Filosofia – Pensadores e Obras

o que é

O problema que imediatamente ressalta naqueles que são hoje comumente considerados os primeiros diálogos de Platão é o da determinação do sentido da excelência ou de uma das suas partes: na sua enumeração mais corrente e simultaneamente mais completa, a justiça (δικαιοσύνη [dikaiosyne], δικαιότης [dikaiotes]), a coragem (ἀνδρεία [andreia]), a temperança ou moderação (σωφροσύνη [sophrosyne]), a piedade (ὅσιον [osion], ὁσιότης [osiotes]) e a sabedoria (σοφία [sophia], ἐπιστήμη [episteme], φρόνησις [phronesis]).

A expressão determinação tem aqui um sentido preciso: ela assinala o modo interrogativo pelo qual cada uma destas excelências é expressamente convocada, a saber, através da pergunta «o que é?», a qual busca incessantemente e segundo um padrão regular um enunciado que dê conta do que cada uma delas é, terminando, de modo igualmente regular, por uma suspensão aporética, em que nenhuma resposta aparentemente se acha.

Ora, se bem que em nenhum diálogo deste período encontremos um exame exaustivo de todas estas ἀρεταί [v. arete], pois só o Protágoras tematiza explicitamente o problema da sua unidade global, dir-se-ia que um tal exame é deliberadamente preterido em favor de uma investigação completa mas faseada de cada uma delas, encarada em si mesma. Assim, vemos o Laques a braços com a determinação da coragem, o Cármides perante a σωφροσύνη, o Êutifron defrontando-se com a piedade, o Trasímaco (livro da República metodologicamente enquadrável no período socrático) ensaiando a definição da justiça, e o Protágoras, o Ménon, o Górgias, e também, de certa forma, o Eutidemo, refletindo, cada um a seu modo, sobre o problema da ensinabilidade da ἀρετή.

A um segundo olhar, entretanto, este parcelamento é meramente ilusório. Pois, se é verdade que cada um destes diálogos tematiza uma parte da excelência, é também verdade que todos eles descobrem, de uma forma ou de outra, um vínculo unificador da própria excelência, o qual é simultaneamente o que faz de cada uma delas justamente uma excelência. E tal vínculo unificador é o saber [Veja-se em especial, Euthd., 277d-282e, 288d-293a, e cf. La., 196c-199e, Chrm., 174b–176a, Prt., 352a ss; mas V. ainda Prt., 345bc, Grg., 460bd, Meti., 87d-89a, 97e-99b.].

Deste modo, por detrás da demanda pela determinação do sentido da excelência, o que outrossim se busca é o próprio sentido da determinação, enquanto ele corresponde a um projeto específico de saber.

Poder-se-ia sustentar esta afirmação a dois níveis: porque as reiteradas interrogações pelas diversas excelências, sob a forma de «o que é», ao mesmo tempo que visam a determinação disso, põem igualmente em questão a legitimidade da própria interrogação, sob essa forma, levando a uma explicitação do que se entende por tal «o que é» [Veja-se em particular as repetidas distinções entre definição e exemplo, essência e qualidade, natureza e caso, em todos os diálogos do primeiro período e, no Êutifron e no Ménon, o já claro apontar do «aspecto próprio» (αὐτὸ το εἶδος [auto to eidos]) que distingue cada ἀρετή (Euthphr., 5d, 6de; Men., 72a-73a).]. E porque, subjacente à análise de cada excelência está a noção de que cada uma delas carece do saber para se realizar e que mesmo o que cada uma delas é coincide com um saber determinado [v. ignorância].

Encontramos assim três noções fundamentais — excelência, «o que é» e saber — que se cruzam sucessivamente em três planos distintos, cada uma delas determinando o conjunto de todas num plano particular e sendo determinada pelas outras noutro plano particular. Numa primeira aproximação, com efeito, é a excelência que domina, pois que é dela que se procura saber o que é; mas já num segundo momento surge tematicamente «o que é» como aquilo mesmo que tem de ser esclarecido para que a primeira pergunta obtenha resposta; e, finalmente, é o saber que sobreleva, pois que não é já tão-só saber da excelência, mas saber em que a excelência consiste, i. e., porque ele próprio responde agora à pergunta, na medida em que, ao tentarmos saber o que é a ἀρετή [arete], começámos a suspeitar que ela é justamente saber.

A insistência no «o que é» como modo próprio da questão e, mais do que isso, a consideração de que é esse o ponto de partida necessário de toda a investigação bem sucedida, ο ἐξ ἀρχῆς [ex arches] sem o qual qualquer exame redunda em aporia, é um traço constante da totalidade dos diálogos do primeiro período e mesmo da totalidade do pensamento platônico.

Todavia, a essa condição junta-se frequentemente uma outra, que constitui simultaneamente uma determinação suplementar do saber por que se demanda. Tal é a exigência, explícita no Cármides, quase expressa no Lísis, e tácita nos restantes textos, de que o que procura participe já da natureza daquilo mesmo que procura. [MesquitaPlatão:45-47]