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Fernandes (SH:12-15) – Antropologia Filosófica

domingo 10 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Bem... nossas investigações acerca dessas teses poderíam chamar-se de “Antropologia”. Mas há uma “antropologia física”, que é uma ciência biológica; outra “cultural”, que é uma ciência... digamos, “social”. Há quem pense que haja antropologias “religiosas”. E, finalmente, ainda há uma outra, cujo estatuto acadêmico é tido — injustamente! —, em certos departamentos de Filosofia, como altamente dúbio, que se chamaria “Antropologia Filosófica”, e que vem a ser precisamente a área de investigações do presente ensaio. Essa Antropologia Filosófica foi inaugurada, se não por Sócrates  , pela famosa “quarta pergunta” de Kant  , “Que é o homem?”, pergunta que contrapôs à subjetividade moderna uma perspectiva como que de “terceira pessoa”, mas, na verdade sem “pessoa” alguma, porque “transcendental”. (Dito assim, temo que esteja reproduzindo, sem créditos, uma frase de Charles Taylor  , em As Fontes do Self). [12]

Ora, a história dessa Antropologia Filosófica pareceu condená-la a uma vida curta ou a um fim prematuro; por um lado, por causa das reações pós-modernas às diversas formas de humanismo; por outro lado, pelo imperialismo universal, irresistível e avassalador, da Ciência “dura” — a Física matemática e a Biologia neodarwinista — sobre todos os demais campos da cultura. (Na penúltima grande enciclopédia filosófica anglo-saxã do século XX, a de Edwards, 1968, a disciplina mereceu um mau artigo; na última, a de Craig, 1998, desapareceu por completo. Sinal dos tempos. Mas não uma surpresa.)

No século XX, aquilo que se costuma chamar de “morte” foi tomado como a solução, não só filosófica, para tudo que pareceu atrapalhar o “bom andamento” do que quer que fosse. Eliminou-se a Ontologia — exagero?! —, então eliminou-se da Ontologia não só o que parecia incompreensível (por carecer, por exemplo, de critério de identidade), mas também o que levava a impasses. Naturalizou-se quase toda a Epistemologia, como se ela fosse uma cobra a devorar-se pela própria cauda (mas como poderia comer a própria boca?!). Reduziu-se a Estética às perplexidades sem guia dos pós-modernos. Reduziu-se a Ética a uma “semântica de terceira classe”, ou segunda categoria, que se passou a chamar de “metaética”, neste caso, a “desconstrução” dessa tradicional disciplina filosófica deveria ter sido muito mais drástica — mais ainda que a de Nietzsche  ! (V. Capítulo 3, adiante) O que as tradições chamam de karuna, agape, charitas, etc. não tem nada a ver com o que as éticas “filosóficas” (e também as profissionais!) chamam de “bem”. E este, por sua vez, pace Platão, nada tem a ver com o Ser, ou com o Ser do Humano. Ainda que o “bem” da Ética tivesse algo a ver com compaixão, quem fosse “bom” jamais precisaria de “ética”, e quem precisasse de “ética”, por sua vez, jamais seria “bom”. Mas como se pensa que o ser humano, mal entendido, talvez como “animal racional”, é o lobo do ser humano, o jardim zoológico (e a propriedade, etc.) precisa de jaulas, como “éticas”, sistemas jurídicos, superegos, etc. Mas proclamou-se ainda a “morte de Deus” e, em seguida, também a “morte do homem” (dois “personagens conceptuais”, diria Deleuze  ...), o fim disso e o fim daquilo. Esvaziou-se de quase [13] todo sentido a ideia de “verdade”. Este último processo, que, dizem, teria culminado em Nietzsche, sem dúvida começou com os antigos gregos, que cortaram o fio de prata que ligava a noção de “Verdade” à de aletheia e amarraram-na com arames à noção de episteme. (Esta última, e a noção de “Ética” ou racionalização do ethos, nasceram da falta, da necessidade de “justificativas”, ou seja, nasceram dentre aqueles que teriam sido expulsos do Paraíso.) Finalmente, fez-se da linguagem um fetiche. (Mas, se o dedo aponta para a Lua, que tolice ficar olhando para o dedo!) O cinismo   e seu primo irmão, o ceticismo, as notícias fúnebres, enterros, necrológios, estufaram o peito ou puseram um sorrisinho sarcástico na boca de “heróis filosóficos”, de expressão insana, ora a celebrar, ora a negar uma suposta “vida”, ora a idolatrar o “desejo” como máquina da morte, ora a desinflar supostos balões metafísicos com alfinetadas analíticas. Sendo a vitória de todos esses heróis infalivelmente pirrônica, estivemos, no século XX, diante, não de “efervescêcias” ou de “criatividade”, mas de formações militantes de vários exércitos de desesperados. Da Arte à Lógica, tudo como que se desdobrou e refletiu sobre “si mesmo”: baile de máscaras em salão de espelhos. Que lástima a Filosofia no século XX!

Na minha visão das coisas, todos estiveram a serviço, seja de caso pensado, seja como inocentes úteis, da Autoridade Científica e seus grupos terroristas. Já a Ciência, digamos, “pura” (“pesquisa básica” ou “fundamental” seria talvez mais apropriado), não tendo tempo para essas palhaçadas, avançou incrivelmente, continuando o projeto iluminista de passar sobre nossas supostas “subjetividades” como um trator, ou como quem anda sem dar a mínima para os insetos que pisa. Todos se curvaram — inutilmente, pois estavam é sendo esmagados —, inclusive os teólogos.

Algumas vítimas desses morticínios, contudo, continuaram a nos assombrar a existência. (O leitor verá que, para mim, existir é estar fora do Ser.) Fantasmas antigos são a cada geração rebatizados com novos nomes. Outros como que ressuscitam, saem dos antiquários falidos pelo descrédito e irrompem na urbanidade (?!?) filosófica como verdadeiras erupções vulcânicas. Em definitivo, não morreram, absolutamente! Da minha lista de mortos, por exemplo, [14] não constam, nem Deus, nem o Ser Humano, nem a Antropologia Filosófica. Esses “mortos” estão bem vivos e constituem o tema deste livro, que não é sobre defuntos, mas, ao contrário, pretende ser uma celebração da Vida como Experiência Humana ou vice-versa. Escusado lembrar novamente ao leitor, que já o deve ter depreendido, que minha celebração é suspeita, pois está na contracorrente da pós-modemidade, no mínimo no que concerne a algumas das características desta última: relativismo, pragmatismo, construtivismo, idealismo linguístico, uso maníaco da navalha de Ockham, etc., e no máximo no que concerne, não ao “mestre”, ou ao “príncipe”, mas ao verdadeiro “rei” do “não”, do negativo, monarca absolutista do niilismo, o único adversário (ou, paradoxalmente, estranha espécie de aliado?) neste jogo de xadrez, que também é este livro, que me poderia mostrar as portas infernais de um xeque-mate: refiro-me ao filósofo franco-romeno Emil Cioran  , de cujo xeque talvez tenha escapado. (A partida continua...? Sem dúvida, mas se tudo é dor, então por que usar a ideia de “dor”? Neste livro, prazer e dor são pólos do que se chama de “sofrimento”. Além disso, as rejeições totais correspondem às aceitações totais...)


Ver online : Sergio L. C. Fernandes