Filosofia – Pensadores e Obras

movimento fenomenológico

Foi este projeto compreendido e seguido? O estudo dos desenvolvimentos da fenomenologia husserliana de que, como dissemos, certos aspectos tiveram um extraordinário brilho, mostrou, pelo contrário, uma incompreensão quase geral da ideia diretriz do filósofo. Ele próprio teve claramente consciência disso e exprimiu-o, entre outros, num texto de 1930 (posfácio a Idées): «Que me acusem de intelectualismo, que se fale de atolamento do meu percurso metódico em abstrações unilaterais, ou que me censurem de não atender de nenhuma forma e por razões de princípio à subjetividade originariamente concreta, àquela que é prática e ativa, não mais do que os problemas chamados ‘existenciais’ nem às questões metafísicas, são objecções que assentam todas em mal-entendidos e, em última análise, no fato de se reconduzir a minha fenomenologia a um nível cuja superação constitui precisamente toda a sua significação.» E ele denuncia no fim do mesmo texto todos os arranjos que se quer introduzir na fenomenologia como ciência: «Aquele que crê poder invocar o patético fecundo da experiência no sentido vulgar do termo, ou os ‘resultados garantidos’ das ciências exatas, da psicologia experimental ou fisiologia, ou da lógica e matemáticas, por mais aperfeiçoadas que estejam, para extrair premissas filosóficas.»

Os equívocos assim inventariados com uma notável lucidez estão ainda vivos atualmente. A história do «movimento fenomenológico» permite encarná-los em cada discípulo que, quase sempre, foi um dissidente.

A ambição de Husserl era dar à fenomenologia o caráter de uma obra colectiva. Houve, portanto, «círculos» fenomenológicos, aliás rapidamente desfeitos, estando a ruptura com o mestre de modo geral consumada antes de 1916; o motivo ideológico desta ruptura foi, na maior parte dos casos, a recusa da transformação da fenomenologia em idealismo transcendental. Depois, o pensamento fenomenológico seguiu o seu próprio curso e conheceu livres interpretações. Um quadro histórico, aliás demasiado linear e incompleto relativamente a certos contemporâneos (pensamos em E. Levinas, sem falar, bem entendido, em comentadores que deram aos estudos husserlianos um estilo novo: S. Bachelard, J. Derrida, etc), foi estabelecido por Herbert Spiegellberg em The Phenomenological Mouvement (1960). Contentar-nos-emos com indicar aqui as orientações essenciais e os pontos de ruptura ou de inflexão.

A aplicação do método descritivo nos domínios da intencionalidade apenas indicado mas não explorado por Husserl cimentou momentaneamente a unidade dos círculos fenomenológicos de Gottingen e de Munique: fenomenologia do querer, dos sentimentos (Alexander Pfänder, 1870-1941), do direito e dos actos sociais (Adolf Reinach, 1883-1917), da estética (Moritz Geiger, 1880-1937). A atenção dada aos atos intencionais, às essenciais e às leis de essência, situa nitidamente estas «fenomenologías» no prolongamento direto das Recherches Logiques ou da primeira parte das Idees Directrices. É conveniente, nesta «fenomenologia das essências», tratada como parte independente do conjunto do projeto husserliano, conceder um lugar especial a Max Scheler (1874-1928). A sua Phénoménologie de la Sympathie, de L’Amour et de la Haine (1913) é citada pelo próprio Husserl como um exemplo de análise intencional no domínio da psicologia dos sentimentos e do valor (intenções axiológicas). Mas o método, em Scheler, insere-se em preocupações especulativas, metafísicas, religiosas, que dão à sua filosofia o carácter de uma visão ética do mundo e a tornam totalmente estranha ao espírito de radicalismo teórico da fenomenologia transcendental. Toda uma linhagem de fenomenólogos (entre os quais se retém o nome de Edith Stein, 1891-1942), à qual se deve um ensaio de corporação da fenomenologia no tomismo, destacou assim da fenomenologia certos traços do método eidético para sustentar, dando-lhe um contorno de cientificidade, uma ideologia herdada de outras fontes.

De um alcance bem diferente para a compreensão da própria filosofia de Husserl, isto é, de certas das suas possibilidades e daquelas que exclui, é a interpretação de Heidegger. L’Etre et le Temps (1927), obra dedicada a Husserl, inaugura na historia da fenomenologia um novo período. Doravante é relativamente a Husserl ou a Heidegger, ou tentando urna síntese dos seus pensamentos, ou seja, numa confusão dos dois, que os fenomenólogos definirão a sua própria atitude.

A crítica heideggeriana incide, antes de mais, na pretensão à universalidade do método de análise intencional constitutiva; põe portanto o problema do sentido da fenomenologia do ponto de vista da sua fundação. A partir da compreensão do ser do fenômeno, Heidegger faz surgir, como questão filosófica central, a «questão do ser» que Husserl refere sempre «à dádiva do sentido de ser» pela subjetividade constituinte. Ora a manifestação do fenômeno não é esclarecida por uma estrutura da consciência, mas remete para uma estrutura de ser do existente. As noções-chave de ser-no-mundo, de ser-aí (Dasein) e, consequentemente, de análise das estruturas apriorísticas não da consciência mas do existente (Daseinsanalyse), surgem no lugar dos conceitos husserlianos considerados por Heidegger como não originários. Heidegger, ao rejeitar o idealismo transcendental, não recusa, pois, como os outros fenomenólogos, o sentido da sua problemática: ele muda-lhe os pontos de aplicação e os «operadores» e é neste sentido que a sua dissidência poderá ser encarada como a mais autêntica fidelidade. A questão do ser, a única questão filosófica para Heidegger, renova a problemática da origem, portanto o sentido de um radicalismo que não encontrará já a sua legitimição na evidência do vivido. Uma «ontologia» para além de qualquer ontologia «regional» despoja a consciência do seu privilégio de presença a si e subordina a certeza apodíctica do preenchimento adequado à manifestação sempre equívoca do ser na linguagem.

Mas, ao abandonar o terreno da certeza, esta ontologia reencontra necessariamente noções especulativas que Husserl entendia eliminar. O essencial da confrontação entre Husserl e Heidegger pode resumir-se na questão seguinte: pode uma filosofia eliminar da sua construção todos os elementos especulativos, não se logra a si própria quando pensa ter podido fazê-lo à luz da consciência absoluta? Se ela tenta elucidar todos os conceitos com os quais opera, não vem a especulação realojar-se no seio mesmo das evidências?

Estas questões, as mais pertinentes que foram postas ao idealismo trancendental como ciência de rigor, foram levantadas por Eugen Fink a propósito da análise intencional e da obscuridade que marca, para o comentador atual, os conceitos husserlianos de epoche, de constituição, de produção de uma subjetividade absoluta e histórica. (L’Analyse Intentionnelle em Problèmes Actuelles de la Phénoménologie e les Concepts Opératoires dans la Phénoménologie de Husserl em Husserl, «Les Cahiers de Royaumont».)

Para um exame novo, isento de preconceitos, e que resistirá à lógica interna do método husserliano, é, por sua vez, este método que parece apoiar-se em múltiplas pressuposições. Os seus conceitos mais incontestáveis são postos em causa, não para dar lugar a outros do mesmo tipo, mas para assinalar o lugar onde a reflexão filosófica se abre necessariamente para uma especulação sem a qual não podia mesmo começar. Que haja especulação e não simplesmente observação imparcial nos conceitos husserlianos de vida transcendental, de intencionalidade, de constituição, na evidência da própria coisa, torna, por sua vez, especulativa e não cientificamente legitimada, a no método. (L’Analyse Intentionnelle, p. 83.) O limite da cientificidade husserliana, esse «quase nada» que separa a ciência «no mundo» da ciência filosófica, que faz aquela ciência estar sempre na procura da sua auto-legitimação e não realizada senão através do retomar perpétuo do seu começo, pode resumir-se também numa despossessão do sujeito puro e traduzir-se pela necessidade filosófica de andar constantemente do pensado ao «impensado», sem poder fazer outra coisa, em nome do próprio rigor, da seriedade da tarefa filosófica, senão aceitar esta no seu ser bruto (Merleau-Ponty: Le Philosophe et son Ombre).

A filosofia husserliana tem pois o curioso destino de ter sido melhor compreendida e respeitada segundo o seu projeto filosófico total por aqueles que mais radicalmente aplicaram o seu pensamento ao mundo ou puseram a questão do ser do sendo. Porque a clareza do sujeito lhe falta, a filosofia contemporânea, no horizonte da fenomenologia, incide a sua atenção sobre a «sombra» (E. Fink) e transforma de novo (depois da elucidação husserliana) o sujeito em enigma. [Schérer]