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Fernandes (SH:56-58) – Tomar algo como objeto

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

É dificílimo de ser reconhecido, seja na literatura filosófica, seja na científica, o fato de que só podemos “tomar como objeto” o que é “identificável”, real ou “existente”, e, inversamente, que só é identificável, real ou “existente” aquilo que podemos “tomar como objeto”. Esse fato é dificílimo de ser reconhecido, não só pelas notórias dificuldades de análise da própria noção de “tomar algo como objeto”, mas também porque tem o corolário, nada intuitivo, de que nada que aparece pode ser tomado como objeto, a fortiori, “tomado como aparência”, ou inversamente, de que não podemos tomar aparências, enquanto tais, como objetos. Ora, isto significa que nem a aparência nem a realidade “aparecem”, ou seja, que nada aparece, no sentido vulgar de “aparece”.

Na Ontologia, tal como a concebo, é “identificável”, “existe” ou “é real” aquilo que resulta de “objetivações”. “Objetivar” é uma capacidade da mente: é a capacidade de “tomar algo como objeto”. Essa reatividade mental é inconsciente, automática e instrumental em relação à Experiência consciente, que é ação, não reação. Ora, a mente não pode tomar como objeto o que “aparece” como tal, ou seja, como aparência, mas somente a “aparência” que ela julga que “é identificável”, “existe” ou é “real”. Mas “real” é justamente o que estaria “por trás das aparências”. As aparências, portanto, ao invés de aparecerem, devem ser transparentes. Tomar algo como objeto nada tem a ver, então, com fazê-lo aparecer, pois é tomá-lo como real, ou seja, “além das aparências”, ou como o assunto, o referente, o objeto de (pelo menos mais de uma) possível aparência. Tente imaginar que algo que você chamaria de “real” só pudesse aparecer uma vez, única, irrepetível. Você não poderá fazê-lo, pois não poderia saber “o que” teria aparecido, não no sentido fraco de que algo teria aparecido, mas você não sabe o que é, mas no sentido forte de que você não poderia sequer saber que algo teria aparecido, ou seja, você não poderia “tomá-lo como objeto” e nada haveria para transparecer na verdadeira Experiência. Agora, permita que algo que você chamaria de “real” possa transparecer em mais de uma aparência: eis o seu conceito de “real”. Mas o conceito mesmo põe o “real” para além, por trás das aparências, de modo que ele tampouco pode aparecer como tal, a não ser numa aparência, etc. Se houver “experiências conscientes”, então elas não devem consistir na reatividade mental inconsciente de tomar algo como objeto, pois não podemos “ter” experiência daquilo que tomamos como objeto, a não ser através de suas aparências.

Mas então devem consistir... em QUÊ?! Resta apenas: “experiências em si mesmas” devem consistir nas próprias “aparências em si mesmas”. Estas últimas, por sua vez, sendo perfeitamente transparentes, permitem que nelas transpareça aquilo que for tomado como objeto pela mente inconsciente. Para evitar ambiguidade no uso do termo “aparência”, proponho chamar essas “Experiências em si mesmas” de “Aparições”. O que chamávamos de “aparências”, são então Aparições perfeitamente transparentes.

Se aparecessem, per absurdum, desapareceriam na realidade. Em outras palavras, estamos “em contato com a realidade” o “tempo todo” (as montanhas são azuis), já que aquilo que chamávamos de “aparências”, em vez de aparecerem, são feitas da “própria” realidade que transparece na Experiência consciente. Pois é nas aparências, por meio das aparências, através das aparências, que a mente toma alguma coisa como real. Dito ainda de outro modo: a mente não poderia tomar como objeto a própria aparência (fenômeno, representação, percepto, modo de apresentação ou o que seja) através da qual o objeto lhe aparece como real ou existente, sem com isso tomar como objeto real essa mesma aparência (fenômeno, representação, percepto, modo de apresentação, etc.), que, por sua vez, só poderia aparecer através de novas aparências, e assim por diante. Ou ainda: a mente não pode tomar como objeto a própria aparência, porque é justamente a transparência dessa “aparência” que lhe permite tomar algo como objeto. Há pelo menos um sentido em que aquilo que estou afirmando é bastante óbvio: o olho não pode tomar como objeto seu próprio olhar, porque é justamente a transparência deste olhar (do cristalino, se quisermos ser concretos) que lhe permite olhar para alguma coisa. Se um olho tomar como objeto seu próprio olhar, este “olhar”, não mais perfeitamente “cristalino”, será visado como objeto por meio de um outro olhar, perfeitamente cristalino, que, por sua vez, não estará podendo ser tomado como objeto... e assim por diante. Quando a mente pensa que toma como objeto o que “lhe parece”, “aparece”, uma “aparência”, um “fenômeno”, etc., ela o expulsa da Aparição original ou Experiência consciente, projetando-o na realidade ou na existência, identificando-a como “aquela aparência”, ou “aquele fenômeno”, que, por sua vez, agora estarão transparecendo em novas Aparições, que, por sua vez, não aparecem... e assim por diante. (Quando o olho olha para seu próprio olhar, este olhar é expulso do olho, ou do olhar original, e projetado como objeto de um novo olhar, que, por sua vez, não pode ser olhado... e assim por diante.)


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


FERNANDES, Sérgio L. de C.. Ser Humano. Um ensaio em antropologia filosófica. Rio de Janeiro: Editora Mukharajj, 2005