O historiador pertence ao devir que descreve. Está situado após os acontecimentos, mas na mesma evolução. A ciência histórica é uma forma da consciência que uma comunidade toma de si mesma, um elemento da vida coletiva, como o conhecimento de si um aspecto da consciência pessoal, um dos fatores do destino individual. Não é ela função simultaneamente da situação atual, que por definição muda com o tempo, e da vontade que anima o sábio, incapaz de se destacar de si mesmo e do seu objeto?
Mas, por outro lado, ao contrário, o historiador busca penetrar a consciência de outrem. É, em relação ao ser histórico, o outro. Psicólogo, estratega ou filósofo, observa sempre do exterior. Não pode nem pensar o seu herói, como este se pensa a si mesmo, nem ver a batalha como o general a viu ou viveu, nem compreender uma doutrina do mesmo modo que o criador.
Finalmente, quer se trate de interpretar um ato ou uma obra, devemos reconstruí-los conceitualmente. Ora nós temos sempre de escolher entre múltiplos sistemas, pois a ideia é ao mesmo tempo imanente e transcendente à vida: todos os monumentos existem por eles mesmos num universo espiritual, a lógica jurídica e econômica é interna à realidade social e superior à consciência individual. […]
Toda atividade espiritual se insere numa tradição na qual e pela qual o indivíduo se define. Não há sábio nem artista que não parta de qualquer coisa adquirida, nem transmissão que não corresponda a uma espécie de recriação. Mesmo na ordem da ciência positiva, a prossecução do saber supõe, não a submissão, mas o poder do espírito, capaz de demonstrar e, por assim dizer, de inventar de novo. Quando se trata de obras nas quais o homem se empenha sem se vergar a normas constantes, manifesta-se a mesma liberdade. Cada época escolhe-se um passado, que vai buscar ao tesouro coletivo; cada nova existência transfigura a herança que recebeu, conferindo-lhe um outro porvir e emprestando-lhe uma outra significação. […]
Julgamos nós que uma ideia fundamental se destaca das análises precedentes: a dissolução do objeto. Não existe uma realidade histórica, já feita antes da ciência, que conviesse simplesmente reproduzir com fidelidade. A realidade histórica, por ser humana, é equívoca e inesgotável. São equívocas a pluralidade dos universos espirituais através dos quais se desenrola a existência humana, a diversidade dos conjuntos nos quais vêm situar-se as ideias e os atos elementares. É inesgotável a significação do homem para o homem, da obra para os intérpretes, do passado para os presentes sucessivos. [Raymond Aron, Introduction à la Philosophie de l’Histoire, 1938, pp. 88-120.]