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Fernandes (FC:84-89) – Ontocentrismo e antropocentrismo em Metafísica

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

Há dois sentidos em direção aos quais podemos buscar o Ser, dando origem a duas metafísicas radicalmente distintas, que divergem em direções opostas. Se pretendemos conhecer a nós mesmos à luz do Ser, temos a metafísica ontocêntrica. Se pretendemos conhecer o Ser à luz da nossa consciência, temos a metafísica antropocêntrica. Na primeira, a Antropologia Filosófica é um capítulo da Ontologia; na segunda, a Ontologia é um desenvolvimento da Antropologia Filosófica. Na metafísica ontocêntrica não se parte do Cogito, essa “viagem” do Ego, caracteristicamente moderna. Sendo este livro dedicado, além da Filosofia, à Consciência, o leitor poderia pensar que eu tomaria o rumo do que estou chamando de metafísica antropocêntrica.

Mas farei justamente o contrário. E não penso que provenha de algum “positivismo  ”, ou “naturalismo”, minha preferência pela metafísica ontocêntrica. Trata-se, antes, de não aceitar como um ponto cego nosso próprio pensamento e, sobretudo, porque, como se verá, não concordo com a concepção ortodoxa de “intencionalidade”. O “humano”, na perspectiva que prefiro, é o que se trata de compreender â luz do Ser. Para quem gosta de manter tudo na ordem das razões, no sentido fenomenológico de partir do Cogito, ou então para os partidários das filosofias da existência, tomar o rumo da metafísica ontocêntrica pode até parecer uma escolha prepóstera, pois pressuporia que podemos conhecer o Ser antes de nos conhecermos a nós mesmos. Mas a minha escolha não consiste no pôr um conhecimento antes do outro, na “ordem errada”. Pois o Ser não se conhece. Mais uma razão, dir-se-ia, para não preferir a metafísica ontocêntrica? Se o Ser não se reduz a dualidades, deveríamos talvez partir do Cogito, da intencionalidade, da fechadura hermética do campo fenomenológico, ou então das estruturas do dasein? Não. A metafísica ontocêntrica é o caminho anti-cartesiano por excelência. Não partirei do que há de ser compreendido. Não partirei do Cogito. O projeto fenomenológico-existencial de compreender o Ser, na sua redução à consciência, ou na sua realização na existência, não é o meu caminho. Para ser franco, só me parece conduzir ao desespero e à gratuidade, não à sua compreensão. Ora, o contrário do desespero não é a Esperança, mas a humildade. E o contrário da gratuidade, que costuma ser pervertida em livre arbítrio, não é, nem uma “paixão útil”, nem a escravidão, mas a espontaneidade ((Spinoza   diria, suspeito eu, a profunda compreensão da necessidade.)). Na metafísica ontocêntrica, o Ser não inclui um Ego, seja o Ego transcendental, ou o Atman do Vedanta, ou uma Ideia/Consciência Absoluta, e muito menos pode-se identificar com a Substância. O Ser “não é nenhum outro”, não pode ser objeto do pensamento. Não sendo eu, nem um aristotélico, nem um tomista, tratar-se-ia de uma “ontologia negativa”, à maneira da “teologia negativa”? Não sei. O ser não é, como se pensa erroneamente, “plenitude”: o pleno tem horror ao vácuo. E na metafísica centrada no Ser, este é como o Vazio: é o Espírito que tem “horror” ao pleno. Usa-se “vazio”, aqui, porque é “menos pior” que usar “Deus”, ou “Ser”, que podem sugerir um “Outro”.

O homem não é o centro do mundo. E as metafísicas centradas no homem são auto-centradas, de uma maneira ou de outra. O que se desvela no noema, ou então no dasein, não é o Ser, mas o nosso próprio rosto. Este “ser” é refletido, é lunar’(“lunático”), não solar. Pode ser por nós “iluminado”, mas jamais terá luz própria. Bem pode ser que sejamos, já disse, cada um de nós, um microcosmo, mas um microcosmo ainda é um cosmo, não a Fonte. Toda metafísica, como todo pensamento, gera problemas insolúveis. Mas o problema insolúvel da metafísica antropocêntrica, justamente por ser auto-centrada, é o problema do “outro”. Partindo-se do eu, só podemos encontrar, sob infinitas formas, o próprio eu. Como se pôde pensar que a Existência precede a Essência? Tratar-se-ia apenas de uma rebeldia contra uma suposta tirania da “natureza humana”, ou da Essência “Real”? Mas, como já veremos, não há essências reais, e existir é estar fora do Ser. A estrutura mesma da Existência é dual: mundo como pro-jeção, a consciência como intro-jeção. Seu destino é a solidão absoluta, pois não pode haver mais de um ponto no centro de um círculo. Por isso, a metafísica antropocêntrica é, em última instância, uma metafísica da miséria. É preciso que alguém tenha o trabalho de lidar com ela, mas a descrição das estruturas da Existência, se nela nos comprazemos, acaba por voltar-nos as costas para o Ser. As metafísicas antropocêntricas são o lamento do exílio, a canção dos desterrados, a “Paixão Inútil” dos expulsos do paraíso. Mas para onde teríamos sido expulsos?

Para esse “aperto”, da própria vida: Anxiare, estreitar, encolher, oprimir, recolher-se. Seduzidos pelo “Primado da Existência”, o que chamamos de “vida” é um recolher-se indefinidamente, ou “invenção” do lado de dentro, do Ser, de modo que lhe vá correspondendo o lado de fora: o cabelo, as unhas, partes mortas de uma vida que não está lá, mas está mais para dentro; as cascas, a pele, a casa, o habitat, o corpo, regiões fronteiriças entre onde estou e onde não estou, e que, por isso mesmo, são por mim concebidas como extensões protéticas de onde quer que eu esteja, sempre mais para dentro. A própria “mente” torna-se uma dessas extensões, em que o que se recolhe, pensamos, só pode ser a “consciência”. Quanto mais “viva” pensa-se a parte morta, quanto mais opaco ou resistente parece-lhe o mundo, lá onde você não está porque ele “aparece” à sua intencionalidade. Quanto mais “viva” pensa-se a parte morta, mais impenetrável será sua solidão, “aí” onde você pensa que está, “com a morte na alma”. De fora, do “fora” da intencionalidade, nem Deus — para usar as metáforas cristãs da noite escura —, nem Deus poderá atingi-lo. Pois como poderia Ele estar conosco no centro do Círculo? Você tem expectativas, logo, quando você pensa que Ele o criou à sua imagem, é você que O cria à sua semelhança. Não, você não encontrará por aí nenhum deus, ou nenhum demônio, a menos que se torne um. Mas se é isto que os filósofos que partem do Cogito entendem por “escolher” uma essência, a partir da Existência, eles estão sendo tremendamente ingênuos. A miséria nutre-se de intencionalidade e expectativas, mas o Ser não é nenhum preenchedor de expectativas, muito menos um preenchedor de noemata. Não está “à altura” de expectativas. No ponto culminante do que julgamos ser o nosso progresso, não haverá ninguém para receber-nos. Os deuses que inventamos libertam-se a si próprios, não a nós.

O filósofo tem sido um desesperado — falta-lhe humildade — porque não compreende que é inútil fazer perguntas ao Sábio. E o filósofo passa a vida a fazer perguntas. Cheio de si, numa falsa humildade, não vê que a pergunta pressupõe o que só nós mesmos poderíamos saber. Fecha-se em copas, solus ipse, e tenta sustentar-se a partir de um Si-mesmo, de um Cogito, que já está fora do Ser, na Existência. Mas ele não pode encontrar a resposta, a menos que a resposta o encontre. De modo que, ao fechar-se para pensar, ao recolher-se para perguntar, é sua própria imagem que se expande. Mas quando o eu se expande, pela intencionalidade e pela expectativa, só há ansiedade. É assim, p. ex, que há existencialistas cristãos: In Te, Domine, speravi: Non confundar in aeternum! (Já vimos que o cético é também um crente, só que hipócrita — e quem leu O Ser e o Nada sabe que Sartre   era obcecado por Deus.)

O Ser, na metafísica antropocêntrica, é sempre o estranho, o estrangeiro, o que chamamos de “o próximo”((Pois os mais íntimos tornam-se extensões de nós mesmos, assim como nos tornamos extensões deles.)). Mas como pode a alteridade constituir-se como tal, no campo da intencionalidade, senão, per absurdum, por uma criação ex nihilo? Nas metafísicas antropocêntricas concebemo-nos como criadores, sim, condenados de antemão ao fracasso. Pois nas estruturas noemato-noéticas não há lugar para criações, e muito menos a partir do nada. Sendo filosofias da auto-suficiência, essa perversão da verdadeira autonomia, as filosofias que partem do Cogito descrevem nossa angústia, nossa solidão, e nosso desespero. O próximo? Não criamos o que detestamos. O existente estará sempre face a face ao existente, na estranheza, no ódio, ou na indiferença.((O que se chama dc “amor”, no contexto da angústia, da solidão e do desespero, não merece sequer ser mencionado, pois não passa dc uma guerra do desejo e do apego.))

Na perspectiva da metafísica antropocêntrica, nosso único poder é o de reduzir o Ser às estruturas intencionais da nossa consciência. É o que podemos fazer. Este poder é, metafisicamente, o poder de destruir o Outro, não de realizá-lo, muito menos de criá-lo. Eis porque buscamos inevitavelmente o Absoluto, só podendo reconhecê-lo no que não podemos destruir, realizar, ou criar. Buscamo-lo num Outro, seja ele Deus ou “O Próximo”. Só uma infinita potência criadora poderia contrapor-se à nossa “infinita potência” destrutiva. Só um amor sem limites poderia contrapor-se a um ódio sem limites. Aí está, aliás, a raiz do existencialismo cristão: ao outro concebido como o próprio inferno, contrapõe-se a tese de que o amor é a realidade do outro. De tal maneira o chamado “Primado da Existência” afasta-nos do que “é”, que, para reencontrá-lo, identificamos amor e realidade, de modo que amar é perceber algo como plenamente real. Assim como do ódio nasce o fazer de quem se julga o Agente, assim também do amor nasce o conhecer de quem se põe “Fora do Ser”. O que, por exemplo, o fenomenólogo pretende, é chegar ao Ser e à essência. Mas busca-os justamente onde jamais poderá encontrá-los, porque parte, de uma maneira ou de outra, da intencionalidade do eu. No Próximo visto como outro, Deus se esconde; no outro visto como próximo, Deus se mostra. Trata-se de uma verdadeira imposição de sentido. A hermenêutica radical dessa imposição, dizem, confunde-se com a própria vida. Happy End? De modo nenhum. O Espírito não deixa traços, você não pode rastreá-lo, ir atrás dele, nem que dedique a isso a própria vida. A verdadeira compaixão não nasce da percepção de algo como plenamente real, mas floresce da compreensão de que toda “realidade” e toda “existência” estão fora do Ser. Mas seria isso muito “oriental”? Em linguagem cristã, uma resposta cristã: o sentido, que, como sabemos, não é apenas o que pensaram Frege e Husserl  , permanecerá para sempre ferida aberta, por onde se espera que passe a Verdade, que se ouça a voz, que surja a gnose, que se anuncie o profético; é também um “sinal” de consolação, teúrgico, sagrado, pela eficácia do qual se espera a (re)iniciação do Caminho; e é ainda a direção do tato, contato espiritual, ou a própria Vida como ligação entre a imagem e a semelhança. Eis aí, se recompormos a ordem, o Caminho, a Verdade e a Vida, sob a égide da Esperança. Mas não se pode encontrar o Ser se o esperamos. É inverter as coisas. Ele é que nos encontra.

Não pense o leitor que, por preferir uma metafísica não estritamente fenomenológica, e que não parte do Cogito, eu esteja indiferente, seja à fenomenologia da consciência, seja às obscuridades e misérias da Existência. Mas não pense, sobretudo, que, por preferir uma metafísica ontocêntrica, sou dos que creem numa essência humana, “anterior” à sua existência. Se o primado da existência o é em relação a meras essências nominais, papéis a desempenhar, com script, contra-regra, plateia, punições e recompensas, então não é primado nenhum. Pois nesse tipo de “essências” é que consiste o estar-se fora do Ser. Se, por outro lado, o primado da existência o é em relação a “essências reais”, então, outra vez, não é primado nenhum. Pois tais coisas — essências “reais”- não são jamais o que se pensa. De um modo ou de outro, portanto, a Existência não tem por que “primar”. Existir não é estar, nem “antes”, nem “depois” do Ser, muito menos estar “aí”, antes das essências. Existir é estar fora do Ser. Neste sentido, poder-se-ia admitir, com os existencialistas, que o ser humano é o ser que se faz carente de ser a fim de que haja ser. Mas isto deve significar que o ser humano é o ser que está fora do Ser a fim de compreender-se a si mesmo, ou cair em si. (Não direi “voltar a si”, pois o Ser nada tem a ver com evoluções e involuções.) Compreender-se é morrer para si mesmo. Morrer para si mesmo é viver. O primado, se há algum, é o da Vida. E só se pode viver no Ser, não fora dele. A compreensão de si é infinitamente mais “mortal”, para o “si”, do que a morte bio-antropológica, na qual se encomendam defuntos. Fora do Ser, o ser humano já está morto. De modo que falar num “Primado” da Existência é falar de um “Primado” da Morte, não da Vida. Eis aí o caráter ao mesmo tempo macabro e quixotesco de todas as filosofias que partem do Cogito: alucinam moinhos de vento, ou seja, “essências”, e nisso dramatizam a guerra entre o Eu e o Outro, entre a Morte e a Morte.


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