VIDE Gestaltismo e gestaltismo
Antes de examinar como a fenomenologia utiliza a fisiologia para criticar o mecanismo watsoniano, detenhamo-nos na Gestalttheorie, que, dentre todas as escolas psicológicas, foi a que mais se aproximou das teses fenomenológicas: os psicólogos da forma são discípulos de Husserl.
O conceito de comportamento é retomado e precisado no de forma. O erro de Watson, como o demonstra Koffka (Principles of Gestalt Psychology) foi ter implicitamente admitido a objetividade do comportamento. O fato de uma conduta ser observável não significa que ela seja um objeto cuja origem se deva procurar numa conexão por sua vez objetiva, como aquela que a liga à organização nervosa- Na realidade, os estímulos perceptivos por exemplo que condicionam nossa atividade não são eles mesmos percebidos. Se retomarmos a experiência elementar de Müller-Lyer, na qual os segmentos iguais por construtrução são percebidos como desiguais, teremos um exemplo significativo da diferença que se deve fazer entre aquilo que é “objetivo” e aquilo que é “dado”. A confusão watsoniana resulta do fato de que o dado é precisamente um dado “objetivo”, porque é essência da percepção nos fornecer o objetivo. Quando se afirma que essa experiência produz uma “ilusão”, não se compreende que, ao contrário, para qualqur sujeito perceptor os dois segmentos são efetivamente desiguais, que é apenas em relação ao sistema de referência do experimentador que constrói a figura que há ilusão. Justamente o mundo matemático ou mensurável no qual foi construída a figura não é o mundo perceptivo e é preciso dissociar o meio perceptivo e o meio que Koffka denomina “geográfico” como o que é dado imediatamente e o que é construído por mediação conceituai e instrumental (conceito de igualdade, duplo decímetro). O problema não é saber qual desses meios é o mais verdadeiro: quando se fala de ilusão de ótica, concede-se indevidamente um privilégio ao meio científico e construído. De fato, não se frafa de saber se percebemos o real tal como ele é (no caso, por exemplo, a igualdade dos dois segmentos) pois é precisamente o real que percebemos; é claro sobretudo que a aparelhagem mental e instrumental da ciência ganha por sua vez eficácia na relação imediata do sujeito que a utiliza com o mundo e era exatamente isso que Husserl queria dizer quando demonstrava que a própria verdade científica funda-se, em última análise, apenas na “experiência” ante-predicativa da ciência. Quando se propõe o problema de saber se o sujeito empírico percebe o real propriamente dito colocamo-nos de certa forma acima dessa relação, o filósofo contempla então, do alto de um pretenso absoluto, a relação que mantém a consciência com o objeto e denuncia as “ilusões” dessa relação. Como o indicava A República, a compreensão do fato de estarmos dentro da caverna pressupõe que se tenha saído dela. A fenomenologia, apoiando-se nos dados empíricos das investigações da Gestaltpsyahologie denuncia essa inversão de sentido: pode-se compreender o mundo inteligível de Platão como o conjunto das construções a partir das quais a ciência explica o mundo sensível, mas, para nós não se trata de partir do construído: antes é preciso compreender o imediato a partir do qual a ciência elabora seu sistema. De qualquer modo, esse sistema não deve ser “realizado”, ele é apenas, como dizia Husserl, uma “vestimenta” do mundo perceptivo. Por conseguinte aquilo que Kofka denomina o meio de comportamento (Umwelt) constitui o universo efetivamente real, porque efetivamente vivido como real; e Lewin, dando continuidade a seu pensamento, mostra que é preciso liquidar toda interpretação substancialista do meio geográfico como do meio de comportamento: apenas na medida em que os dois “universos” são “realizados é que se coloca o problema de sua relação, e especialmente, de sua antecedência e mesmo de sua causalidade. Se se admite, ao contrário, que se trata apenas de conceitos operatórios, o problema deixa de existir. O termo de “realidade” não implica portanto, absolutamente, um remetimento a uma substância material. Poder-se-ia defini-lo melhor como a pré-existência.
É com efeito uma característica essencial do Umwelt fenomenal, como o denomina Koffka, estar ele sempre já ali. Em certo sentido o livro todo de Merleau-Ponty sobre a percepção consiste em separar esse núcleo de já, o que ele chama por vezes a “pré-história”, dando a entender com isso que toda tentativa experimental objetiva para extrair o como de minha relação com o mundo remete sempre a um como já instituído, anterior a toda reflexão predicativa e sobre a qual se estabelece precisamente a relação explícita que mantenho com o mundo. Retomemos por exemplo a experiência de Wertheimer: um sujeito, colocado num quarto de modo a vê-lo apenas por intermédio de um espelho com uma inclinação de 45° em relação à vertical, percebe esse quarto inicialmente como oblíquo.
Todo deslocamento que aí se produz parece-lhe estranho: um homem que anda parece inclinado, um corpo que cai parece cair obliquamente etc. Ao cabo de alguns minutos (se o sujeito não procura, é claro, perceber o cômodo de outro modo que não pelo espelho) as paredes, o homem que se desloca, a queda do corpo parecem “retos”, verticais, desaparecendo a impressão de obliquidade. Trata-se de uma “redistribuição instantânea do alto e do baixo”. Pode-se dizer termos objetivistas que a vertical “girou” mas tal expressão é errônea porque precisamente para o sujeito não foi isso que ocorreu. Que sucedeu então? A imagem do quarto no espelho parece-lhe inicialmente como um espetáculo estranho: a própria estranheza é a garantia de que se trata de um espetáculo, isto é, que o sujeito “não é presa dos utensílios que o quarto encerra, ele não o habita, ele não coabita com o homem que ele vê ir e vir.” Após alguns instantes esse mesmo sujeito sente-se apto a viver nesse quarto, “em vez de suas pernas e de seus braços verdadeiros, ele sente quais pernas e quais braços ele deveria possuir para andar e agir no quarto refletido, ele habita o espetáculo” (ibid., 289). Isto significa, entre outras coisas, que a direção alto-baixo, que produz poderosamente nossa relação no mundo, não pode ser definida a partir do eixo de simetria de nosso corpo concebido como organismo fisiológico e sistema de reações objetivas; relação com o alto e com o baixo, que permanecem assim independentes para mim de sua posição. Significa isto que a verticalidade existe em si? Isto seria igualmente errôneo pois a experiência de Wertheimer, ou a de Stratton sobre a visão com inversão da imagem retiniana, demonstram ao contrário que se pode perfeitamente falar de direções espaciais objetivas mas não absolutas e essa impossibilidade é inevitável na medida em que nos situamos no inferior da percepção, do mesmo modo que ainda há pouco não podíamos criticar a percepção da desigualdade dos segmentos a não ser se saíssemos da própria percepção. Mas a nova direção espacial não aparece como uma modificação da antiga; do mesmo modo, na experiência de Stratton, o sujeito munido de seus óculos inversores acaba por se instalar numa direção alto-baixo ao mesmo tempo visual e táctil que não é mais apreendida como inversa da vertical “comum”. Ao contrário, a verticalidade “nova” é vivida como verticalidade simplesmente, isto é, precisamente como direção objetiva do espaço.
Aí encontramos o próprio caráter da Gestalt: ela não é em si, isto é, ela não existe independentemente do sujeito que vê nela inserida sua relação com o mundo, ela não é tampouco construída por mim, no sentido simplista pelo qual Condillac pretendia ser a rosa construída pela ligação dos dados dos diversos campos sensoriais. Ela não é absoluta porque a experimentação prova que se pode fazê-la variar: é o caso, por exemplo, da experiência clássica sobre as oscilações da atenção (cruz de Malta negra inscrita num círculo cujo “fundo” é branco); ela não é puramente relativa ao eu, porque nos dá um Umwelt objetivo., O que não se compreendia no associacionismo era precisamente como essa rosa composta no nível cortical e de modo imanente podia ser apreendida, assim como o é efetivamente, como transcendente. Assim o Uraweif no qual estamos instalados pela percepção é de fato objetivo, transcendente, mas não absoluto, pois um certo sentido é correto dizer que essa objetividade somos nós que lhe conferimos já; mas conferimo-la num nível mais profundo que aquele em que nos aparece, num nível primordial sobre o qual se funde nossa relação com o mundo. Pode-se portanto, concluir que a teoria da forma empenhou-se em revelar uma Lebenswelt fundamental, aquém do universo explícito e límpido no qual a atitude natural e também a atitude da ciência natural fazem-nos viver. Esta era justamente a ambição do Husserl das últimas obras, e Merleau-Ponty parece-nos realmente estar na mais rigorosa linha do pensamento fenomenológico quando retoma os resultados da Gestalttheorie e os interpreta no sentido que apontamos. O próprio fato de abordar o problema da percepção é um sintoma: pois a percepção é aquilo pelo qual estamos no mundo, ou aquite pelo qual “temos” um mundo, como se quiser, e constitui por isso o núcleo de toda compreensão filosófica e psicológica do homem. Ora, a própria Gestalttheorie tem também seu eixo principalmente na percepção e o pensamento de Husserl por sua vez retomava constantemente, como sabemos, o problema da constituição da coisa. Essa convergência não é fortuita: ela se explica pela preocupação com a radicalidade que, aquém do comportamento tomado por sua vez como relação do sujeite e de seu Umwelt, procura fundar sua possibilidade numa relação ainda mais originária: é essencial que essa originaridade tenha sido procurada tanto pelos psicólogos da forma como pelos fenomenólogos, não do lado do organismo fisiológico mas no âmago da própria relação. Não se trata de ir procurar num dos polos da retenção sua explicação pois é igualmente a própria relação que dá seu sentido aos dois polos que ela une. Encontramos novamente assim, inerente ao conceito de Gestalt t a noção central da fenomenologia: a intencionalidade. Mas, evidentemente, não se trata de intencionalidade de uma consciência transcendental: é antes a de um “Leben”, como dizia Husserl, a intencionalidade de um sujeito profundamente enterrado no mundo primordial, e motivo pelo qual Merleau-Ponty procura sua origem no próprio corpo. [Lyotard]