Toda filosofia, pelo mero fato de ser filosofia, e ainda pelo simples motivo de ser de algum modo pensamento, tem que assumir certo perfil sistemático. O pensamento humano surge naquele instante em que o homem se pergunta pelo que são, em última instância, as coisas que o rodeiam e os homens com os quais convive, e neste em última instância se encontra, como afirmou José Ferrater Mora, um dos segredos mais recônditos de nossa vida e talvez o segredo último e decisivo do homem ocidental. Se um tal perguntar se faz, pois sempre “em última instância”, nada terá de estranho que a resposta seja, em boa parte, “sistemática”: somente a articulação dos pensamentos, correspondentes à articulação das coisas, constituirá uma adequada resposta a tal pergunta. Para que o pensamento não fosse, no aspecto mencionado, sistemático, requerer-se-ia que a pergunta acerca do que são em última instância as coisas ou os homens fosse eliminada ou, pelo menos, suspensa: então surgiria uma forma de pensar que não trataria das essências, já que se limitaria a traçar os perfis das exigências, nem sequer se preocupando em averiguar quais são aquelas existências que resultam, por assim dizer, essenciais. Neste sentido pode dizer-se que todo pensamento e toda filosofia são, por sua própria natureza, sistemáticos, pois somente no sistema dos pensamentos e na articulação das coisas se poderá achar a verdade última delas.
Assim, a pergunta sobre o conteúdo de um sistema filosófico terá como resposta o reconhecimento de que um sistema filosófico se distingue por sua intenção universal. Ou seja, não se refere a um objeto determinado nem a uma particular legião de objetos, mas ao conjunto dos objetos do conhecimento. O olhar do filósofo visa a totalidade das coisas, procura compreender toda a realidade. Precisamente por isso se diferenciam os sistemas filosóficos dos sistemas de conhecimento que constituem as ciência especiais. Nesse sentido, observa Simmel: “O filósofo não necessita sempre referir-se à totalidade, e talvez não possa fazê-lo em sentido estrito; mas qualquer que seja a questão especial de lógica ou de ética ou de estética ou de religião que toque, somente o fará como filósofo se vive interiormente essa relação com a totalidade do que existe”. A mesma ideia exprimiu Nietzsche em sua linguagem poética: “O filósofo procura que repercuta dentro de si mesmo o som universal, e reproduzi-lo por meio de conceitos”.
Por outro lado, como é possível discutir o problema moral sem antes discutir seus fundamentos, que transbordam o objeto ético? Com efeito, não é possível dizer como o homem deve viver, sem considerar o que o homem é, o que é o mundo em que ele vive, sem considerar as relações do homem com o que ele aceita como absoluto, sem ter resolvido, de algum modo, o problema da certeza. Assim, o problema da moral resume em si, necessariamente, o problema da antropologia, da cosmologia, da metafísica, de gnosiologia etc. O mesmo se pode dizer da estética, que nasceu em Platão como um capítulo da política, pela determinação do lugar que a arte deve ter no Estado. Mas, em geral, não se pode entender o interesse principal da estética, isto é, a definição da atividade artística em relação com as outras atividades do espírito, sem uma teoria do espírito. Toda estética, que seja digna de tal nome, é um sistema filosófico; e se não chega à plena sistematização, pode ser um acervo de observações empíricas, mais ou menos sensatas e fundamentadas, e nada mais. Em suma, não há filosofia sem espírito da totalidade, cujo problema fundamental é o da relação entre a existência e o pensamento, já que a consciência é um reflexo do ser e não o contrário.
Claro está que a construção de grandes sistemas de pensamento, completos e fechados em sisi mesmo, se chegou a ser moda no idealismo alemão, atualmente é apenas um exemplo de ilusão e fracasso, pois seus forjadores, em geral, eram desde o início determinados por convicção prévias. Daí o cerrado ataque que sofreram por parte de Nicolai Hartmann que, porém, mobilizou sua argumentação não contra o pensamento sistemático, mas contra o que se pode chamar o construtivismo, contra o sistema como ponto de partida, como desenho originário de acordo com o qual se vão resolvendo todas as questões parciais.
Com efeito, distingue Hartmann, cuidadosamente, entre ‘pensamento sistemático’ e ‘sistema’. O pensamento filosófico há de ser sempre sistemático, mas isso não supõe a exigência de construir grandes sistemas. Desta palavra ‘construir’ emerge a distinção. Porque o que dá origem ao sistema em sua forma clássica não é a sistematicidade no pensamento ou na investigação, mas o momento da construtividade, a vontade de criação arquitetural, que é diversa da mera vontade de indagação e com frequência a contradiz. Se o tempo dos grandes sistemas já passou nem por isso está superado o pensamento sistemático, seguindo porém outro caminho: o caminho dos problemas. É evidente que o pensamento atual também aspira a elevar-se a visões de conjunto; mas não aceita desde logo um plano sistemático como guia e orientação do trabalho para essa concepção. Sabe que é possível chegar a uma concepção sistemática e totalizadora, mas que não se chega a ela sem mais nem menos; que o exame imediato das questões não basta para, a partir delas, remontar-se a concepções de conjunto pelo mero jogo da atividade criadora do espírito; que unicamente nos poderá aproximar a este fim um esforço longo e trabalhoso de investigação, de aprofundamento desconfiado, de tentativas, de retificações,
Hartmann, portanto, afirma que, na história do pensamento filosófico, existem duas atitudes que se podem denominar ‘atitude construtiva’ e ‘atitude indagadora’ ou ‘atitude problemática’. A primeira é a que produziu os grandes sistemas clássicos, dos quais os próximos a nós são os do idealismo alemão. A segunda concentra o trabalho filosófico em cada problema sem antecipar os resultados, e é a que prepondera atualmente. A renúncia ao sistema, no pensamento atual, deve ser entendida como renúncia ao sistema enquanto a estrutura sistemática supõe uma concepção capital que contém a resposta à última interrogação; enquanto hierarquia de soluções ordenadas consoante um princípio fundamental do qual derivam; em suma, enquanto construtivismo. [LWVita]