Já no prefácio do Tratado teológico-político declara Spinoza abertamente o que pretende fazer, e compreendemos que ele tenha sido inquietado. “…Adquiri plena convicção de que a Escritura deixa a razão inteiramente livre e nada tem de comum com a filosofia, mas ambas se mantêm por uma força peculiar a cada uma.” Ataca a seguir com bastante violência, se bem que em termos velados, a superstição da letra: “Mostro que a palavra revelada de Deus não consiste num certo número de livros mas numa ideia simples do pensamento divino, tal como foi dada conhecer aos Profetas por revelação, a saber: que é preciso obedecer a Deus de toda a alma, praticando a justiça e a caridade.” No que toca propriamente à política, afirma, em face dos direitos do estado, um direito do homem que a ninguém, nem sequer a esse próprio homem é dado alienar: “Como, entretanto, ninguém se pode privar do direito de defender-se, a tal ponto que deixe de ser um homem, concluo que não é lícito privar ninguém do seu direito natural e què os súditos conservam, como por um direito da natureza, certas franquias que não lhes podem ser arrebatadas sem grande perigo para o Estado…”
Importava isto, por um lado, em formular o problema da razão e da fé e resolvê-lo garantindo a fé sem prejudicar a razão; e, por outro lado, em traçar com grande coragem os limites dos poderes terrestres. Era, sobretudo, afirmar a mais completa independência e liberdade do espírito. Nenhuma autoridade senão a dos textos, não mais interpretados num sentido literal mas recebidos de acordo com a sua inspiração divina ou o seu valor geral e primitivo e de acordo com a judicatura da razão; nenhuma decisão a não ser a de um pensamento que não requer nenhum poder estranho e que age sem ser constrangido no seu exercício. Tal era a contribuição do Tratado teológico-político. Afirmava-se nele, com sadio otimismo, que o doutor da lei deve saber ceder ao filósofo e que o direito do príncipe deve deter-se em face do direito do cidadão. Spinoza achava ou fingia achar tudo isso muito natural, fácil e apto a receber o assentimento de todos. Mas não eram do mesmo parecer os guardiões demasiado interessados da Lei religiosa ou civil, e o demonstraram de sobejo.
Era ainda a mesma posição de Descartes, embora devesse desenvolver-se em outro plano e por outros meios. Spinoza partiu com efeito de Descartes e foi seu expositor ou comentador. Contradisse-o também; censurou-lhe a localização da alma e não podia aceitar a teoria das duas substâncias, visto que ele mesmo só reconhecia uma. Mas prende-se a ele quanto ao fundo e aos princípios. Vê também a verdade na evidência e num pensamento livre de toda sujeição ou de toda ilusão vinda de fora ou de dentro, tanto da autoridade legal, social ou escriturária como das falaciosas imagens engendradas pelas paixões e pelos sentidos. “O que Spinoza aproveitou resolutamente do cartesianismo”, disse Delbos — e seria impossível dizê-lo melhor — “foi a concepção de uma verdade objetiva pura, desenvolvida pelo entendimento e excluindo radicalmente todos os elementos de subjetividade introduzidos pelos sentidos ou pela imaginação; foi o direito de impor-se a tudo mais, que incumbe à ideia clara e distinta na medida em que é uma apropriação dessa verdade, o direito de reduzir as pretensões do sentimento e da vontade a valerem por si e de reprimir todas as representações que não façam assistir a inteligência ao encadeamento das coisas.”
É possível que Spinoza tenha sido levado a procurar Deus pelo desejo de Deus; que haja em sua ideia de Deus o sentimento de Deus e que a mística não esteja banida da sua especulação ou que pelo menos não seja impedida por ela. Mas o fato é que temos aqui um cérebro de metafísico puro. É-lhe necessária uma ordem rigorosa e universal das coisas, uma mecânica intelectual perfeita, essencialmente diversa da mecânica material e que encadeie ou desencadeie as ideias como os retentores e as molas travam ou desencadeiam os mecanismos, e uma dedução geométrica tanto para o mundo das figuras como para o mundo espiritual e moral, tanto para o sensível como para o inteligível. Em vista disso e em face de tais exigências, somente um sistema era possível para ele: o seu próprio. [Truc]