movimentos não é necessária a ajuda da imaginação. O outro tipo é o dos movimentos animais, também chamados movimentos voluntários, como andar, falar, mover qualquer dos membros, da maneira como anteriormente foi imaginada pela mente. A sensação é o movimento provocado nos órgãos e partes inferiores do corpo do homem pela ação das coisas que vemos, ouvimos, etc., e a imaginação é apenas o resíduo do mesmo movimento, que permanece depois da sensação, conforme já se disse no primeiro e segundo capítulos. E dado que andar, falar e os outros movimentos voluntários dependem sempre de um pensamento anterior de como, onde e o que, é evidente que a imaginação é a primeira origem interna de todos os movimentos voluntários. E embora os homens sem instrução não concebam que haja movimento quando a coisa movida é invisível, ou quando o espaço onde ela é movida (devido a sua pequenez) é insensível, não obstante esses movimentos existem. Porque um espaço nunca é tão pequeno que aquilo que seja movido num espaço maior, do qual o espaço pequeno faz parte, não deva primeiro ser movido neste último. Estes pequenos inícios do movimento, no interior do corpo do homem, antes de se manifestarem no andar, na fala, na luta e outras ações visíveis, chamam-se geralmente esforço.

Este esforço, quando vai em direção de algo que o causa, chama-se apetite ou desejo, sendo o segundo o nome mais geral, e o primeiro freqüentemente limitado a significar o desejo de alimento, nomeadamente a fome e a sede. Quando o esforço vai no sentido de evitar alguma coisa chama-se geralmente aversão. As palavras apetite e aversão vêm do latim, e ambas designam movimentos, um de aproximação e o outro de afastamento. Também os gregos tinham palavras para exprimir o mesmo, hormé e aphormé. A própria natureza impõe aos homens certas verdades, com as quais depois eles vão chocar quando procuram alguma coisa fora da natureza. Pois as Escolas não encontram no simples apetite de mexer ou mover-se qualquer espécie de movimento real mas, como são obrigados a reconhecer alguma espécie de movimento, chamam-lhe movimento metafórico; o que não passa de uma definição absurda, porque só as palavras podem ser chamadas metafóricas, não os corpos e os movimentos.

Do que os homens desejam se diz também que o amam, e que odeiam aquelas coisas pelas quais sentem aversão. De modo que o desejo e o amor são a mesma coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência do objeto, e quando se fala em amor geralmente se quer indicar a presença do mesmo. Também por aversão se significa a ausência, e quando se fala de ódio pretende-se indicar a presença do objeto.

Dos apetites e aversões, alguns nascem com o homem, como o apetite pela comida, o apetite de excreção e exoneração (que podem também, e mais propriamente, ser chamados aversões, em relação a algo que se sente dentro do corpo) e alguns outros apetites, mas não muitos. Os restantes são apetites de coisas particulares e derivam da experiência e comprovação de seus efeitos sobre si mesmo ou sobre os outros homens. Porque das coisas que inteiramente desconhecemos, ou em cuja existência não acreditamos, não podemos ter outro desejo que não o de provar e tentar. Mas temos aversão, não apenas por coisas que sabemos terem-nos causado dano, mas também por aquelas que não sabemos se podem ou não causar-nos dano.

Das coisas que não desejamos nem odiamos se diz que as desprezamos. Não sendo o desprezo outra coisa senão uma imobilidade ou contumácia do coração, ao resistir à ação de certas coisas. A qual deriva do fato de o coração estar já estimulado de maneira diferente por objetos mais potentes, ou da falta de experiência daquelas coisas.

Dado que a constituição do corpo de um homem se encontra em constante modificação, é impossível que as mesmas coisas nele provoquem sempre os mesmos apetites e aversões, e muito menos é possível que todos os homens coincidam no desejo de um só e mesmo objeto.

Mas seja qual for o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem, esse objeto é aquele a que cada um chama bom; ao objeto de seu ódio e aversão chama mau, e ao de seu desprezo chama vil e indigno. Pois as palavras "bom", "mau" e "desprezível" são sempre usadas em relação à pessoa que as usa. Não há nada que o seja simples e absolutamente, nem há qualquer regra comum do bem e do mal, que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos. Ela só pode ser tirada da pessoa de cada um (quando não há Estado) ou então (num Estado) da pessoa que representa cada um; ou também de um árbitro ou juiz que pessoas discordantes possam instituir por consentimento, concordando que sua sentença seja aceite como regra.

Original

There be in animals, two sorts of motions peculiar to them: one called vital; begun in generation, and continued without interruption through their whole life; such as are the course of the blood, the pulse, the breathing, the concoction, nutrition, excretion, etc. to which motions there need no help of imagination: the other is animal motion, otherwise called voluntary motion: as to go, to speak, to move any of our limbs, in such manner as is first fancied in our minds. That sense is motion in the organs and interior parts of man’s body, caused by the action of the things we see, hear, etc.; and that fancy is but the relics of the same motion, remaining after sense, has been already said in the first and second chapters. And because going, speaking, and the like voluntary motions, depend always upon a precedent thought of whither, which way, and what; it is evident, that the imagination is the first internal beginning of all voluntary motion. And although unstudied men do not conceive any motion at all to be there, where the thing moved is invisible; or the space it is moved in is, for the shortness of it, insensible; yet that doth not hinder, but that such motions are. For let a space be never so little, that which is moved over a greater space, whereof that little one is part, must first be moved over that. These small beginnings of motion, within the body of man, before they appear in walking, speaking, striking, and other visible actions, are commonly called ENDEAVOR.

This endeavour, when it is toward something which causes it, is called appetite, or DESIRE; the latter, being the general name; and the other oftentimes restrained to signify the desire for food, namely hunger and thirst. And when the endeavour is fromward something, it is generally called AVERSION. These words, appetite and aversion, we have from the Latins; and they both of them signify the motions, one of approaching, the other of retiring. . . .

That which men desire, they are also said to LOVE: and to HATE those things for which they have aversion. So that desire and love are the same thing; save that by desire, wc always signify the absence of the object; by love, most commonly the presence of the same. So also by aversion, we signify the absence; and by hate, the presence of the object.

Of appetites and aversions, some are born with men; as appetite of food, appetite of excretion, and exoneration, which may also and more properly be called aversions, from somewhat they feel in their bodies; and some other appetites, not many. The rest, which are appetites of particular things, proceed from experience, and trial of their effects upon themselves or other men. For of things we know not at all, or believe not to be, we can have no further desire, than to taste and try. But aversion we have for things, not only which we know have hurt us, but also that we do not know whether they will hurt us, or not.

Those things which we neither desire, nor hate, we are said to contemn; contempt being nothing else but an immobility, or contumacy of the heart, in resisting the action of certain things; and proceeding from that the heart is already moved otherwise, by other more potent objects; or from want of experience of them.

And because the constitution of a man’s body is in continual mutation, it is impossible that all the same things should always cause in him the same appetites, and aversions: much less can all men consent, in the desire of almost any one and the same object.

But whatsoever is the object of any man’s appetite or desire, that is it which he for his part calleth good: and the object of his hate and aversion, evil; and of his contempt, vile and inconsiderable. For these words of good, evil, and contemptible, are ever used with relation to the person that useth them: there being nothing simply and absolutely so; nor any common rule of good and evil, to be taken from the nature of the objects themselves; but from the person of the man, where there is no commonwealth; or, in a commonwealth, from the person that representeth it; or from an arbitrator or judge, whom men disagreeing shall by consent set up, and make his sentence the rule thereof.


Ver online : Thomas Hobbes - Leviatã