O problema das mundividências converteu-se, nestes últimos tempos, num dos mais apaixonantes capítulos da filosofia, cabendo ao pensamento atual o mérito de tê-lo agregado à problemática filosófica. ‘Mundividência’ traduz o vocábulo alemão Weltanschauung, ‘visão do mundo’ ou ‘concepção do universo’, traduzido também pelo vocábulo híbrido greco-latino ‘cosmovisão’ ou pelo inteiramente helênico ‘cosmoscopia’, significando o conjunto de intuições que dominam não só as particularizações teóricas de um tipo humano ou cultural e condicionam toda ciência, corno também englobam, em particular, as formas normativas, fazendo da mundividência uma norma para a ação. Daí se apresentarem como tais vastos sistemas que, usualmente, vêm sendo considerados como filosofia ou como simples posições metafísicas, tais como, por exemplo, o materialismo, o espiritualismo etc.
A multiplicidade de mundividências, determinadas pela psicologia, pela raça, pela classe social, pela fase histórica e até mesmo pela própria biologia, permitem a redução de suas formas a uma série de tipos. Nesse sentido, estabelece Dilthey uma tipologia que, mais atenta aos tipos metafísicos, compreende como mundividências básicas o materialismo, o idealismo objetivo e o idealismo da liberdade. Para Lucien Goldmann — que define as mundividências como conceitualizações de “um conjunto de aspirações, de sentimentos e de ideias que reúne os membros de um grupo (quase sempre, de uma classe social) e as opõe aos outros grupos” — as mundividências fundamentais são a) a racionalista (Descartes, Leibniz), que às vezes está ligada, b) à empirista (Hume), c) à trágica (Pascal, Kant) e d) à dialética (Marx, Engels). A mundividência racionalista se caracteriza pelo individualismo, a afirmação da infinitude do espaço, o descobrimento de respostas limitadas; a trágica, pelo totalismo, pela historicidade, pela visão de Deus escondido, pela cisão, pela angústia, pela ambiguidade e pela falta de resposta; a dialética, pela temporalidade, pela integração de opostos e pela resposta completa.
Como conjunto do real cognoscível, distingue-se a mundividência da ‘imagem do mundo’, já que esta é a síntese dos traços gerais das imagens especiais que as diversas ciências esboçam de seu respectivo território, o que não quer dizer que não seja, em grande parte, determinada pela mundividência. Portanto, a imagem do mundo, própria da ciência, não equivale sempre à mundividência, porquanto somente esta penetra a vida espiritual do homem, sendo a imagem do mundo uma ideia geral da organização do cosmos material de acordo com os descobrimentos científicos. Esta imagem do mundo é conseguida mediante uma generalização dos dados parciais da ciência e é susceptível de modificações e desenvolvimento, enquanto a mundividência é dada de uma vez em sua totalidade, é inalterável e depende, em grande medida, do caráter individual do povo ou conjunto de povos, do momento histórico etc. A confusão entre imagem do mundo e mundividência, assim como a confusão entre mundividência e filosofia, foram apontadas recentemente quando um estudo mais atento do passado cultural indicou a possibilidade de uma separação delas e, com isso, a possibilidade de uma teoria das mundividências Intimamente relacionada, consoante Dilthey, com o problema da filosofia da filosofia, entendida esta como um fato histórico humano que é objeto de si mesmo.
Como se vê, a formulação do problema das mundividências constitui, por si só, uma importante tarefa filosófica. Em primeiro lugar, porque o próprio nascimento da palavra Weltanschauung denuncia uma determinada situação histórica do homem. Significa uma radical mudança na direção de seu ponto de mira, pois o homem, que durante tantos séculos teve seus olhos fixados em Deus, volta-os para o mundo. Interessa-se muito mais pela natureza, pela sociedade e pela cultura que pelo reino divino. Claro está que tal interesse não é de hoje, pois data — na cultura moderna — do Renascimento, cujo processo de secularização do pensamento culminará no Iluminismo. Mas é indubitável que coube à filosofia atual, com especial relevância na obra de Dilthey, ocupar-se sistematicamente com o problema mundividente.
Em segundo lugar, é preciso distinguir, no conceito de ‘mundividência’, duas vertentes diversas em íntima relação. Não significa apenas uma visão do mundo, apreensão de seu sentido total, pois nesta visão palpita um ideal para a própria vida; não se trata apenas de uma pura imagem, mas também de uma lei da vida; não é apenas um conjunto de reflexões, ou seja, um comportamento meramente teórico, pois é também uma atitude total do homem, de um povo, de uma época. É uma decisão interna que se nutre de nossas últimas convicções referentes à totalidade do mundo e seu sentido último. A mundividência não se apresenta apenas pela imagem do mundo, mas também pelo comportamento verdadeiro em vista desta imagem. Não diz respeito apenas a razão, mas também ao sentimento e à vontade.
Daí afirmar Dilthey que todo homem, com maior ou menor clareza, reflete sempre, em seu espírito, as relações que ocorrem entre ele e seu ambiente. Suas funções psíquicas, o pensar, o sentir e o desejar constituem diferentes atitudes suas com relação ao próprio mundo, e cada uma delas fá-lo ver-se sob uma luz particular e o subsume em particulares categorias. Através do pensamento o mundo aparece como ura sistema de fatos que são o que são independentemente de nós, e procuramos conhecer o que são em verdade, distinguir a realidade da aparência. Por outro lado, o sentimento nos mostra um mundo repleto de valores que apreciamos e gozamos, ou de desvalores que sofremos e suportamos, e tendemos ao valor melhor, ao prazer ou à felicidade. Por fim, através do desejo e da vontade vemos o mundo como um teatro para a ação, projetamos fins nele e convertemos seus conteúdos em objetos que almejamos ou repelimos.
Mas, sentimento, inteligência e vontade sempre se acham unidos no devir interno do homem. Cada uma destas três instâncias tem suas próprias categorias e vê o mundo á sua maneira. A vida não será uma unidade, a menos que essas três maneiras de ver o mundo se combinem de algum modo e suas peculiares categorias se reconciliem sob o controle de um princípio único. A força relativa das três atitudes num espírito dado determinará qual será este princípio; mas de um ou de outro modo, por subordinação de uma ou duas delas à outra ou por qualquer tipo de combinação, em cada espírito amadurecido se estabelece uma unidade, e esta unidade é o que constitui sua mundividência.
Na mundividência distingue Dilthey três elementos estruturalmente vinculados. O primeiro é uma crença acerca da natureza e conteúdo dos fatos; o segundo, construído sobre esse fundamento, um sistema de preferências e antipatias, expresso em juízos de valor; e o terceiro, resultante dos dois precedentes, é um sistema de desejos e aversões, fins, deveres, regras práticas e princípios. Este sistema compreensivo de ideias e hábitos de pensamento, sentimento e vontade, resulta da operação conjunta das três atividades básicas, e o caráter da mundividência variará consoante qual dessas atitudes seja predominante. Se predomina a função cognitiva, o homem se orgulhará de seu realismo, a clareza do espírito constituirá seu valor supremo e se limitará em reduzir os juízos de valor imperativo a afirmações de fatos psicológicos. Ao contrário, o indivíduo no qual predomina o sentimento escolhe aqueles aspectos do universo que mais o atraem, sua beleza e sua harmonia, e os converte em chave de sua natureza e significado reais. O homem no qual a vontade predomina verá o mundo fático como a manifestação de um poder criativo, que existe para ser o teatro da ação humana; não verá a verdade como clareza cognitiva, mas como o dever moral da sinceridade e honestidade, e a existência objetiva como um conjunto de condições que, na ação, se impõem a si mesmas.
Dilthey afirma que este desenvolvimento, natural e inevitável, se acha poderosamente ajudado pelo esforço consciente em resolver o que ele chama “o enigma da vida”; isto é, os problemas relativos ao nascimento e à morte, à alegria e à dor, amor e ódio, poder e fraqueza do homem e sua ambígua posição na natureza. E toda mundividência, seja religiosa, artística ou filosófica é, essencialmente, uma tentativa de solucionar esse enigma, “que constitui o único, obscuro e espantoso objeto de toda a filosofia”. [LWVita]