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Fernandes (FC:79-81) – indivíduos e conceitos

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

[FERNANDES, Sérgio L. de C.. Filosofia e Consciência. Uma investigação ontológica da Consciência. Rio de Janeiro: Areté Editora, 1995, p. 79-81]

Mas se as coisas individuais não são o que estamos habituados a pensar que são, nossa investigação deve prosseguir. Desta vez, sem nos deixarmos guiar por outrem, experimentemos. Em que consiste o Ser de um ente qualquer? Não comecemos por exemplos complicados, como os universais. Tome este livro, que você lê. A resposta óbvia parece ser que ele é o que ele é, ou seja, tudo que ele é, a coleção completa de tudo que ele é, a coleção completa de todas as suas qualidades. O modo que ele tem de ser cada uma de suas qualidades é o modo de cair sob um conceito. Na extensão deste, ele é idêntico, qualitativamente, a todos os indivíduos que também caem sob o mesmo conceito.

Podemos dividir um mundo, exaustivamente, em duas coleções mutuamente exclusivas: a coleção dos indivíduos e a coleção dos conceitos, sendo indivíduo tudo o que puder ser considerado instância ou exemplo de um conceito, e conceito, tudo o que tiver exemplos ou instâncias. Cada conceito, por sua vez, é um critério de classificação que também divide um mundo exaustivamente em duas coleções, também mutuamente exclusivas: a coleção de tudo o que pode ser considerado instância ou exemplo do conceito, e a coleção de tudo o que não pode ser assim considerado. Não faz sentido dizer que os indivíduos (coisas, eventos, causas etc.) são logicamente relacionados entre si (p.ex., pelas relações de “dependência” ou “independência”). Somente conceitos e suas articulações em proposições etc. poderiam entrar em tais relações. Ao dizermos que o indivíduo a depende do indivíduo b, queremos dizer que a noção ou descrição do indivíduo a, expressável em predicações (essenciais ou acidentais) depende da noção ou descrição do indivíduo b. Tal “dependência” é lógica e expressável pela relação de implicação material. (Se b for uma condição necessária de a, teremos que a implica ò; se b for uma condição suficiente de a, teremos que b implica a; e se b for uma condição necessária e suficiente de a, teremos que b implica a e a implica b.)

As extensões de todos os conceitos sob os quais este livro (o que o leitor tem em mãos) cai intersectam-se. Cada uma dessas interseções é, por sua vez, uma extensão de um conceito, de modo que seus membros só se distinguem in numero. Se admitirmos que o número de qualidades deste livro é finito, será possível conceber uma interseção que só tenha a ele como membro? (Este é um dos aspectos do problema das “descrições identificadoras”.) O que pertenceria a essa interseção de um único membro? O x (o livro) tal que x é Pi, P:,..., Pn, em que P é um predicado monádico. Mas as coisas não são assim tão simples. O conceito de “triângulo” é tal que o que quer que seja que caia sob ele cai também sob os conceitos de “figura”, “figura plana”, “ter três ângulos” etc. Esse desdobramento vale também, obviamente, para cada um destes últimos conceitos. De modo que já vai ficando mais difícil conceber que o número de qualidades deste livro seja finito. Se admitirmos dentre suas qualidades, o que chamamos de “relações” (predicados n-ádicos), torna-se praticamente certo que aquele número é tão grande quanto queiramos, pois será sempre possível conceber que este livro se relacione com qualquer coisa que se imagine. De uma maneira ou de outra, portanto, as qualidades parecem “explodir” em infinitudes. Se cada uma for como uma camada de cebola, este livro é como uma cebola sem caroço — ou com um caroço “assintótico”- e a cebola, por sua vez, incluirá todas as qualidades. A coleção das qualidades deste livro, como a de qualquer indivíduo, seria idêntica à coleção de todas as qualidades, tout court. Ao tentar conceber o que este indivíduo é, em termos de suas qualidades, chegamos ao Todo, e não exatamente a este indivíduo.

Experimentemos o inverso. E se este indivíduo for, no sentido mais radical de Ser, um caroço? Um “caroço”, aqui, é aquilo que, talvez, deva manter unidas no espaço-tempo as qualidades deste indivíduo. Neste caso, o caroço deveria cumprir o papel que as qualidades não lograram cumprir, ou seja, deveria ser o que este indivíduo é. Mas, das duas, uma: ou o caroço é ele mesmo uma qualidade, ou tem ele mesmo qualidades, e recairíamos no nosso experimento anterior; ou não tem qualidade alguma, seria um caroço sem a cebola, um “particular nu”, inútil como individuador, pois o que não tem qualidades, ainda que seja infinito em número, não pode ser diferente aqui, ou ali. É o mesmo em toda parte, como os átomos de Demócrito.


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