Filosofia – Pensadores e Obras

noção de ser

O ser do qual procuramos precisar a noção não é aquele que se encontra em qualquer nível do pensamento, mas somente aquele ao qual o espírito se eleva por este esfôrço de separação absoluta que caracteriza a abstração metafísica, isto é, o ser apreendido formalmente como ser, ou o ser enquanto ser.

É, com efeito, extremamente importante dar-se conta de que só um esfôrço de purificação intelectual longamente praticado permite ao espírito atingir este nível. Espontaneamente, a inteligência volta-se de início para as realidades do mundo sensível e necessariamente, como o dissemos, ela os concebe como seres. Mas o ser que assim afirmo destas coisas não é um ser abstrato, é o ser particularizado de cada uma delas. Trata-se de um conhecimento atual, apreendo o ser efetivamente, mas com um conhecimento confuso, pois não o afasto suficientemente dos sujeitos em que está implicado. Esta experiência diversificada do ser que penetra todo o nosso pensamento habitual e que se encontra no fundamento mesmo das ciências está em um nível infra-filosófico Sem atingir ainda o nível metafísico, parece que posso desde aí elevar-me a uma certa universalidade em minha percepção do ser. Se, com efeito, através de generalizações progressivas, envolvo os objetos de minha experiência em ideias cada vez mais universais, seguindo, por exemplo, as gradações da árvore de Porfírio: homem-animal-ser-vivo-corpo-substância. . . ao termo desta ascensão rumo a ideias sempre mais extensivas, atingirei finalmente a noção de ser, a mais universal de todas O processo que terei posto em execução será aquele da abstração total, ou de um todo lógico dos seus inferiores. A noção que assim obterei é, ao mesmo tempo que a mais universal, a menos determinada de todas, uma vez que contém virtualmente todas as diferenças, multiplicadas ao infinito, da variedade dos seres. Esta noção comum do ser, que confundimos, às vezes, com o conceito formal de que iremos falar, corresponde já, por sua universalidade, a uma certa reflexão filosófica, mas que permanece ainda no plano das elaborações do senso comum. É preciso um novo esfôrço de abstração ou de purificação para se elevar ao plano da apreensão ou da intuição metafísica do ser<ser enquanto ser. Qual é, pois, o conteúdo ou a significação desta noção primeira da qual acabamos de indicar o longo processo de formação no espírito humano?

Fixemos nosso ponto de partida na análise da linguagem. O infinitivo francês “être” pretende traduzir o particípio substantivo grego “to on” ou o particípio latino “eris”. Seria mais exato dizer “o ente”; ou de modo mais preciso ainda “alguma coisa que é”. Esta transposição tem a vantagem de pôr melhor em evidência dois aspectos na noção de ser: um aspecto do sujeito receptor, “a alguma coisa”, e um aspecto de atuação ou de determinação deste sujeito, “que é”. Na terminologia metafísica dir-se-á que o primeiro destes aspectos significa a essência, essentia, e o segundo a existência, existentia ou esse. O ser é alguma coisa que tem por determinação própria ou por atualidade existir.

Observar-se-á que a noção de ser implica necessariamente estes dois aspectos. A essência só se concebe com a sua ordenação à existência, e esta exige ser determinada por uma essência. Pode-se, contudo, no momento em que se considera o ser, apoiar-se tanto sobre um aspecto como sobre o outro. Diz-se então que se toma o ser “ut nomen” ou “nominaliter” e “ut participium” ou “verbaliter”. No primeiro caso é a essência, a “res”, que se encontra posta em evidência: o ser é “isto que existe” sem que, contudo, relembremos ainda uma vez, se possa abstrair totalmente esta ordenação à existência que se encontra implicada na noção. No segundo caso, é a existência que se assinala: o ser é então “o que existe”; a existência é sempre relativa a alguma coisa. Em definitivo, o ser se nos manifesta na sua unidade como uma composição dos dois aspectos inseparáveis: essência e existência, sem que seja ainda precisada, neste nível da reflexão filosófica, a significação exata desta composição.

Resta determinar em que sentido deve ser tomada a existência que o metafísico considera. O esse que se encontra significado no ens in quantum ens é a existência em seu sentido imediato de existência efetiva atual: o que se designa pela expressão de ens actuale; mas o que é suscetível de tomar lugar neste mundo da existência concreta, o possível, ens possibile, deve também ser compreendido na significação do ser enquanto ser. Tudo, portanto, que foi, é, será ou poderá efetivamente ser, sob não importa que modo; mesmo o que se refere a esta ordem concreta a título de negação ou de privação se vê assim envolvido no objeto da metafísica. Contudo, existe uma modalidade especial de ser, já encontrada na lógica, o ser de razão, ens rationis, que deve ser excluído da metafísica. O verdadeiro ser de razão tem, com efeito, um fundamento na realidade, mas é da sua natureza, não poder existir como tal, senão no espírito que o concebe. Tal ser não pertence, pois, ao mundo da existência concreta, atual ou possível, que o metafísico considera.

São as precisões que podemos figurar no quadro seguinte:

ens: ens rationis, ens Reale
ens Reale: ens actuale, ens possibile
ens possibile: objectum methaphysicae

As distinções que acabamos de fazer com Tomás de Aquino correspondem já, é preciso convir, a uma tomada de posição decisiva no que concerne à orientação de toda a metafísica. Como o veremos melhor em seguida, esta ciência atinge, em particular, a determinação exata do sentido da noção formal de ser ao preço de inúmeras apalpadelas, e não foi sempre que conseguiu guardar a pureza de suas perspectivas. Enquanto o pensamento contemporâneo parece sobretudo sensível ao aspecto concreto, existencial da percepção, os filósofos das épocas precedentes tiveram por seu lado a tentação, colocando a existência como que entre parênteses, de considerar principalmente o ser como uma natureza ou como uma essência. Para Tomás de Aquino, teremos frequentemente a ocasião de repeti-lo, o ser implica sempre necessariamente este aspecto complexo de uma essência que atua, como sua perfeição última, uma existência. [Gardeil]