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Fernandes (FC:25-29) – as ideias fundamentais da Ética

domingo 10 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Passemos, portanto, do "departamento" de Epistemologia ao "departamento" de Ética. A ideia do "dever ser" é, na cultura humana, a marca do desastre, a chaga aberta na Consciência pela inconsciência, o sintoma do desequilíbrio, da desarmonia e do conflito, o lugar hipersensível da dor e do sofrimento, a principal estrutura de sujeição, a rede obscurecedora da atenção, o sulco por onde nossas melhores energias são drenadas, o primeiro de todos os pontos de identificação, o resultado mesmo dessa condição humana, o ponto de vista. Trata-se, pois, do próprio inferno.

O dever ser não é, mas, relativa ou absolutamente, "deveria" ser. Ele "não é" o que é. E "é" o que não é. Mas a estrutura dessa ilusão é tal, que, sem juízos de valor, não haveria fenômeno, não haveria um "mundo". Trata-se de algo análogo à própria linguagem: o symbolon é o que está no lugar de outra coisa; é o que faz as vezes de outra coisa. Sob esse aspecto, é "o falso" por excelência. E outra vez: [25] a estrutura dessa ilusão é tal, que, sem linguagem, não haveria um mundo.

Quais são as ideias fundamentais da Ética disciplinar? Não da "ética" descritiva, o que é uma contradição em termos, pois seria o tomar o normativo com factual. Tampouco da "ética" prudencial, interesseira: "Se quiseres isto, então faça aquilo". Menos ainda da ética "normativa", enquanto pretensão de conhecimento, digamos substantivo, de "valores" éticos determinados. Estes, na verdade, têm muito em comum com aqueles outros "valores" que, em certos lugares públicos onde há escaninhos para guardarmos nossos pertences, deveríamos, por prudência, levar conosco: -favor não deixar valores nos armários". Ou aqueles sobre os quais nos perguntam inspetores, nas barreiras, referindo-se a dinheiro, joias, ou outros objetos de alguma "liquidez": "contém valores?"; -o sr. porta valores?". Eis o Bem, reduzido aos bens.

Quais são as ideias fundamentais? Uma delas, sem dúvida, é naturalista, e relaciona-se justamente aos bens, às "utilidades". Sua origem está em Aristóteles  , o único dos grandes filósofos gregos para quem a Ética podia, efetivamente, ser deste mundo, ou "mundana". A Ética aristotélica, apesar de ter atirado a contemplação intelectual para as alturas, é naturalista, relativista e prudencial. Na verdade, aproxima-se do hedonismo, que mergulha o Bem na natureza e, assim como o emotivismo, seria melhor tratado pela Psicologia e as ciências humanas e sociais, senão pela Sociobiologia.

O utilitarismo reduz a Ética a uma justiça cuja balança é concebida na horizontal. Sua posição, em qualquer de suas formas — inclusive as complicadíssimas formas contemporâneas, que nos lembram uma superposição ad hoc de epiciclos ptolomaicos — pertence mais propriamente, se é que pertence à Filosofia, à Filosofia do Direito. Mais próximo do cerne da questão estaria conceber a balança na vertical, um prato na terra, pesando nossas obras, e outro no céu, de onde nos vem a Graça. Mas talvez isto seja assunto para teólogos, ou filósofos da religião?

É nosso mau hábito (mau caráter) só conceber a balança da justiça na horizontal. Mas como poderia a justiça ser quantitativa? Se uma senhora, possuidora de grande quantidade de virtudes, acumuladas a vida inteira, ao saber que seu marido, que só possuíra virtudes em quantidades mínimas, reconciliara-se com Deus à hora da morte e fora para o Céu, ficasse furiosa e clamasse por justiça, ela certamente iria para o Inferno. Se um de meus alunos, recebendo de mim a nota máxima, ao saber que um colega que pouco trabalhou também a recebera, ficasse furioso e clamasse a mim por justiça, que faria? Responda o leitor, se for, como eu, professor. Pessoas "de caráter", convenhamos, estão sempre na defensiva, ofendem-se facilmente, não compreendem a parábola do Filho Pródigo, e tomam-se e a Deus como agentes de atribuição, distribuição e retribuição de justiça. Não entendem que quem dá é que está em "estado de gratidão", se a mão esquerda ignora o que fez a direita.

Onde procurar as ideias fundamentais da Ética? Se não pode ser no jardim de Epicuro   (ataraxia), nem no deserto dos estoicos (apatheia), poderíamos encontrá-las na Meta-ética? Mas a Meta-ética tem sido muito frequentemente reduzida a uma forma ou outra de "ascensão semântica", ou seja, a um modo de fugir do assunto. Que diríamos então de uma fenomenologia do ato de valorar [1], ou talvez de uma ontologia "negativa" dos valores? Esse tipo de reflexão tem-nos levado a impasses. Como podemos ao mesmo tempo ser criadores de valores e ter deles um conhecimento, ou uma intuição? Como podem valores criados por nós constranger-nos a vontade, tornando-a "racional"? Como pode a criatura obrigar o criador, sem aliená-lo? Como é possível conceber a autonomia? Kant   propôs que só um "fim" em si, que não servisse de meio para outro fim, poderia mover a razão, se esta fosse prática. Difícil de entender, pois seria um fim em si ainda um fim, um fim a atingir? Ou, nesse caso, todos os meios é que seriam fins? Que me perdoe o leitor uma equivocação deliberada sobre os sentidos de "razão": Havendo uma correspondência exata entre nossas razões para agir e as consequências que esperamos, como pode uma "razão prática", em toda a sua pureza, não podendo corresponder a uma consequência esperada, ser ainda uma razão para fazermos o que quer que seja?

Não planejo, meu caro amigo desconhecido, aproveitar-me da sua atenção para obrigá-lo a ler mais uma exposição da filosofia prática de Kant, ou de como a criticou Hegel, ou de como a Ética pode ser salva das críticas dos "mestres da suspeita", Nietzsche  , Freud   ou Marx  . Todos esses grandiosos temas devem sem dúvida pertencer à Ética, administrativamente, pelas lições que encerram aos [26] filósofos em formação, lado a lado com todas aquelas questiúnculas semânticas ruminadas pelas filosofias de inspiração analítica. Mas apesar de todo o seu valor, esse ensino poderá ser estéril, e ainda poderá confundir, se não for animado pelas questões fundamentais, originárias "do dever ser". Mas a origem dessas coisas, caro leitor, é a origem da própria miséria humana. Consideremos, então, resumidamente, essa origem e essa miséria.

A uma primeira aproximação, parece-me tratar-se do seguinte: ou a origem do dever ser está em nós, e nossa vontade é a do Bem e do Mal, ou seja, é arbitrária; ou, a origem do dever ser está num ser absolutamente transcendente, e nossa vontade é obrigada pela Lei. No caso do arbítrio, colocamo-nos no lugar de Deus, como se Deus estivesse morto. No caso da Lei, colocamos Deus no nosso lugar, como se fôssemos escravos. É evidente que essa alternativa está opondo dialeticamente dois monstruosos equívocos, e só pode mesmo corresponder a uma primeira aproximação da questão, talvez demasiadamente superficial. No entanto, desgraçadamente, ela expressa realmente um impasse que se tem manifestado na história da humanidade. Trata-se de um impasse muito real, e que tem levado o ser humano a enorme sofrimento. No caso do arbítrio, alienamos nossa vontade à natureza, seja física, biológica, ou essa segunda natureza que é a cultura. Alienamo-la triplamente: primeiro, às estruturas de poder e dominação do Superego e das "formas simbólicas"; depois, ao ensaio e erro, na ciência e na ideia de "progresso"; e, finalmente, á tecnologia que transforma pela destruição, que transforma pedras em pães destruindo as pedras. Ferimos a natureza incessantemente, para nos tornarmos pontos culminantes de uma evolução autosuficiente. Já no caso da Lei, alienamos nossa vontade ao Deus Moral, que entendemos governar-nos pela onipotência e a onisciência. Trata-se aqui do próprio dever ser, que, hipostasiado, torna-se uma projeção da nossa miséria. E uma concepção pervertida da Graça divina engendra então um deus que ameaça e protege, acusa e consola, distribui e retribui, mantendo-nos no cativeiro da culpa, do ressentimento e da rebelião.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes


[1FERNANDES, Foundations of Objective Logic. London: Reidel, 1985, 6.3.2., p. 244 segs.