(in. Problem of others; fr. Problème de l’autre; al. Problem von fremden Ichen; it. Problema dell’altró).
Na filosofia moderna e contemporânea, essa expressão indica o problema da existência de outros eus (espíritos ou pessoas), independentes do eu que formula o problema. Esse problema nasce de dois pontos de vista diferentes, mas vinculados por alguns pressupostos comuns. O primeiro é o do idealismo romântico segundo o qual, sendo a realidade um Princípio Infinito e universal (p. ex., o Eu Absoluto de Fichte), é preciso ver de que modo ela se rompe ou se multiplica na diversidade dos eus singulares. O segundo é o ponto de vista genericamente idealista e espiritualista, segundo o qual originaria-mente é dado a cada um de nós somente o eu e as suas experiências psíquicas, dentre as quais algumas (uma parte apenas) se refeririam a outros indivíduos.
Fichte respondeu ao primeiro problema, em Doutrina moral (1798), afirmando o caráter originário da ideia do dever, da qual deriva o reconhecimento dos outros eus. A ideia do dever é a autodeterminação originária do eu, mas ela não poderia ser realizada se não existissem outros eus, outros sujeitos em face dos quais, somente, a ideia do dever pode ter sua determinação e, portanto, possibilidade de realização. Portanto, para Fichte, a realidade dos outros eus é um postulado moral: a existência dos outros eus deverá ser admitida e reconhecida, se o eu quiser realizar concretamente a sua moralidade (Sittenlebre, § 18). Com algumas variantes, essa concepção foi retomada por outros filósofos, como p. ex. por Riehl em seu livro sobre o Criticismo (1886-87), e por Cohen, em Ética da vontade pura (1904); este último deduz a existência das pessoas em geral do caráter jurídico e das funções públicas do homem, de modo que a multiplicidade dos eus só existiria como multiplicidade de “pessoas jurídicas”.
Por outro lado, o ponto de vista segundo o qual o eu só conhece de modo imediato a si mesmo e seus estados interiores, ou seja, o ponto de vista do acesso privilegiado ao conhecimento interior do eu (v. consciência), dá origem ao problema de se saber como uma parte da experiência do eu pode referir-se a outro eu, e ao problema ainda mais sério de saber que garantia essa referência oferece em favor da existência efetiva do outro eu. Para responder a esses problemas foram formuladas duas teorias. 1) A existência dos outros seria inferida por um “juízo de analogia” a partir das percepções que nos revelam movimentos análogos àqueles por meio dos quais exprimimos nosso próprio eu. Mas esta teoria, pertencente à psicologia associacionista, é desmentida pelo fato de que a crença na existência dos outros seres animados também pode ser encontrada nos animais e nas crianças, que são incapazes de juízos analógicos. 2) A segunda teoria postula um órgão específico para o conhecimento da existência do outro, como p. ex. uma espécie de intuição afetiva (Einfühlung), que nos poria em relação com o que está além das manifestações corpóreas do outro, com a alma do outro (cf., p. ex., Th. Lipps, Aesthetik, I [1903]; 2a ed., 1914, p. 106 ss.). Mas o recurso a órgãos desta espécie só faz reduzir a existência de outros espíritos a objeto de uma crença injustificável, logo irracional.
Na filosofia contemporânea, a partir da obra de Scheler, Essência e forma da simpatia (1923), o pressuposto subjetivista do problema mostrou-se cada vez mais frágil; e foi também atacado pela psicologia contemporânea, com base em observações experimentais. Scheler observou que não existe nenhum privilégio ontológico ou metafísico a favor dos pensamentos ou dos sentimentos que o eu chama de “meus”. Meu pensamento me é dado como “meu” do mesmo modo como o pensamento de outro me é dado como pensamento “alheio”: esse é o caso comuníssimo e normal, em que compreendemos uma comunicação qualquer que nos é feita. Entre o meu e o alheio há sempre uma conexão estreitíssima, e os dois determinam-se e condicionam-se reciprocamente, sem que as respectivas esferas se deixem jamais fixar rigidamente, como prova o fato de que muitas vezes nós não sabemos dizer se certa experiência psíquica vem de nós mesmos ou de outros (Sympathie, III, cap. III). Isto equivale a negar o caráter pessoal e rigidamente subjetivo do Eu e a reconhecer que, a partir de sua constituição e em todas as suas manifestações, ele se move numa rede de relações intersubjetivas que o constituem e no qual estão recortadas as esferas correlativas do “meu” e do “teu”. Este ponto de vista é frequente na filosofia contemporânea, encontrando-se mesmo em escolas diferentes. Mead afirma que “o homem só se torna um eu na sua experiência na medida em que sua atitude suscita uma atitude correspondente nas relações sociais”. Nesse caso, autoconsciência, ou eu, outra coisa não é senão a atitude generalizada dos outros em relação a nós. “Assumimos o papel daquilo que poderia ser chamado de outro generalizado e, ao fazermos isto, aparecemos como objetos sociais, como eu” (Phil. of the Present, p. 185). Por outro lado, Carnap expressou ponto de vista bastante próximo deste, ao insistir no caráter secundário e derivado da distinção entre o eu e o tu. “Mesmo a caracterização dos elementos fundamentais do nosso sistema constitutivo como psiquicamente próprios, isto é, como ‘psíquicos’ e como ‘meus’, só adquire significado com a constituição dos campos do não-psíquico (contraposto ao psíquico) e do ‘tu’” (Der logische Aufbau der Welt, § 65). Estas observações demonstram que é cada vez mais difícil sustentar pontos de partida solipsistas, que pretendam fundar-se em dados pertencentes ao âmbito da consciência pessoal. E mesmo uma filosofia como a de Sartre, para a qual a outra existência é tal porquanto não é minha, de tal modo que a relação interpessoal é uma relação de negação recíproca e só a negação é “a estrutura constitutiva do ser outro” (L’être et le néant, p. 285), apresenta-se como um transcender do cogito. “O que, por falta de melhor expressão, chamamos de cogito da existência do outro, confunde-se com o meu próprio cogito. É preciso que o cogito me lance fora dele, sobre o Outro, assim como me lançou fora dele sobre o em-si, e isto não me revelando uma estrutura minha a priori, que apontaria para o outro igualmente a priori, mas descobrindo em mim a presença concreta e indubitável deste ou daquele outro concreto, como já me revelou a minha existência inconfrontável, contingente e, todavia, necessária e concreta” (Ibid., pp. 308-09). Analogamente, para
Husserl, a experiência do outro é uma espécie de Einfühlung ou empatia, em virtude da qual o outro se constitui por “apresentação” como “um outro eu mesmo” (Cart. Med., § 52). O próprio eu age de tal modo que “uma modificação intencional de si mesmo e da sua primordialidade chegue à validade sob o título de percepção da estraneidade, percepção de um outro, de um outro eu” (Krisis, § 54 b). [Abbagnano]