Página inicial > Modernidade > Gilles Louis René Deleuze > Deleuze (LS:1-4) – devir e acontecimento

Deleuze (LS:1-4) – devir e acontecimento

sexta-feira 10 de novembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Salinas Fortes

Alice assim como Do outro lado do espelho tratam de uma categoria de coisas muito especiais: os acontecimentos, os acontecimentos puros. Quando digo “Alice cresce”, quero dizer que ela se toma maior do que era. Mas por isso mesmo ela também se toma menor do que é agora. Sem dúvida, não é ao mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é ao mesmo tempo que ela se torna um e outro. Ela é maior agora e era menor antes. Mas é ao mesmo tempo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos. Tal é a simultaneidade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao presente. Na medida em que se furta ao presente, o devir não suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro. Pertence à essência do devir avançar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo: Alice não cresce sem ficar menor e inversamente. O bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo.

Platão   convidava-nos a distinguir duas dimensões: 1º) a das coisas limitadas e medidas, das qualidades fixas, quer sejam permanentes ou temporárias, mas supondo sempre freadas assim como repousos, estabelecimentos de presentes, designações de sujeitos: tal sujeito tem tal grandeza, tal pequenez em tal momento; 2º) e, ainda, um puro devir sem medida, verdadeiro devir-louco que não se detém nunca, nos dois sentidos ao mesmo tempo, sempre furtando-se ao presente, fazendo coincidir o futuro e o passado, o mais e o menos, o demasiado e o insuficiente na simultaneidade de uma matéria indócil (“mais quente e mais frio vão sempre para a frente e nunca permanecem, enquanto a quantidade definida é ponto de parada e não podería avançar sem deixar de ser; “o mais jovem torna-se mais velho do que o mais velho, e o mais velho, mais jovem do que o mais jovem, mas finalizar este devir é o de que eles não são capazes, pois se o finalizassem não mais viríam a ser, mas seriam.. .”) [1].

Reconhecemos esta dualidade platônica. Não é, em absoluto, a do inteligível e a do sensível, da Ideia e da matéria, das Ideias e dos corpos. É uma dualidade mais profunda, mais secreta, oculta nos próprios corpos sensíveis e materiais: dualidade subterrânea entre o que recebe a ação da Ideia e o que se subtrai a esta ação. Não é a distinção do Modelo e da cópia, mas a das cópias e dos simulacros. O puro devir, o ilimitado, é a matéria do simulacro, na medida em que se furta à ação da Ideia, na medida em que contesta ao mesmo tempo tanto o modelo como a cópia. As coisas medidas acham-se sob as Ideias; mas debaixo das próprias coisas não havería ainda este elemento louco que subsiste, que “sub-vem”, aquém da ordem imposta pelas Ideias e recebida pelas coisas? Ocorre até mesmo a Platão perguntar se este puro devir não estaria numa relação muito particular com a linguagem: tal nos parece um dos sentidos principais do Crátilo  . Não seria talvez esta relação essencial à linguagem, como em um “fluxo” de palavras, um discurso enlouquecido que não cessaria de deslizar sobre aquilo a que remete sem jamais se deter? Ou então, não havería duas linguagens e duas espécies de “nomes”, uns designando as paradas e repousos que recolhem a ação da Ideia e os outros exprimindo os movimentos ou os devires rebeldes? [2] Ou ainda, não seriam duas dimensões distintas interiores à linguagem em geral, uma sempre recoberta pela outra, mas continuando a “sub-vir” e a substituir sob a outra?

O paradoxo deste puro devir, com a sua capacidade de furtar-se ao presente, é a identidade infinita: identidade infinita dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do mais e do menos, do demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito. É a linguagem que fixa os limites (por exemplo, o momento em que começa o demasiado), mas é ela também que ultrapassa os limites e os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado (“não segure um tição vermelho durante demasiado tempo, ele o queimaria; não se corte demasiado profundamente, isso faria você sangrar”). Daí as inversões que constituem as aventuras de Alice. Inversão do crescer e do diminuir: “em que sentido, em que sentido?” pergunta Alice, pressentindo que é sempre nos dois sentidos ao mesmo tempo, de tal forma que desta vez ela permanece igual, graças a um efeito de óptica. Inversão da véspera e do amanhã, o presente sendo sempre esquivado: “geleia na véspera e no dia seguinte, nunca hoje”. Inversão do mais e do menos: cinco noites são cinco vezes mais quentes do que uma só, “mas deveríam ser também cinco vezes mais frias pela mesma razão”. Do ativo e do passivo: “será que os gatos comem os morcegos?” é o mesmo que “será que os morcegos comem os gatos?”. Da causa e do efeito: ser punido antes de ter cometido a falta, gritar antes de se machucar, servir antes de repartir.

Todas estas inversões, tais como aparecem na identidade infinita têm uma mesma consequência: a contestação da identidade pessoal de Alice, a perda do nome próprio. A perda do nome próprio é a aventura que se repete através de todas as aventuras de Alice. Pois o nome próprio ou singular é garantido pela permanência de um saber. Este saber é encarnado em nomes gerais que designam paradas e repousos, substantivos e adjetivos, com os quais o próprio conserva uma relação constante. Assim, o eu pessoal tem necessidade de Deus e do mundo em geral. Mas quando os substantivos e adjetivos começam a fundir, quando os nomes de parada e repouso são arrastados pelos verbos de puro devir e deslizam na linguagem dos acontecimentos, toda identidade se perde para o eu, o mundo e Deus. É a provação do saber e da declamação, em que as palavras vêm enviesadas, empurradas de viés pelos verbos, o que destitui Alice de sua identidade. Como se os acontecimentos desfrutassem de uma irrealidade que se comunica ao saber e às pessoas através da linguagem. Pois a incerteza pessoal não é uma dúvida exterior ao que se passa, mas uma estrutura objetiva do próprio acontecimento, na medida em que sempre vai nos dois sentidos ao mesmo tempo e que esquarteja o sujeito segundo esta dupla direção. O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas.

Original

Dans Alice comme dans De l’autre côté du miroir, il s’agit d’une catégorie de choses très spéciales : les événements, les événements purs. Quand je dis « Alice grandit », je veux dire qu’elle devient plus grande qu’elle n’était. Mais par là-même aussi, elle devient plus petite qu’elle n’est maintenant. Bien sûr, ce n’est pas en même temps qu’elle est plus grande et plus petite. Mais c’est en même temps qu’elle le devient. Elle est plus grande maintenant, elle était plus petite auparavant. Mais c’est en même temps, du même coup, qu’on devient plus grand qu’on n’était, et qu’on se fait plus petit qu’on ne devient. Telle est la simultanéité d’un devenir dont le propre est d’esquiver le présent. En tant qu’il esquive le présent, le devenir ne supporte pas la séparation ni la distinction de l’avant et de l’après, du passé et du futur. Il appartient à l’essence du devenir d’aller, de tirer dans les deux sens à la fois : Alice ne grandit pas sans rapetisser, et inversement. Le bon sens est l’affirmation que, en toutes choses, il y a un sens déterminable ; mais le paradoxe est l’affirmation des deux sens à la fois.

Platon nous conviait à distinguer deux dimensions : 1º) celle des choses limitées et mesurées, des qualités fixes, qu’elles soient permanentes ou temporaires, mais toujours supposant des arrêts comme des repos, des établissements de présents, des assignations de sujets : tel sujet a telle grandeur, telle petitesse à tel moment ; 2º) et puis, un pur devenir sans mesure, véritable devenir-fou qui ne s’arrête jamais, dans les deux sens à la fois, toujours esquivant le présent, faisant coïncider le futur et le passé, le plus et le moins, le trop et le pas-assez dans la simultanéité d’une mati  ère indocile (« plus chaud et plus froid vont toujours de l’avant et jamais ne demeurent, tandis que la quantité définie est arrêt, et n’avancerait pas sans cesser d’être » ; « le plus jeune devient plus vieux que le plus vieux, et le plus vieux, plus jeune que le plus jeune, mais achever ce devenir, c’est ce dont ils ne sont pas capables, car s’ils l’achevaient, ils ne deviendraient plus, ils seraient... »).

Nous reconnaissons cette dualité platonicienne. Ce n’est pas du tout celle de l’intelligible et du sensible, de l’Idée et de la matière, des Idées et des corps. C’est une dualité plus profonde, plus secrète, enfouie dans les corps sensibles et matériels eux-mêmes : dualité souterraine entre ce qui reçoit l’action de l’Idée et ce qui se dérobe à cette action. Ce n’est pas la distinction du Modèle et de la copie, mais celle des copies et des simulacres. Le pur devenir, l’illimité, est la matière du simulacre en tant qu’il esquive l’action de l’Idée, en tant qu’il conteste à la fois et le modèle et la copie. Les choses mesurées sont sous les Idées ; mais sous les choses mêmes n’y a-t-il pas encore cet élément fou qui subsiste, qui subvient, en deçà de l’ordre imposé par les Idées et reçu par les choses ? Il arrive même à Platon de se demander si ce pur devenir ne serait pas dans un rapport très particulier avec le langage : tel nous parait un des sens principaux du Cratyle. Peut-être ce rapport serait-il essentiel au langage, comme dans un « flux » de paroles, un discours affolé qui ne cesserait de glisser sur ce à quoi il renvoie, sans jamais s’arrêter ? Ou bien n’y aurait-il pas deux langages et deux sortes de « noms », les uns désignant les arrêts et des repos qui recueillent l’action de l’Idée, mais les autres exprimant les mouvements ou les devenirs rebelles2 ? Ou bien encore ne serait-ce pas deux dimensions distinctes intérieures au langage en général, l’une toujours recouverte par l’autre, mais continuant à « subvenir » et à subsister sous l’autre ?

Le paradoxe de ce pur devenir, avec sa capacité d’esquiver le présent, c’est l’identité infinie : identité infinie des deux sens à la fois, du futur et du passé, de la veille et du lendemain, du plus et du moins, du trop et du pas-assez, de l’actif et du passif, de la cause et de l’effet. C’est le langage qui fixe les limites (par exemple, le moment où commence le trop), mais c’est lui aussi qui outrepasse les limites et les restitue à l’équivalence infinie d’un devenir illimité (« ne tenez pas un tisonnier rouge trop longtemps, il vous brûlerait, ne vous coupez pas trop profondément, cela vous ferait saigner »). D’où les renversements qui constituent les aventures d’Alice. Renversement du grandir et du rapetisser : « dans quel sens, dans quel sens ? » demande Alice, pressentant que c’est toujours dans les deux sens à la fois, si bien que pour une fois elle reste égale, par un effet d’optique. Renversement de la veille et du lendemain, le présent étant toujours esquivé : « confiture la veille et le lendemain, mais jamais aujourd’hui. » Renversement du plus et du moins : cinq nuits sont cinq fois plus chaudes qu’une seule, « mais elles devraient être aussi cinq fois plus froides pour la même raison ». De l’actif et du passif : « est-ce que les chats mangent les chauves-souris ? » vaut « est-ce que les chauves-souris mangent les chats ? » De la cause et de l’effet : être puni avant d’être fautif, crier avant de se piquer, servir avant de partager.

Tous ces renversements tels qu’ils apparaissent dans l’identité infinie ont une même conséquence : la contestation de l’identité personnelle d’Alice, la perte du nom propre. La perte du nom propre est l’aventure qui se répète à travers toutes les aventures d’Alice. Car le nom propre ou singulier est garanti par la permanence d’un savoir. Ce savoir est incarné dans des noms généraux qui désignent des arrêts et des repos, substantifs et adjectifs, avec lesquels le propre garde un rapport constant. Ainsi le moi personnel a besoin du Dieu et du monde en général. Mais quand les substantifs et adjectifs se mettent à fondre, quand les noms d’arrêt et de repos sont entraînés par les verbes de pur devenir et glissent dans le langage des événements, toute identité se perd pour le moi, le monde et Dieu. C’est l’épreuve du savoir et de la récitation, où les mots viennent de travers, entraînés de biais par les verbes, et qui destitue Alice de son identité. Comme si les événements jouissaient d’une irréalité qui se communique au savoir et aux personnes, à travers le langage. Car l’incertitude personnelle n’est pas un doute extérieur à ce qui se passe, mais une structure objective de l’événement lui-même, en tant qu’il va toujours en deux sens à la fois, et qu’il écartèle le sujet suivant cette double direction. Le paradoxe est d’abord ce qui détruit le bon sens comme sens unique, mais ensuite ce qui détruit le sens commun comme assignation d’identités fixes.


[1Platão. Filebo, 24 d; Parmenides, 154-155.

[2Platão. Crátilo. 437 e ss. Sobre tudo o que precede, cf. Apêndice 1.