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Bernard Williams (M:138-144) – utilitarismo

sexta-feira 21 de agosto de 2020, por Cardoso de Castro

  

Uma dificuldade que encontramos ao discutir esse assunto é a falta de um consenso sobre o quão amplo e sensato é o uso do termo "utilitarismo". A expressão foi por vezes usada para designar perspectivas morais que não tinham nenhuma relação especial com a felicidade ou com o prazer; nesse sentido, ela foi usada para se referir a qualquer perspectiva que afirmasse que uma ação será certa ou errada dependendo das suas consequências, das suas tendências para acontecimentos ou estados intrinsecamente bons ou maus. Essa acepção demasiado ampla – que provavelmente seria mais bem representada pela palavra "consequencialismo" do que por "utilitarismo" – não é a que será estudada aqui; estamos somente interessados em concepções que tomam a felicidade como a única [139] coisa intrinsecamente boa, para a qual as ações e as organizações sociais estão voltadas. Mas, mesmo assim, ainda sobra muito espaço para diferentes tipos de utilitarismos.

Discutir no vazio o que poderia ou não ser considerado uma forma reconhecível de utilitarismo seria tão-somente um exercício verbal despropositado. A questão só pode ser abordada pela seguinte indagação: qual é a finalidade da perspectiva utilitarista da moralidade. E para respondê-la não será suficiente nem fundamental consultar as opiniões de Bentham   e J. S. Mill e outros expoentes clássicos do sistema; mas sim considerar os atrativos que a perspectiva utilitarista exerce sobre o pensamento moral. Creio que são quatro os atrativos principais, e isso não quer dizer que eles não sejam relacionados uns com os outros – possibilidade que mereceria investigação. O primeiro é o seguinte: ele é um sistema não transcendental que não faz nenhum apelo a nada exterior à vida humana, nem tampouco a nenhuma consideração de caráter religioso. Assim, o utilitarismo parece atender, em especial, à exigência inteiramente justificada de [140] que a moralidade doravante se dissocie completamente do Cristianismo. Ele parece atender até mesmo – por causa de certo conservadorismo sobre o qual falarei mais tarde – a uma exigência bem menos razoável, de que a moralidade assim dissociada do Cristianismo seja praticamente idêntica àquela anterior, derivada do Cristianismo; exigência esta que foi com razão classificada como descabida por Nietzsche  . Em mãos mais radicais, entretanto, o utilitarismo anuncia mudanças mais radicais.

Em segundo lugar, o seu bem fundamental, a felicidade, parece minimamente problemático: embora as pessoas discordem entre si, todas elas seguramente querem a felicidade; e alcançar toda a felicidade possível certamente será um objetivo de vida razoável, quaisquer que sejam os meios escolhidos. Há no entanto um problema evidente de transição neste ponto: da busca da felicidade própria (como objetivo supostamente inquestionável) para a busca da felicidade alheia (objetivo mais questionável); e o desventurado Mill foi repetidamente criticado (conta-se) por tentar fazer essa transição por [141] meio de argumentos dedutivos. Tenho minhas dúvidas sobre se era mesmo isso o que ele estava tentando fazer, mas em todo caso o problema pouco interfere na questão do utilitarismo – não há razão para esperar que esse sistema, tanto quanto qualquer outro, possua uma fórmula mágica para persuadir o amoralista a abandonar o amoralismo. A questão, na verdade, é a de o utilitarismo ser uma moralidade que envolve um comprometimento mínimo, nesse aspecto como em outros: dadas as exigências mínimas para que se adentre o mundo moral – ou seja, uma disposição a se considerarem as necessidades alheias tanto quanto as próprias –, o utilitarismo pode seguir adiante. Uma pergunta muito mais interessante é se a felicidade como objetivo "inquestionável" pode realmente servir aos propósitos do utilitarismo. Já vimos algumas razões, no capítulo anterior, para levantar dúvidas sobre a necessidade de a felicidade ser vista como o objetivo da vida humana. Mas, mesmo desconsiderando essas questões, não se pode afirmar inequivocamente que ela pode ser tomada como foco do utilitarismo – qualquer que seja o sentido [142] em que seja entendida como a (relativamente) inquestionável finalidade da vida humana. Trata-se de um assunto central: estaremos numa posição melhor para discuti-lo quando tivermos visto o terceiro e o quarto atrativos do utilitarismo.

O seu terceiro atrativo é que os assuntos morais podem, em princípio, ser determinados por cálculos empíricos das consequências. O pensamento moral se torna então empírico e, em casos de políticas públicas, uma questão de ciência social. Esta sempre foi considerada por muitos uma das mais agradáveis facetas do utilitarismo. Não que os cálculos sejam considerados fáceis, ou mesmo viáveis em certos casos; o encanto reside justamente no fato de a natureza da dificuldade ser ao menos pouco misteriosa. Toda a obscuridade moral se torna uma questão de limitações técnicas.

Em quarto lugar, o utilitarismo fornece uma moeda corrente para o pensamento moral: as diferentes preocupações de diferentes grupos, e as diferentes reivindicações que agem sobre um grupo, podem (em princípio) ser valoradas em [143] função da felicidade. Esse arranjo tem a importante consequência de anular certos conflitos bem conhecidos de outras perspectivas morais – como o que existe quando há duas afirmações ao mesmo tempo válidas e inconciliáveis. Em alguns outros sistemas, um homem pode vir a se encontrar em uma situação na qual (segundo lhe parece) qualquer decisão tomada estará errada. Para o utilitarismo, essa situação é impossível. As várias propensões que estiverem dentro dele poderão ser avaliadas pela medida comum do Princípio da Máxima Felicidade, e não pode existir aí uma ideia coerente de uma coisa certa ou errada a fazer, mas sim daquilo que é ou deixa de ser a melhor coisa afazer no conjunto: e se duas possibilidades se mostram equivalentes, então realmente não importará qual delas seja a escolhida. Em relação a isso é possível levantar a seguinte objeção: em certas circunstâncias, optar pelo melhor curso de ação pode envolver fazer algo de errado. Creio que essa é uma ideia em relação à qual o utilitarismo sempre será incoerente, em última análise. Eis uma das razões para dizer que a tragédia é impossível [144] para o utilitarismo (ο que certamente é verdade); mas há consequências ainda maiores, se não mais profundas, do que essa.


Ver online : Morality: An Introduction to Ethics