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Fernandes (FC:82-83) – conhecimento da Natureza “regido” por projeções antropomórficas

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

A expressão meramente extensional do universal legaliforme deixa aberta a possibilidade de que, embora não haja exceção, tudo não passe de coincidências, de acidentes, por mais incrível que seja para nós essa visão das coisas. Por outro lado, o sentido de uma pretendida expressão intensional do universal (no sentido nômico, ou “essencial” de necessidade extra-lógica) é para nós inescrutável, como já veremos a propósito da noção de “essência”. Mas é isso que ocorre quando nos “pensamos” como agentes: o caráter autônomo da ideia de “agente” parece-nos tão inescrutável quanto um poder causal. A noção de causalidade é, como queria Kant  , meramente regulativa, mas porque ela projeta na, ou confere à, natureza um poder análogo ao que pensávamos ter sobre nós mesmos. A noção de causa é, simplesmente, antropomórfica, e pode bem estar baseada numa ideia equivocada do que nós somos, como será investigado na Segunda Parte.

Devido a essa projeção antropomórfica, diz-se que a Natureza é “regida por leis”, provavelmente como os Reis regem seus Reinos. Chamo esta Natureza de Primeira Natureza, ou seja, nosso Inconsciente Primevo. Que ela seja regida por leis é força de expressão, ou expressão forçada, erigida à categoria de Hipótese Metafísica (“regulativa”, no sentido kantiano). A rigor, nosso conhecimento da Natureza é que é “regido” por projeções antropomórficas. De qualquer modo, como vimos, as “leis” que encontramos na Natureza são todas contingentes. Jamais se conseguiu esclarecer o sentido de uma “necessidade” que não seja lógico-linguística, de modo que costuma-se contrapor o “arbitrário” da Primeira Natureza ao “normativo”, ou “racional” do que eu chamo de Segunda Natureza, à qual, afinal de contas, até a Lógica pertence. No entanto, o reino normativo, ou racional, tem uma dimensão não-normativa, não-racional, que eu chamo de dimensão “simbólica”. O simbólico é conhecido como o que nos condiciona, nos determina, também de maneira inconsciente, integrando, portanto, apesar de sua origem “cultural”, o Inconsciente Primevo. Já a dimensão “ideal”, dita irredutivelmente normativa ou racional do reino do simbólico, embora aja sobre nós como uma Segunda Natureza — já não se viu alguém ser absolvido de assassinato por sistemas jurídicos que legitimam a “defesa da honra”? Há muitas maneiras jurídicas de estar “fora de si”, na Natureza — a dimensão “ideal”, eu dizia, embora aja sobre nós como uma Segunda Natureza, é ilusoriamente considerada como objeto das “Ciências do Espírito”, que nada mais são do que ciências da mente humana (“espírito” traduz mal “Geist”, melhor traduzido por “mind”). E a mente humana é também uma realidade biológica. Já a presumida “racionalidade” irredutivelmente normativa pode ser descrita como uma propriedade de sistemas cognitivos, enquanto organismos. Significa capacidade de auto-controle, auto-reprogramação de comportamento dirigido a fins, maximização de utilidades, “poder decisório” etc.. Num patamar, digamos, mais “normativo”, significa a possibilidade, para o sistema, de comensuração, ou aplicação de medidas comuns, ou seja: de identificação do diverso. Pode também ser entendida como a capacidade de conceber e aplicar conceitos. E pressupõe, da parte dos sistemas orgânicos, a capacidade de usar indexicais e, portanto, de auto-concepção ou identificação objetal.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


FERNANDES, Sérgio L. de C.. Filosofia e Consciência. uma investigação ontológica da Consciência. Rio de Janeiro: Areté Editora, 1995