A fenomenologia coincide com o objetivismo na crítica de certas teses introspeccionistas. A própria empresa da psicologia desmente que o sentido de um conteúdo de consciência seja imediatamente manifesto e apreensível como tal; se experimentamos a necessidade de uma ciência psicológica é precisamente porque sabemos que não sabemos o que seja o psiquismo. É verdade que estando eu assustado, eu sou medo, mas nem por isso eu não sei o que é o medo, “sei” somente que tenho medo: resta medir a distância entre esses dois saberes. Na realidade, “o conhecimento de si por si é indireto, ela é uma construção; necessito decifrar minha conduta como eu decifro a conduta do outro” (Merleau-Ponty, Les sciences de l’homme et la phenoménologie, C.D.U.). A fenomenologia opõe assim a reflexão à introspecção. Para que a reflexão seja válida é preciso evidentemente que a vivência sobre a qual meditamos não seja imediatamente arrastada pelo fluxo de consciência, é preciso, portanto, que ela permaneça, de’ certo modo, idêntica a si mesma através desse devir. Compreende-se por que Husserl, a partir das Ideen I, procurava fundamentar a validade da reflexão na “retenção”, função que não deve ser confundida com a memória, pois constitui, ao contrário, uma condição daquela: pela retenção, a vivência continua a me ser “dada” ela mesma e em pessoa, afetada de um estilo diferente, isto é, na forma de “não mais”. Aquela cólera que me invadiu ontem ainda existe em mim implicitamente, uma vez que posso pela memória retomá-la, datá-la, localizá-la, encontrar seus motivos, desculpas; e é realmente aquela mesma cólera que é assim “retida” no seio de meu “presente vivo” porque mesmo que eu afirme, de acordo com as leis experimentais da degradação da lembrança, que a vivência de cólera presente é modificada, essa afirmação implica em profundidade que “eu tenho” ainda de certa forma a cólera não modificada, para poder “compará-la” com a cólera passada da qual minha memória me presta presentemente informações. O “Gegenstand” cólera é o mesmo através das evocações sucessivas que posso fazer dela, pois é sempre da mesma cólera que falo. É assim que toda reflexão é possível e especialmente a reflexão fenomenológica, que tenta precisamente restituir a vivência em questão (a cólera) descrevendo-a da maneira mais adequada possível: essa reflexão é uma retomada descritiva da própria vivência, tomada agora como Gegenstand para a consciência atual daquele que descreve. Trata-se em suma de desenhar fielmente aquilo que penso quando penso na minha cólera passada : mas é preciso ademais que eu pense efefiVamen-íe nessa cólera vivida e não em determinada reconstrução de minha cólera e não devo deixar ocultar-se o fenômeno realmente vivido por uma interpretação prévia desse fenômeno. Assim, a reflexão fenomenológica se distingue da reflexão das filosofias tradicionais que consiste em reduzir a experiência vivida às suas condições a priori e desse modo reencontramos, na base da reflexão que a fenomenologia opõe psicologia introspectiva, a preocupação husserliana da própria coisa, a preocupação de ingenuidade; é tal preocupação que motiva a redução, garantia contra a inserção do pressuposto e a expressão das alienações na descrição reflexiva que tenho que fazer de minha cólera. É pois a vivência de cólera anterior a toda racionalização, a toda tematização que devo de início separar pela análise reflexiva, para saber a seguir reconstituir seu significado. [Lyotard]