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Fernandes – O Lugar da Ciência

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

Para começar, alguns fatos básicos.

Além de biológica, aquilo que costumamos chamar de “mente” é, em larga medida, social, trans-individual e até “ecológica”. Basta nos lembrarmos de como “o cérebro”, como sistema, ou “o meio ambiente”, como sistema, se inter-monitoram. Além disso, quaisquer sub-sistemas monitoradores, cerebrais ou ambientais, estão de tal maneira intimamente acoplados um ao outro que seria difícil determinar de modo não arbitrário a fronteira entre cérebro e meio ambiente. Por exemplo, o “meio ambiente”, para um sistema monitorador do “cérebro”, incluirá o próprio corpo em que o sistema “pensar” que está (e qualquer de suas partes — “propriocepções” são uma sub-espécie de “percepções”), ou incluirá mesmo outros sub-sistemas cerebrais que ele estiver monitorando.((Isto para não tocarmos ainda no assunto da impossibilidade lógica e (infinita) improbabilidade biológica de um “cérebro’’ monitorar completamente a “si mesmo”...))

Considero que toda e qualquer situação cognitiva, envolvendo algo que se possa colocar no lugar de “o conhecedor” (o que se chamaria de “sujeito”) e algo que se possa colocar no lugar d’“aquilo que é conhecido” (o que se chamaria de “objeto”), é essencialmente uma interface, num sentido bastante simples: o Windows é uma interface, relativamente ao DOS; o painel, pedais e volante de um carro são uma interface entre o motorista e o que movimenta o carro (as engrenagens, o motor, os sistemas eletrônicos etc.); um rosto, ou corpo humano é uma interface entre outros organismos que interagem com ele e suas “intenções”, “estados” etc. Na minha concepção dessas situações, não há porque — salvo antropomorfismo — privilegiar uma ou outra “face” dessas “interfaces” (“organismo”, ou “meio”, por exemplo).

Concebo toda cognição como um corte “virtual”((Em última análise não faço distinção entre “virtual” e “real”, mas deixemos isso de lado.)) que “a mente, o pensamento e a linguagem” (tomados como um todo, ou um composto — MPL será doravante a sigla para essa tríade), ou, se preferirem, “o cérebro & aquilo que ele faz, do ponto de vista cognitivo”, introduz no que quer que seja que a MPL tome como um “todo”. Esse corte divide esse todo em duas partes, cujas fronteiras coincidentes são precisamente a interface a que me referi. O resultado é uma abrupta super-simplificação funcional que duas partes de um todo implementam uma na outra. (Se admitirmos “intenções”, essas super-simplificações funcionais serão consideradas como tendo fins manipuladores — ou “racionais”, se privilegiarmos a “face” do “conhecedor” — mas sempre no sentido utilitário de maximização e minimização de certos parâmetros.) O composto MPL pode ser encarado como o implementador, ou gerador de interfaces dessa natureza.

A MPL comporta-se como um operador que cortasse ou cindisse “todos” em duas “partes” (evito os termos “sujeito”, “objeto”, “organismo” e “meio”, ou “ambiente”, por considerá-los enganosos), tomando as interfaces das cisões (suas fronteiras coincidentes), como percepto/percebido, re-presentação/representado, imagem/imaginado etc.

Ora, em última análise (epistemológica), afirmo que tais interfaces são aquilo que é tomado como “objeto”, em toda e qualquer situação cognitiva. Esses “objetos”, enquanto identificados e re-identificados indefinidamente por um (suposto) “sujeito”, têm uma constituição puramente qualitativa (ou “softwérica”), no seguinte sentido (Fernandes 1997). Embora haja sempre um “hardware” “por trás” de todo “software”, há sempre um “software” “por trás” de toda apreensão cognitiva — inclusive na apreensão de um “hardware” como tal, ou seja, como “hardware”. (É isto que se quer dizer quando se afirma que toda apreensão cognitiva, mesmo nos níveis mais básicos, pressupõe a aplicação de conceitos, teorias etc.)

A Ciência vai ser aqui chamada de “Máquina de Salvar as Aparências” (MSA), um subproduto da MPL, que veio a constelar-se, séculos atrás, como uma Configuração Simbólica da Mente Social (minha concepção de “mito”)((No entanto, minha visada é antes antropológico-filosófica, que “científica”, no sentido de uma Antropologia Social ou Cultural.)).

Embora subproduto da MPL, a MSA é, enquanto “mito”, um instrumento poderoso, em certos sentidos, a serem aqui explorados, embora, como também veremos, absolutamente incapaz de ir ao âmago ou à verdadeira natureza das coisas.

A MSA só funciona, como máquina de prever ou retrover, se nela injetarmos conteúdo. Por si mesma, não descobrirá nada. Como diria Kant  , só descobriremos, com o “conhecer”, o que de algum modo já tivermos introduzido no “conhecido”. Simplesmente não se tira coelho de cartola vazia: o empirismo clássico é falso e ponto final.


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