Filosofia – Pensadores e Obras

saber teórico

Essa concepção do saber, que num certo sentido é imantada por uma visão prática, pois ordena-se a um estado que deve ser alcançado no término de um processo, conduz facilmente à do saber contemplativo. Aqui, o tema inspirador não é mais o da sabedoria, mas o da teoria. Encontramo-nos sempre na ordem do saber, mais exatamente, de um saber da totalidade, mas a ênfase é deslocada: o que é evidenciado não é mais este estado bem-aventurado que deve proporcionar uma visão justa, mas a própria visão, considerada, de certa forma, como um valor em si, como desvinculada de toda perspectiva prática, não somente no plano instrumental, no plano dos interesses imediatos, mas até mesmo no plano desse agir sobre si, dessa transformação interior que deve conduzir à beatitude. Subsiste uma oposição entre uma vida inautêntica, encerrada no erro, vale dizer, na imediatez das visões parciais, e uma vida autêntica, que se conforma com a verdade. Ora, a verdade é a integralidade da manifestação; é, ao mesmo tempo, a revelação do mundo, segundo sua máxima envergadura, e o movimento acabado de sua vinda em sua auto-mostração, tal como ele se revela desde suas origens até as mais tênues terminações de sua eflorescência. A visão verdadeira segue, por assim dizer, o universo nessa manifestação, refaz com ele o caminho de seu crescimento e de sua eclosão, acompanha desde o começo até suas últimas ramificações o movimento do aparecer. Por isso, ela se eleva acima de toda forma de apreensão, quer seja da ordem da sensibilidade, da imaginação ou do pensamento, que permaneceria apenas na superfície mais visível das coisas, só podendo apreender, por isso mesmo, fragmentos relativamente isolados da realidade.

O acordo com a verdade, vale dizer, com a amplitude mesma da gênese universal, é uma forma de vida que pertence verdadeiramente à ordem da soberania. Porque, ao elevar-se a uma contemplação adequada daquilo que mantém coesas todas as formas particulares na unidade de um imenso jorrar, indo ao encontro da força mesma do originário, o ser humano pensante ultrapassa sua própria particularidade, as determinações pelas quais está submetido às leis da matéria, da vida e da história, para coincidir com aquilo que se encontra na raiz de todas as leis e, por conseguinte, para além de toda lei, de toda determinação e de todo condicionamento. O originário é, necessariamente, o incondicionado, o que só remete a si, ao abismo inexaustivo de sua energia manifestadora: só pode ser celebração de si mesmo, irradiação de si numa glória incomparável e sem declínio. A teoria não é um vão olhar sobre um mundo que seria inteiramente em superfícies, que não seria outra coisa senão um cintilar que se revela, nem tampouco um exercício insignificante que deixaria todas as coisas como estão, só fazendo acrescentar à infelicidade da vida o inútil desdobramento de um reflexo estéril. A teoria é o esforço sublime do «logos» no homem para elevar uma vida contnigente, aparentemente entregue às fatalidades e votada ao aniquilamento, à condição sublime de uma vida soberana que é o acordo sem falha com aquilo que se encontra no coração mesmo da manifestação. A ideia de um acordo com o verdadeiro, ou da verdade com o acordo, longe de ser uma espécie de abdicação diante de um poder exterior, faz apenas exprimir, ao contrário, uma exigência que, provávelmente, é constitutiva do ser humano e que constitui como que o traço, nele, da vida do originário. Sob a forma do «logos», essa vida tende a realizar-se numa palavra que diria toda a sua força e, ao mesmo tempo, concluiria o movimento da manifestação. A teoria é ao mesmo tempo o espaço onde são recolhidas as forças constituintes e a forma mais espetacular na qual se atesta sua virtude. É, ao mesmo tempo o reflexo e a realização do movimento universal da verdade, isto é, da vinda a si da realidade total na epifania de seu incessante advento.

A ideia de teoria, ela mesma derivada da de sabedoria, conduz a uma concepção hermenêutica do saber. A teoria é uma espécie de repetição da realidade que se revela. Ela reefetua, no espaço da palavra, as etapas constitutivas da manifestação. Desta forma, torna-se a si mesma manifestação, não somente no sentido em que, ao produzir-se, se dá a contemplar em seu acabamento, mas também, e mais radicalmente, no sentido em que se torna o momento supremo da manifestação, a instância na qual o aparecimento da realidade é recolhido na força da palavra. Esta é ao mesmo tempo um componente do aparecimento e o lugar no qual ele pode produzir-se, ao mesmo tempo momento terminal e condição originária. É por isso que a palavra não é apenas um simples relatório descritivo, mas o prolongamento daquilo que se mostra, a revelação das virtualidades ainda envoltas naquilo que constituía apenas o aparecer; e ao encontrar a fonte no aparecer que torna visível sua eficácia, ela é capaz de exprimir toda a sua força e de acrescentar, assim, ao visível, esta espécie de irradiação sem limites que consagra sua infinitude. Se pode, é porque o conceito, que não somente é uma imagem, um desdobramento da aparência, mas a forma dinâmica capaz de apreender e de fazer ver, na aparência, o movimento que a transporta e, portanto, tudo o que ela anuncia, a verdade para cujo advento contribui. A teoria, sob sua forma acabada, é sistema, vale dizer, configuração conceitual acabada, de que todos os elementos são interdependentes; e mostra, por sua estrutura mesma, sua coerência interna e seu caráter de saturação. O sistema possui sua própria lei de funcionamento. E é através dela que ele faz ver a lei do mundo e a verdade da existência. Ora, é precisamente isso que caracteriza a interpretação. O discurso hermenêutico não é uma descrição, mas uma espécie de recriação. Mão se liga à aparência para tentar restituir sua tecitura de superfície, mas visa a revelar seu sentido. Ora, o sentido não se mostra como um objeto nem como um sistema de objetos. É este elemento impalpável que atravessa todos os objetos e todos os sistemas, religando-se ao movimento universal da manifestação. Tal movimento é a irradiação do originário: reduz o visível à sua fonte e o impele para horizontes sempre mais vastos que ele só faz anunciar. Tornar o sentido manifesto é reinserir as aparências estáveis do mundo nesse devir da manifestação. E um discurso só consegue isso, caso se converta em devir. O movimento de interpretação é justamente esse processo de um discurso que, ao construir-se segundo as exigências próprias do conceito, faz progressivamente surgir, na concatenação mesma de seus momentos e na sistematicidade de sua arquitetura total, um sentido no qual se mostra e se celebra o fundo mesmo da realidade. [Ladrière]