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Fernandes (FC:149-153) – consciência

domingo 10 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

No entanto, o que se trata agora de compreender é nossa incompreensão mesma. No Capítulo precedente, terminamos num jogo de luz. A primeira condição desse “Jogo”, ou “Ontologia”, é, no símile adotado, Luz difusa, sem fonte discernível. Não sugiro que essa Luz seja o Ser Primevo, o Plenum Ôntico, a Consciência Absoluta, ou Deus. Não se trata de um exercício de cosmogonia. Trata-se, antes, de uma estrutura, se quiser o leitor, como nos mitos: muitas coisas, muitos símbolos vão “ocupar o lugar” dessa Luz, não “na realidade”, mas como artifícios do pensamento. E cada ocupação — função simbólica —, por sua vez, estrutura-se. Nessa estrutura, como nos mitos, os lugares não são reservados. Nem mesmo as relações são imutáveis. A movimentação das ocupações altera as relações entre um “lugar” e outro; reciprocamente, as alterações das relações movimentam as ocupações. Nada está jamais no “seu” lugar próprio, pois não há tal coisa. Cada movimento remete a outro, como se tudo fosse “falso”. Uma coisa sempre por dizer outra, significando outra, estando no lugar de outra.

O que é, então, “constante”? Bem, digamos que, se há uma estrutura, não é qualquer coisa que pode estar no lugar de qualquer coisa. Haverá limites de intercâmbio além dos quais ... nada demais acontece! , mas o símile se desintegra, “explode”, e, simplesmente, já não serve. Teremos que usar outro. Esses limites, contudo, não são descobertos a priori, mas na experiência da movimentação simbólica. O que não quer dizer que essa “movimentação” seja um exercício de “aprender com a experiência!’. É uma experiência, mas não corresponde a uma “investigação empírica”. Como nos mitos, harmoniza o caos em cosmos. Dir-se-ia que a movimentação vai projetando, além do que podemos perceber à primeira vista, limites que se apresentarão, mais cedo ou mais tarde, se jogarmos o bastante. Nos limites, as coisas começam a repetir-se, e a estrutura se “esgota”, tende abruptamente para “atratores” dinâmicos, [149] pontos ou ciclos. Mais além dos limites, estão os atratores que dependem infinitamente das “condições iniciais”, ou seja, os atratores estranhos, ou caóticos. Então a estrutura se espirala, e torna-se irreversível.

A Luz, no símile, não é “nada”: apenas o pensamento precisa de um palco, um tabuleiro, ou de uma pequena alavanca. O pensamento não pode surgir do Nada, não porque ele precise surgir de alguma coisa, mas porque o tempo é sua invenção, de modo que não há tempo no qual ele possa ter surgido. (Você sabe quando sua “mente” foi “ligada”? Sabe desligá-la? Certamente não, pois não é “você” que a usa. “Você” é um movimento dela.) Se é o tempo, dentre outras coisas, que se há de compreender, não há como contar histórias. Não é que vá “acontecer” alguma coisa à Luz. Melhor pensar, digamos, que não é da “natureza” da Luz ser uniforme. Se se pudesse falar de variações na intensidade da luz, na sua concentração (pressupondo “lentes”), como se pode falar de variações de densidade de um gás, teríamos as frequências de onda, seus comprimentos, suas características próprias. Mesmo que a Luz seja branca, ela tem em si o que o prisma revela. Mas sendo essa Luz, no símile, frágil suporte, ou mínima alavanca, para o impulso inicial da investigação, melhor imaginá-la incolor. Justamente porque o pensamento, ou a “mente”, como tal, não têm origem absoluta, mas são eles que engendram o tempo, é que temos que pegá-los em trânsito. Comecemos pela Luz.

Já estamos na consciência. Mas como ver se o nosso mito é bom para compreender isso: o olhar, a intencionalidade, o sujeito, o objeto, o “eu” etc.? Não se trata de “introduzí-los” na estrutura: se ela for um artifício suficientemente poderoso do pensamento metafísico, aquelas coisas deverão “aparecer” como consequência natural da sua movimentação simbólica. Já estão lá, de certo modo. Há que jogar, para ver. (Poderiamos começar por “a luz ilumina”, “a luz se estingue” etc., que pouca diferença faria para o destino da investigação, caso a estrutura tenda para atratores de ciclo ou de ponto, que não dependem das condições iniciais. Mas se a estrutura tender para atratores caóticos ou “estranhos”, nosso movimento inicial determinará todo o jogo. Contudo, tem-se que começar de qualquer maneira, pois não somos oniscientes.). [150]

Uma vidraça totalmente limpa, completamente transparente, nesse oceano infinito de luz não se distinguiria dele. Se houvesse atrás dela alguém para ver, não a veria. (O leitor experimente olhar, ora para o que vê através da janela, ora para a vidraça perfeitamente limpa. Só conseguirá jogar esse jogo se houver na vidraça alguma sujeira.) Pois bem: é essa transparência que persiste, que transparece como marca indelével, no que chamamos de “intencionalidade” da consciência. A consciência — eis um lugar comum —, não aparece. É como uma vidraça perfeitamente transparente, através da qual percebemos a paisagem do mundo, e da qual só parecemos nos dar conta quando se torna opaca. (Como a vidraça da janela, se estiver suja.) Mas isso é uma ilusão: a própria estrutura do mito o revela. Pois ainda que a vidraça esteja suja, só nos damos conta de que ela está suja porque entre ela e nós há uma “outra” vidraça perfeitamente limpa.

Ainda não estou falando de fenômenos, caro amigo desconhecido, mas do que, no jogo, vai-nos levar a compreender, tanto os fenômenos, quanto o que eles não são. Repare que o que acabei de escrever em itálico — “vidraça perfeitamente limpa” — não é uma descrição do sujeito transcendental, ou do “Ego Puro”, ou mesmo “da” consciência intencional. Trata-se, se o leitor quiser rotulá-la, de uma característica transfenomenal da intencionalidade, algo que nela transparece sem se alterar, e que estamos investigando. Sobretudo, veja o leitor que tampouco estou a descrever um “objeto”. Aliás o objeto tampouco será, como veremos, o “outro da consciência”. Nem o “sujeito”, nem o “objeto” são a consciência. Esta só pode ser nossa compreensão da dualidade sujeito-objeto. No máximo, forçando as palavras, poder-se-ia dizer que tanto o sujeito quanto o objeto estariam “na” consciência, pois ela certamente os transcende a ambos, e os compreende. A consciência como transparência, que estou tentando compreender, nada tem a ver com “ponto de vista”. A vidraça perfeitamente transparente não pode por si só “unificar” nada. Tampouco eu diria que estou a descobrir, ou “sintetizar” uma ideia (ou conceito-limite) transcendental. A vidraça não está sendo concebida como “condição de possiblidade”. Não chegamos à transparência que descrevi por um “argumento transcendental”. Sequer investigamos ainda como é possível que, sendo a consciência o que transparece desse modo, possa instalar-se nela toda a parafernália fenomenológica da intencionalidade. [151]

Pois bem: no símile, que é uma estrutura, a transparência absoluta e imutável é o que, no jogo, primeiro ocupa o “lugar” da Luz. Começou a movimentação simbólica do meu “mito”, o jogo de luz que uso como ínfima “alavanca” para investigar a consciência. Começou o jogo simbólico: a investigação deverá adquirir, de agora em diante, uma certa autonomia em relação às nossas idiossincrasias filosóficas.

Não é a consciência que aparece quando sabemos que temos consciência obscura de alguma coisa. Mais precisamente: não é a consciência que se obscurece. Por mais escura, ou bem temos consciência dessa obscuridade, ou não temos. De qualquer modo temos consciência perfeitamente clara disto: que temos consciência obscura de alguma coisa. Ponha-se o leitor — por favor, somente na imaginação! — a desmaiar. Até “perder-se” a consciência — como se ela pudesse ser perdida! —, tem-se consciência — não menos clara — de que se está a “perdê-la”, até que, digamos, ela “desapareça” (na verdade, só pode parecer desaparecer). Somos tentados a pensar: “Obscura é a inconsciência!” Mas logo veremos que temos, aqui, mais uma ilusão, pois o que aparece revelar-se-á, paradoxalmente, a forma mesma da inconsciência, de modo que o Inconsciente está na cara. Compreende-se que o que passou pela “prova do obscurecimento” jamais fora a consciência: ela mantém-se perfeitamente clara durante nossa “perda dos sentidos”, nosso “sair de si” (e isto vale para qualquer espécie de obscurecimento, inclusive anestesia, sono sem sonhos, coma e morte).

A consciência não se altera na sua transparência. Até o último instante, poderíamos pensar, quem estava “ali” sabia, de alguma maneira “imediata”, “intuitiva”, que “sua” consciência estava “apagando”. Pois devemos desconfiar dessas nossas “intuições”! Ponha-se o leitor imaginariamente nesta situação e, se me acompanhou até aqui, compreenderá que era ele que estava “apagando”, não a consciência. A levar a intencionalidade a sério, nem a consciência se perde no que acontece no mundo (obscurecimentos), nem poderia o mundo perder-se na transparência absoluta da consciência. No entanto, quando procuramos a Consciência, encontramos seus objetos; e quando procuramos os objetos, encontramos manifestações da Consciência. A vidraça permanece perfeitamente transparente: são seus “objetos” que se obscurecem ou se clareiam, e o “eu” é um desses objetos. [152]

O leitor compreende, então, se joga comigo, que a noção de “estado de consciência” é prepóstera. Haverá, talvez, “estados cerebrais”, “estados mentais” (aquilo de que temos consciência pode ser apenas a pontinha de um iceberg, sem dúvida), assim como muita gente julga necessário postular “estados de coisas”, para dar conta daquilo a que proposições se referem. Mas não há “estados de consciência”. Os “estados” são os do leitor, ou os meus, não os da consciência. Se continuarmos a fazer o jogo de luz, ou seja, a movimentar a estrutura simbólica, veremos que novos deslocamentos e substituições nos possibilitarão compreender estados mentais ou psicológicos ditos conscientes, tais como o estado de “pensar em x”, o de “crer em x”, o de “desejar x” etc. É lugar comum dizer-se que tais estados são “intencionais”, ou seja, são dirigidos para algo, como se uma seta (sentido) apontasse para um conteúdo, seja alguma “coisa”, seja um “ente abstrato”. Mas há algo errado aqui. Há algo de errado na noção mesma de “intencionalidade” (como veremos, o erro é parte da herança cartesiana). Investiguemos um pouco mais.

Neste ponto do jogo de luz, o que substituiu a Luz foi a transparência absoluta. Isto significa que a transparência absoluta está agora, de acordo com as regras do jogo simbólico, no lugar da Luz, no lugar que a luz ocupava na estrutura da consciência, que é o que estamos investigando. A luz, com que começamos, foi como que “esquecida” (Freud  , aqui, talvez dissesse, “reprimida”) e, no lugar do “esquecimento”, está uma transparência absoluta, imutável etc. Por um lado, sempre segundo as regras do jogo, que não são estabelecidas a priori, mas vão-se destacando do fundo de cada movimento, o que substitui, substitui fenomenologicamente, ou seja, o esquecimento é “total”, “opaco”, pois agora a luz aparece como transparência, ou, se o leitor quiser, a luz transparece, é translucidez. Mas, por outro lado, a regra da substituição que movimentamos é a distinção entre Aparência e Realidade, entendida como uma distinção independente da redução fenomenológica. Meu jogo não tem compromissos com o fechamento hermético do campo reduzido. Isso deve ter ficado claro no Capítulo precedente, quando expliquei o que considero ser o Erro de Husserl  . Sendo assim, toda substituição no nosso jogo gera um contraste que pode, potencialmente, romper o campo fenomenológico, ou seja, pode ser transfenomenal.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes