Para alcançar seu objeto próprio, o eidos, a fenomenologia deve praticar não a dúvida cartesiana, mas uma suspensão do juízo que Husseel denomina epoché. Quer isto dizer que a fenomenologia “coloca entre parêntesis” certos elementos do dado e se desinteressa deles. Importa distinguir várias espécies destas reduções. Em primeiro lugar, a epoché prescinde de todas as doutrinas filosóficas; ao fenomenólogo não interessam as opiniões alheias; ele investe contra as próprias coisas. Após esta eliminação preparatória, temos a redução eidética, mediante a qual a existência individual do objeto estudado “é colocada entre parêntesis” e eliminada, porque à fenomenologia não interessa senão a essência. Eliminando a individualidade e a existência, eliminam-se igualmente todas as ciências da natureza e do espírito, suas observações de fatos não menos que suas generalizações. O próprio Deus, enquanto fundamento do ser, deve ser eliminado. Também a lógica e as demais ciências eidéticas ficam submetidas à mesma condição: a fenomenologia considera a essência pura e põe de lado todas as outras fontes de informação.
À redução eidética acrescenta Husserl, em suas obras posteriores, o que ele chama a redução transcendental. Esta consiste em pôr entre parêntesis não só a existência, senão tudo o que não é correlato da consciência pura. Como resultado desta última redução, nada mais resta do objeto além do que é dado ao sujeito. Para bem compreender a teoria da redução transcendental, é necessário que examinemos agora a doutrina da intencionalidade, que lhe serve de base. [Bochenski]
A inspiração cartesiana surge em A Ideia da Fenomenologia (1907) que se fará sentir nas Ideen I e, ainda, mas num grau menor, nas Meditações Cartesianas.
O sujeito cartesiano resultante das operações da dúvida e do cogito é um sujeito concreto, vivencial, não um quadro abstrato. Simultaneamente, esse sujeito é um absoluto pois tal é o sentido verdadeiro das duas primeiras meditações: ele se basta a si mesmo, não tem necessidade de nada para fundar seu ser. A percepção que esse sujeito possui de si mesmo “é e se mantém enquanto dura um absoluto, um “este”, algo que é, em si, o que é, algo que me permite medir, como última medida, o que “ser” e “ser dado” pode e deve significar” (Ideia da Fenomenologia). A intuição do vivido por sisi mesmo constitui o modelo de toda evidência originária. E nas Ideen I Husserl vai refazer o movimento cartesiano a partir do mundo percebido ou mundo natural. Nada há de espantoso nesse “deslize” do plano lógico ao plano natural.- ambos são “mundanos” e o objeto em geral é tanto coisa como conceito. Não exis+e um deslize propriamente dito mas uma acentuação e é indispensável compreender corretamente que a redução se aplica em geral a toda transcendência (isto é a todo em si).
A atitude natural contém uma tese ou posição implícita pela qual eu encontro aqui o mundo e o aceito como existente. “As coisas corporais aí estão simplesmente para mim com uma distribuição espacial qualquer; elas estão “presentes” no sentido literal ou figurado de acordo com a atenção especial que lhes confiro… Os seres animados igualmente, tais como os homens, aí estão para mim de maneira imediata… Para mim os objetos reais estão ali, portadores de determinação, mais ou menos conhecidos, fazendo corpo com os objetos percebidos efetivamente, sem serem eles mesmos percebidos, nem mesmo presentes de modo intuitivo… Mas o conjunto desses objetos co-presentes à intuição de maneira clara ou obscura, distinta ou confusa, e que cobre constantemente o campo atual da percepção, não esgota sequer o mundo que para mim está “ali” de forma consciente a cada instante que estou desperto. Pelo contrário, ele se estende sem limites segundo uma ordem fixa de seres, ele é de um lado atravessado, de outro circundado por um horizonte abscuramente consciente de realidade indeterminada… Este horizonte brumoso incapaz para sempre de uma total determinação está necessariamente ali… O mundo… tem seu horizonte temporal infinito nos dois sentidos, seu passado e seu futuro, conhecidos e desconhecidos, imediatamente vividos e privados de vida. “Enfim este mundo não é somente mundo de coisa, mas segundo a própria imediatez, mundo de valores, mundo de bens, mundo prático” (Ideen, 48-50). Mas esse mundo contém igualmente um âmbito ideal: se me dedico presentemente à aritmética esse mundo aritmético está ali para mim, diferente da realidade natural na medida em que ele só está ali para mim enquanto tomo a atitude do matemático, ao passo que a realidade natural sempre está ali. Enfim, o mundo natural é também o mundo da inter-subjetividade.
A tese natural, contida implicitamente na atitude natural, é aquilo que permite que eu “descubra (a realidade) como existente e a acolha, como ela se dá a mim, igualmente existente” (Ideen, 52-53). É evidente que posso pôr em dúvida os dados do mundo natural, recusar as informações que dele recebo, distinguir por exemplo aquilo que é “real do que é “ilusão” etc. Mas essa dúvida “não altera nada na posição geral da atitude natural” (ibid.); ela nos faz aceder a uma apreensão desse mundo existente mais “adequada”, mais “rigorosa” do que a que nos dá a percepção imediata, funda a superação do perceber pelo saber científico, mas nesse saber a tese intrínseca à atitude natural se conserva, pois não há ciência que não postule a existência do mundo real do qual é ciência.
Esta alusão às duas primeiras meditações de Descartes exprime que nem bem o radicalismo cartesiano foi retomado e Husserl denuncia sua insuficiência: a dúvida cartesiana relativa à coisa natural (pedaço de cera) continua sendo em si mesma uma atitude mundana, sendo tão-somente uma modificação dessa atitude sem corresponder portanto à exigência profunda de radicalidade. Prova disso será dada nas Meditações Cartesianas em que Husserl denuncia o pressuposto geométrico pelo qual Descartes assimila o cogito a um axioma do saber em geral, quando o cogito deve ser muito mais, uma vez que ele é o fundamento dos próprios axiomas; esse pressuposto geométrico revela a insuficiência da dúvida como processo de radicalização. À dúvida é preciso, portanto, opor uma atitude pela qual eu não íomo posição em relação ao mundo como existente ainda que essa posição seja afirmação natural de existência ou dúvida cartesiana, etc. É claro que eu, como sujeito empírico e concreto, continuo a participar da posição natural do mundo, “esta tese continua a ser algo de vivido”, mas, não faço dela nenhum uso. Fica suspensa, fora de jogo, fora de circuito, entre parênteses; e por essa “redução” (epoqué) o mundo circundante não é mais simplesmente existente, mas “fenômeno de existência” (Meditações Cartesianas) [Lyotard]