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Deleuze (NF): para que serve a filosofia?

sexta-feira 10 de novembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

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O conceito de verdade só se determina em função de uma tipologia pluralista. E a tipologia começa por uma topologia. Trata-se de saber a que região pertencem tais erros e tais verdades, qual é o seu tipo, quem os formula e os concebe. Submeter o verdadeiro à prova do baixo, mas também submeter o falso à prova do alto é a tarefa realmente crítica e o único meio de reconhecer-se na “verdade”. Quando alguém pergunta para que serve a filosofia, a resposta deve ser agressiva, visto que a pergunta pretende-se irônica e mordaz. A filosofia não serve nem ao Estado nem à Igreja que têm outras preocupações. Não serve a nenhum poder estabelecido. A filosofia serve para entristecer. Uma filosofia que não entristece a ninguém e não contraria ninguém não é uma filosofia. Ela serve para prejudicar a tolice, faz da tolice algo de vergonhoso [1]. Não tem outra serventia a não ser a seguinte: denunciar a baixeza do pensamento sob todas as suas formas. Existe alguma disciplina, fora da filosofia, que se proponha a criticar todas as mistificações, quaisquer que sejam sua fonte e seu objetivo? Denunciar todas as ficções sem as quais as forças reativas não prevaleceriam. Denunciar, na mistificação, essa mistura de baixeza e tolice que forma tão bem a espantosa cumplicidade das vítimas e dos autores. Fazer enfim do pensamento algo agressivo, ativo, afirmativo. Fazer homens livres, isto é, homens que não confundam os fins da cultura com o projeto do Estado, da moral ou da religião. Vencer o negativo e seus falsos prestígios. Quem tem interesse em tudo isso a não ser a filosofia? A filosofia como crítica nos mostra o mais positivo de si mesma: obra de desmistificação. E que não se apressem em proclamar o fracasso da filosofia a esse respeito. A tolice e a bizarria por maiores que sejam, seriam ainda maiores se não subsistisse um pouco de filosofia que as impedisse, em cada época, de ir tão longe quanto desejariam, que lhes proibisse, mesmo que fosse por ouvir-dizer, de serem tão tola e tão baixa quanto cada uma desejaria por sua conta. Alguns excessos lhes são proibidos, mas quem lhes proíbe a não ser a filosofia? Quem as força a se mascararem, a assumirem ares nobres e inteligentes, ares de pensador? Certamente existe uma mistificação propriamente filosófica; a imagem dogmática do pensamento e a caricatura da crítica são testemunhos disso. Mas a mistificação da filosofia começa a partir do momento em que esta renuncia a seu papel... desmistificador e faz o jogo dos poderes estabelecidos, quando renuncia a contrariar a tolice, a denunciar a baixeza. É verdade, diz Nietzsche  , que os filósofos de hoje tornaram-se cometas [2]. Mas de Lucrécio   aos filósofos do século XVIII, devemos observar esses cometas, segui-los se possível, reencontrar seu caminho fantástico. Os filósofos-cometas souberam fazer do pluralismo uma arte de pensar, uma arte crítica. Souberam dizer aos homens o que a má consciência e o ressentimento deles escondiam. Souberam opor aos valores e aos poderes estabelecidos pelo menos a imagem de um homem livre. Após Lucrécio, como é possível perguntar ainda: para que serve a filosofia?

É possível fazer essa pergunta porque a imagem do filósofo é constantemente obscurecida. Faz-se dele um sábio; ele que é apenas o amigo da sabedoria, amigo num sentido ambíguo, isto é, o anti-sábio, aquele que deve mascarar-se com a sabedoria para sobreviver. Faz-se dele um amigo da verdade, ele que faz o verdadeiro enfrentar a mais dura prova; da qual a verdade sai tão desmembrada quanto Dionísio, a praia do sentido e do valor. A imagem do filósofo é obscurecida por todos os seus disfarces necessários, mas também por todas as traições que fazem dele o filósofo da religião, o filósofo do Estado, o colecionador dos valores em curso, o funcionário da história. A imagem autêntica do filósofo não sobrevive àquele que soube encarná-la por algum tempo, em sua época. É preciso que ela seja retomada, reanimada, que encontre um novo campo de atividade na época seguinte. Se a tarefa crítica da filosofia não é ativamente retomada em cada época, a filosofia morre e com ela a imagem do filósofo e a imagem do homem livre. A tolice e a baixeza são sempre as de nosso tempo, de nossos contemporâneos, nossa tolice e nossa baixeza [3], Diferentemente do conceito intemporal de erro, a baixeza não se separa do tempo, isto é, dessa transposição do presente, dessa atualidade na qual se encarna e se move. Por isso a filosofia tem uma relação essencial com o tempo: sempre contra seu tempo, crítico do mundo atual, o filósofo forma conceitos que não são nem eternos nem históricos, mas intempestivos e sem atualidade. A oposição na qual a filosofia se realiza é a do intempestivo com o atual, do intempestivo com nosso tempo [4]. E no intempestivo há verdades mais duráveis do que as verdades históricas e eternas reunidas: as verdades do tempo por vir. Pensar ativamente é “agir de maneira intempestiva, portanto contra o tempo e por isso mesmo sobre o tempo, em favor (eu o espero) de um tempo por vir” [5]. A corrente dos filósofos não é a corrente eterna dos sábios, ainda menos o encadeamento da história, mas uma corrente quebrada, a sucessão dos cometas: sua descontinuidade e sua repetição não se reduzem nem à eternidade do céu que eles atravessavam nem à historicidade da terra que sobrevoam. Nem há filosofia eterna, nem filosofia histórica. A eternidade, assim como a historicidade da filosofia reduzem-se ao seguinte: a filosofia, sempre intempestiva, intempestiva em cada época.


[1Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 8: “Diógenes objetou, quando louvaram um filósofo diante dele: O que ele tem de grandioso para mostrar, ele que se dedicou tanto tempo à filosofia sem nunca entristecer ninguém? Com efeito, seria preciso colocar como epitáfio sobre o túmulo da filosofia universitária: Ela não entristeceu ninguém.” — GC, 328: os filósofos antigos fizeram um sermão contra a tolice, “não nos perguntemos aqui se esse sermão é melhor fundamentado do que o sermão contra o egoísmo; o que é certo é que ele despojou a tolice de sua boa consciência: esses filósofos prejudicaram a tolice.”

[2NF — Co. In., II, “Schopenhauer educador”, 7: “A natureza envia o filósofo à humanidade como uma flecha; ela não mira, mas espera que a flecha prenda em algum lugar.”

[3AC, 38: “Tal como todos os clarividentes eu sou de grande tolerância para com o passado, isto é, generosamente domino a mim mesmo... Mas meu sentimento se modifica, explode, a partir do momento em que entro no tempo moderno, em nosso tempo.”

[4Co. In., I. “Da utilidade e do inconveniente dos estudos históricos”, Prefácio.

[5Co. In., II. “Schopenhauer educador”, 3-4.