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De Libera: sujeito - gramática e lógica

terça-feira 9 de junho de 2020, por Cardoso de Castro

  

Segundo J.-L. Marion, a crítica nietzschiana confirma sua própria interpretação do cogito, sum como simples “enunciado protocolar” (isto é, “não afirmando nenhuma tese nem enunciando nenhum princípio”); confirma também que, com Descartes  , o ego “ascende ao estatuto metafísico de um princípio, na exata medida em que o enunciado protocolar cogito, sum é interpretado como identificação do pensamento com o ser, ou como dedução pelo pensamento da substância ou recondução da substância ao pensamento”. Para Marion, “Substância não se refere aqui ao clássico debate sobre a ‘subs-tantificação’ do sujeito por Descartes; nessa polêmica, substância tem a ver com uma interpretação trivial da οὐσία como ὑποκείμενον, substratum, supósito, portanto, em última análise, matéria; ao contrário, substância é entendida aqui como no sentido de Wesen, Seiendheit, entidade do ente. Coloca-se então a pergunta: como, a partir do pensamento em ação sob a figura do ego no cogito, sum, pode-se formular uma doutrina da substância? Em outras palavras: como o ego pode constituir uma ontologia?”. Deixando provisoriamente de lado o debate sobre a “substantificação do sujeito” em Descartes, e o impacto da distinção entre os dois sentidos de οὐσία sobre a delimitação da questão cartesiana autêntica, apoiada na (pela) exegese nietzschiana do “enunciado protocolar”, nos preocuparemos mais aqui com aquilo que sugere a diferença ou o jogo das traduções do § 17 de Jenseits Gut und Böse: Como se passa de “alguém” para “sujeito”? De “sujeito” para “agência”? Como explicar a equação formulada pelo gesto tradutor: Einer = sujeito = agency (= eu)?

Esse é o problema para o arqueólogo. Ele nos conduz ao nosso ponto de partida: “Como o sujeito pensante ou, se preferirem, o homem enquanto sujeito e agente do pensamento entrou na filosofia? E por quê?” Ou seja, nos termos derivados de Nietzsche  : como e por que o sujeito se tornou, sob o nome de “eu”, sujeito de agência? Ou o “eu”, sob o nome de “sujeito”, gerente de agency? Tal síntese não era desejável, nem mesmo concebível, de um ponto de vista aristotélico. A se acreditar em uma crítica recente de Descombes  , ela não teria (não tem) mais razão de ser hoje. Segundo F. Neuf, um dos primeiros a ter trabalhado como filósofo sobre as gramáticas actan-ciais e as gramáticas narrativas, a categoria de sujeito não podería de fato “ser pensada a partir da agência, seja nas gramáticas casuais ou nas gramáticas descritivas” [1]. “Subjetivação e agência não se equivalem”, por duas razões pelo menos: “não se pode [...] definir o sujeito a partir da agência”; o sujeito não pode ser identificado, sem mais, com o agente, pois “ele pode ser uma parte do agente (ou do paciente?)” (como é o caso em frases como: “sua timidez assusta o menino” ou “minha raiva me humilha”). A própria distinção descombiana entre “frase narrativa” (ou “proposição narrativa”) e “proposição atributiva” não é pertinente [2]. O que é de fato uma frase narrativa? Alguns diriam: uma proposição atribuindo a ação. Mas a quem? A um sujeito? A um agente? F. Nef   responde: “não há [...] frases narrativas e frases atributivas”, como não há tampouco “triângulos euclidianos e triângulos não euclidianos”: há “duas gramáticas, narrativa e não narrativa, assim como há geometrias euclidianas e não euclidianas”. Como determinar “se uma frase atribui uma qualidade (ou o que quer que seja) ou relata uma ação”? “Não há, de um lado, sujeito de atribuição, no sentido aristotélico, e, de outro, sujeito de um relato, no sentido das gramáticas de Propp-Greimas”. V. Descombes projeta erroneamente a gramática narrativa na gramática de atribuição. A “tese central” que ele toma emprestada de Tesnière — “o sujeito é um complemento como os outros” - “não é verdadeiramente justificada”: “[...] ela é solidária a toda uma série de pressupostos [...]: negação da existência de uma forma lógica, redução do vago a um fenômeno sintático (a elipse), natureza dupla da conexão predicativa, redução da maior parte dos problemas ontológicos a problemas gramaticais”.

Para Nef, “todos esses pressupostos decorrem do sufoca-mento do lógico e do metafísico sob o gramatical”. E insiste:

Para descartar a ontologia dos acontecimentos em proveito de uma ontologia da substância entendida como supósito da predicação, Descombes elimina a dimensão semântica em proveito apenas da sintaxe. Mas é a forma lógica que dá a sintaxe lógica, a sintaxe universal, que não se confunde com o conceito de gramática relativa a uma língua particular e que é apenas uma forma de sintaxe particular e superficial, como mostram Russell   e Carnap.

Gramática ou lógica? Chega-se aqui a uma encruzilhada. Segundo Nef, “não há categoria gramatical da ação”; há, ao contrário, uma “forma lógica de frases de ação” que contém “uma quantificação sobre os acontecimentos e um operador de ação, análogo a um operador modal”. O ponto de vista correto sobre a ação deve, portanto, “combinar a quantificação sobre os acontecimentos e a estrutura modal da ação”.


[1Cf. F. Nef, “Logique de la grammaire et grammaire du sujet. Le Complément de sujet de Vincent Descombes”, s.p. Agradeço a F. Nef por me ter passado esse importante trabalho antes da publicação. Numerosas questões abordadas aqui são tratadas de um outro ângulo em F. Nef, Qu’est-ce que la métaphysique?

[2Cf. V. Descombes, Le Complément de sujet..., p. 67.