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Fernandes (SH:64-66) – Existe o que é o objeto de identificações...

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

Existe o que é o objeto de identificações, ou seja, tudo que é tomado pela mente inconsciente como podendo ser “experimentado” outra vez. Na frase precedente, a palavra “experimentado” aparece entre aspas porque experimentar algo como podendo ser experimentado outra vez, embora seja costumeiramente considerado como equivalente a experimentar um objeto como tal, ou seja, como isto ou aquilo, não constitui uma verdadeira Experiência, mas uma reatividade inconsciente da mente. A expressão “outra vez”, que remete à ideia de “repetição”, carece de uma reconotação, que dela elimine qualquer dependência da noção de tempo e, por sua vez, que a faça depender da noção atemporal de “reflexo”. Já por “objetivação”, como já disse, entendo a capacidade mental (não da verdadeira Consciência!) de “tomar algo como objeto”. Mas se existe o que quer que seja identificado (ficcional, onírico, imaginário, alucinado, etc. (Filosofia da Consciência, Capítulo 2: “Aparência e Realidade: as Imitações do Ser e o Ser das Imitações” ), a pergunta que se segue naturalmente, no Instrumento, é sobre “critérios” de identidade. Contudo, caberia levar a sério essa questão? Além de biológica, a mente é, em larga medida, social, transindividual e até “ecológica”. Basta nos lembrarmos de como “o cérebro” ou “o meio ambiente” se intermonitoram. Quaisquer subsistemas monitoradores, cerebrais ou ambientais, estão de tal maneira intimamente acoplados um ao outro, por exemplo, o “meio ambiente” para um sistema monitorador do “cérebro” incluirá o próprio corpo em que o sistema “pensar” que está (e qualquer de suas partes), ou mesmo outros subsistemas cerebrais que ele estiver monitorando — que seria difícil determinar de modo não-arbitrário a fronteira entre cérebro e meio ambiente. Isto para não tocarmos ainda no assunto da impossibilidade lógica e (infinita) improbabilidade biológica de um “cérebro” monitorar completamente a “si mesmo”... Ora, à luz (ou às trevas?) desses fatos, proponho que, para que algo seja identificado, ou seja, para que algo exista, basta que seja tomado como objeto pela mente e não me interessa nem de quem a mente pensa que é, nem se o faz acertada ou erroneamente, como sendo “aquilo” que já foi tomado acertada ou erroneamente, como sendo “aquilo” que já foi tomado como objeto, ou que pode sê-lo novamente. Dependendo das circunstâncias e de quem a mente pensa que ela é, pensamento que já é resultado de identificação, a mente afirma ou nega a existência do que lhe aprouver. Basta, então, para que algo exista, que a mente fabrique pensamentos do tipo: “voltemos à proposição que estávamos discutindo”, ou “mas não era sobre isso que estávamos falando”, ou ainda, em suposto solilóquio, “qual foi mesmo a ideia que tive ontem?” E isto nada tem a ver com o tempo, pois lembrar é editar ad hoc, no presente, o que é tomado como passado. (Filosofia da Consciência, Capítulo 4: “Qualidade e Quantidade: a Consciência na Ciência e na Filosofia Contemporâneas”.) Além disso, tampouco tem a ver com a possibilidade ou não de haver critério de identidade — de maneira análoga àquela pela qual a noção de “verdade” deve ser independente da noção de “critério de verdade”. Minha concepção de “identidade” é, de fato, generosíssima, não impondo limites além da repetição (ou reflexo), porque não tenho ilusões quanto à natureza, em última análise biológica, tanto de “critérios” quanto de “regras”, em que pese seu caráter “normativo”. A ideia de que não podemos estar seguindo uma regra ou aplicando um critério, só porque “pensamos que estamos” é uma faca de dois gumes: por um lado, capta o caráter coercitivo dessas noções (a característica de “oferecer resistência”, que só a “realidade” teria), mas que pode ser interpretado num largo espectro, que vai do “transcendental” ao “político”, passando pelo cultural e pelo “ecológico” ; por outro lado, capta, com certeza não-intencionalmente, o sentido mesmo em que algo existe, quando usa a expressão “...só porque pensamos que estamos...”. Portanto, existem proposições, significados, conceitos, entes intensionais (com s), perceptos, imagens, apreensões cognitivas ou conativas, lembranças, alucinações, Papai Noel, unicórnios, noemata, substâncias, essências, acidentes, qualidades, enfim, tudo que não for único e irrepetível, no sentido de poder ser reidentificado como “o mesmo outra vez”, inclusive nossos “eus”, nossas “almas”, anjos, “Deus”, abstracta, como números, conjuntos, etc., não havendo aqui por que aplicar o esforço das categorizações, pois se trata, em última análise, do Não-Ser ou da Existência.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


FERNANDES, Sérgio L. de C.. Ser Humano. Um ensaio em antropologia filosófica. Rio de Janeiro: Editora Mukharajj, 2005