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Francis Wolff (NH:8-9) – como defines o homem?

domingo 17 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

No fundo, é o que afirmava Kant  . Para ele, as interrogações humanas fundamentais são as seguintes: “O que posso saber? (questão metafísica); “O que devo fazer?” (questão moral); “O que posso esperar?” (questão religiosa). Todas elas dependem, porém, de uma quarta: “O que é o homem?” Com efeito, “poderíamos, no fundo, reduzir as outras à questão antropológica, pois as três primeiras estão vinculadas à última”.Kant, Logique, p.25. Responder à questão do homem seria, por assim dizer, a melhor maneira, talvez a única possível, de responder às questões que o homem se coloca.

Levemos a sério essa observação. Meçamos, por exemplo, as consequências últimas da definição do homem como “criatura divina”. Se o homem for, essencialmente e nada além disso, uma criatura divina, então não só o sentido da existência humana se vê esclarecido, mas as três outras questões são praticamente resolvidas: sei que posso esperar a imortalidade e a salvação (ou a danação); sei também o que posso saber: tudo o que foi revelado por Deus aos homens em seus livros, por seus profetas ou por meio de suas diversas manifestações diretas; e sei também o que devo fazer e não fazer: tudo o que é ordenado ou proibido por Deus, por um de seus mediadores reconhecidos ou pelos escritos em que foram registradas as suas vontades (ou as que lhe atribuem os intérpretes legítimos) - desde a maneira de cozinhar as carnes ou de escolher o cônjuge até a maneira de tratar as mulheres, os ladrões, os heréticos ou os descrentes.

Outros exemplos, claro, são possíveis. Suponhamos que o homem seja definido como “um ser essencialmente histórico”. Não sabe ele então o que deve fazer: cumprir seu destino “desde sempre já” inscrito em sua essência? Não sabe também o que pode esperar: a realização dessa essência, por exemplo, a redenção de sua condição mortal, a ressurreição, a vitória definitiva do proletariado etc.? Outro exemplo, mais comum: se os seres humanos, os verdadeiros, são “o povo daqui”, em oposição àqueles sub-homens de lá -os negros, os bárbaros, os judeus, os ciganos -, ou se, mais geralmente, os únicos homens somos “nós”, simplesmente, “nós outros, o povo da tribo” (pois em muitas línguas se designa com a mesma palavra seu próprio grupo e a humanidade em geral), em oposição a “eles”, os outros, então esses seres vivos bípedes que balbuciam uma algaravia ridícula são com certeza animais daninhos, ou talvez divindades maravilhosas. (Enquanto o espanhol, recorda Lévi-Strauss  , alternava investigações minuciosas e extermínios sistemáticos para saber se o indígena era um animal ou um homem - definido como “ser vivo dotado de alma imortal” -, o indígena buscava verificar se os brancos eram mesmo aqueles seres vivos imortais que pretendiam ser, submergindo os prisioneiros para ver se o cadáver estava ou não sujeito à putrefação).Lévi-Strauss, “Race et histoire”. In:----------, Anthropologie structurale, II, p.384. Diga-me, pois, como define o homem, eu lhe direi o que você crê poder saber, o que julga dever fazer e o que pode esperar.


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