Página inicial > Modernidade > Sergio L. C. Fernandes > Fernandes (FC:2-5) – filosofia e filosofar

Fernandes (FC:2-5) – filosofia e filosofar

domingo 10 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

No meu entender, a Filosofia nasce — e isto não é uma observação histórica! —, não de especulações físicas, ou cosmogônicas; não como uma proto-ciência, ou como a “mãe” de todas as ciências; mas, sim, de um abismo, de um abismar-se, num desdobramento original e, por excelência, enigmático, em nós mesmos. Ela não é a mãe de todas as ciências, no sentido muito simples de que tudo aquilo que as ciências lhe retiraram, por desapropriação, jamais foi o que realmente a constitui e anima, mas sempre o que lhe era acessório, incidental, secundário, periférico. Ora, não é assim que se concebem autênticas “filhas”. De modo que as ciências não são filhas naturais da Filosofia: são-lhe filhas adotivas, “perfilhadas” e, no máximo, foram por ela amamentadas, enquanto, prematuras ou recém-nascidas, eram incapazes de alimentar-se por si mesmas. Do mesmo modo, a Filosofia jamais podería ser a empregada doméstica da ciência, como muitos a entendem hoje, sucessora da serva de antigamente, que trabalhava na casa da Teologia. Tudo isso é coisa de quem sempre passou ao largo da verdadeira atividade filosófica, provavelmente por excesso de “competência”. Em definitivo: nem mãe, nem serva.

No entanto, isso nos remete, tradicionalmente, à arte — não “método”! — de ajudar o parto. E isto sim, procede, apesar de ter sido também alvo de perversidades. Pois se trata de ajudar, não de induzir, muito menos de antecipar, extrair a fórceps, fazer cesarianas num útero “dialético”, ou abortar. O que está para nascer já está lá — na verdade, num certo sentido, importantíssimo, sempre esteve lá — , e o trabalho de parto já começou, ou melhor, “começa” eternamente. Sem esta eternidade, a Filosofia não tem nada a fazer. Trata-se apenas de assistir, não de “insistir”. E, na verdade, o trabalho de assistir ao parto é inteiramente secundário. Não é nem mesmo como uma escada que, ou se pode ou não se pode jogar fora depois de usada, mas, antes, como uma escada que jamais existiu. É preciso, portanto, não [2] identificar o filósofo e o professor de filosofia. Filosofar não é “fazer nascer”, mas nascer, ou nascer de novo. Longe de ser o que faz nascer, a Filosofia é o que nasce, e nasce em cada filósofo: toda investigação filosófica autêntica, justamente por ser um nascer outra vez da Filosofia, é, em última análise — com o perdão da palavra ‘análise’ —, uma investigação do “ser” do ser-humano.

O “tempo” da Filosofia, quando existe, está muito mais próximo do tempo mítico, que do tempo histórico. A Filosofia surge, como já disse, de um desdobramento enigmático em nós mesmos. Trata-se de acontecimento originário, tanto no sentido arcaico, quanto no sentido arquetípico. É o Ser, no entanto, e não o “sujeito”, que se desdobra em enigma, pois o sujeito é o que é gerado neste desdobramento. De um lado do abismo, “aparece” um eu, um si, um si-mesmo, que, se aparece, então é um “objeto”, ainda que sui generis; do outro lado, ou do lado do outro, “aparece” uma esfinge, obscura como uma sombra. No mito, a sombra é projetada: propõe enigmas a estrangeiros. Faz perguntas aos exilados de si mesmos. E mata, devora todo aquele que se entrega ao seu próprio jogo obscuro, que faz seu o jogo dela, que deseja, pretende, ambiciona decifrá-la nos termos dela, ou seja, na sombra, no reflexo, na reflexão, na astúcia, na dialética. Só mesmo um cego, motu proprio, diante disso, pode “entrar” na condição dela e, por isso mesmo, decifrá-la. E uma sombra decifrada extingue-se: é uma sombra “suicidada”.

Ora, é de enigmas que se nutre a Filosofia, desde que nasce. O que aparece no mito como “Decifra-me ou te devoro”, reflete-se na história como um jogo de sombras, de reflexões especulares, como dissimulação, fingimento — eironeial Seria um teatrinho, se não fosse trágico, um teatro de perguntas e respostas. Um dos “duplos” desdobrados, abismados, faz ao outro “duplo” perguntas enigmáticas (”Quem é o mais sábio?”) e recebe respostas igualmente enigmáticas (”Tu és o mais sábio!”). A Filosofia surge, portanto, de uma estranha inversão de papéis. Enquanto, no mito, é a Morte — a devoradora Senhora da Morte — que pergunta, que propõe o enigma, na história a Filosofia nasce porque alguém faz a pergunta ao oráculo. O filósofo torna-se filósofo porque, ainda que utilizando-se de intermediários (Querofonte), faz ele mesmo a pergunta enigmática, a pergunta mortal, põe a máscara (persona) da Esfinge, estranha a resposta e, ao invés de emprestar toda a sua atenção à pergunta em si, põe-se a testar a resposta, por meio de uma dialética negativa. (Não teria sido assim com Sócrates?) A Filosofia surge naquele que [3] afirma sua exclusão da Sabedoria, ou seja, naquele que afirma que nada sabe. Ainda se trata de vida ou morte, mas, sobretudo, de “morte”. O que era simplesmente um ofício qualquer, a sophia, vem a ser o enigma dos enigmas. Mas a porta sempre esteve aberta! A “chave” do enigma sempre esteve em não aceitá-lo nos seus próprios termos: o que abisma, o que estranha e separa o filósofo da própria Sabedoria é a palavra mesma, ‘Filosofia’. O que nos separa — paradoxo dos paradoxos! — é retirarmo-nos, cautelosa, inepta e pusilanimemente, para o papel de “amigos”. Uma “personalidade filosófica” consiste precisamente nessa mascarada.

Isso tudo me parece muito misterioso e, ao mesmo tempo, parece encerrar a chave da compreensão da condição humana, vista lá de onde o Sol se põe, por contraste com a “Filosofia Oriental”, ou ponto de vista de onde o Sol nasce. Tudo, portanto, muito “desorientador”. É como se Édipo estivesse para a Esfinge, como Sócrates para o Oráculo. Mas não se teriam ambos cegado, embora de maneiras diferentes? Não seria a Consciência, em ambos, o “ponto cego”? Não será por isso que, o que no mito é ameaça de morte — “Decifra-me ou te devoro”— e, na história, é o nascimento da Filosofia — “O mais sábio é o que sabe que nada sabe” —, são uma e a mesma coisa, ou seja, a exortação clássica, “Conhece-te a ti mesmo!”? Mas não estará na resposta à exortação a decifração do enigma! Pois a chave, repito, está em não aceitar seus próprios termos — “Filosofia” —, em não fazer o seu próprio jogo. De modo que a chave só pode estar na compreensão da pergunta, no resistir às tentações opostas, tanto de respondê-la (a “dialética”), quanto de esquecê-la, ou reprimi-la ( a “ignorância”).

Filosofar então é, aparentemente, a mais impossível das artes imaginárias. Pois, do mesmo modo que compreender o desejo, ao invés de reprimí-lo, ou de satisfazê-lo, exige uma energia, uma atenção da mais prístina qualidade, assim também compreender a pergunta, “Quem sou eu?”, ao invés de abandoná-la, ou de respondê-la, exige de nós heroísmo, ou seja, que “ocupemos” o “lugar nenhum” que é o lugar do herói. Não, como arte do “imaginário”, a Filosofia é uma impossibilidade. Qualquer vacilação, qualquer diminuição de intensidade na atenção, e estaremos de olhos abertos para a ilusão, portanto cegos pela dialética, sujeitos ao ideal da amizade “competente”. Não é sem razão que o Sócrates platônico afirma, no Fédon, que os que vieram filosofar, na verdade vieram, sem o saber, aprender a morrer. Pois a questão é de vida ou morte. Mas, [4] numa estranha “privação de sentidos”, análoga à inversão de papéis entre a Esfinge e o Oráculo, o que concebêramos como “vida” sempre fora, então, morte; e o que concebêramos como “morte” sempre fora, então, vida. Ora, não se trocam assim concepções por satisfações, explicação, ou prestidigitação: compreensão, ao contrário de explicação, só pode ser total; logo não pode pressupor nada que deva ser compreendido. Só compreende, portanto, quem não se pressupõe a si mesmo. Eis o mistério do amor e da morte. Eis a verdadeira Sabedoria: “ofício”? — sim, mas insujeitável. Eis como concebo a Filosofia, sem que “tempo” algum separe a concepção do parto.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes