Partimos do problema essencial metafísico, que é o problema de: que existe? Perseguimos, em nossa excursão ao longo da história da filosofia, as duas grandes respostas contraditórias que se deram a essa pergunta. Deparamos, primeiro, com o realismo, e depois, como o idealismo; e sintetizamos a forma mais perfeita e completa do realismo em Aristóteles, assim como achamos a forma mais completa e perfeita do idealismo em Kant, se bem que nem um nem outro são exclusivistas.
Ao perseguir ao longo da história estas duas soluções fundamentais do problema metafísico, tivemos que prescindir por completo de outros problemas filosóficos que estão mais ou menos em relação com este problema metafísico, com o objetivo de que a contraposição do idealismo e do realismo resultasse clara, resultasse nitidamente delineada diante de nossos olhos. Mas, tendo chegado ao término dessa primeira excursão pelo campo da filosofia, vamos iniciar outro tipo de excursão filosófica, por aquela outra parte da selva filosófica que leva o nome estranho de ontologia. Isto quer dizer, naturalmente, que a ontologia e a metafísica não são conceitos que se sobrepõem exatamente; há intercâmbios problemáticos entre uma e outra esfera como veremos no decorrer da nossa excursão pela ontologia; mas não são idênticas nem se propõem o mesmo fim as reflexões ontológicas e as metafísicas.
Assim, pois, agora saímos daquela intricada parte da metafísica para entrar nesta não menos intricada, porém muito interessante parte, a ontologia.
Não se me oculta, evidentemente, a dificuldade da empresa. Não é fácil aquilo que vamos fazer; não é fácil em poucas lições chegar a um conhecimento profundo dos problemas variadíssimos que a ontologia apresenta, e menos ainda podemos ter a pretensão de dar-lhes aqui uma solução. Mas isso não importa, porque à filosofia não apetece menos que as soluções o doce prazer do difícil caminho que a elas conduz. Assim como o excursionista se diverte muito mais durante a excursão que ao término dela, assim também nós, nessa excursão introdutória pelo campo da filosofia, o que pretendemos é simplesmente aguçar a percepção, a intuição dos problemas filosóficos. Todavia, devo fazer ressaltar dois requisitos fundamentais que são necessários para que nossa excursão pelo campo da ontologia obtenha frutos gratos c proveitosos. Estes dois requisitos são duas disposições do ânimo que é mister desenvolver para que essas lições últimas sejam frutíferas. A primeira delas é aquilo que eu chamaria ingenuidade. É mister que nos coloquemos diante dos problemas da ontologia com ânimo ingênuo, desprovido de preconceitos; é mister que aquilo que sabemos, aquilo que estudamos em livros e teoria, não venha sobrepor-se à intuição clara dos objetos que consigamos produzir em nós mesmos. Esta intuição direta, clara, dos objetos mesmos não deve ser enturvada por uma atmosfera de teorias ou de conceitos apreendidos ou estudados antes. Isso é o que eu chamo ingenuidade, e nessa disposição ingênua do ânimo ê conveniente que se coloque o leitor para acometer os problemas da ontologia.
Mas, ao mesmo tempo, é também exigível outra disposição de ânimo que parece contradizer a primeira: refiro-me ao rigor na marcha reflexiva do pensamento. É indispensável que nossas intuições, nossas visões nessa excursão pelo campo da ontologia, sejam rigorosas, precisas, as mais claras possível, de maneira que façamos este trabalho com uma preocupação de exatidão comparável com a das próprias matemáticas. E por isso digo que as duas condições, a ingenuidade é o rigor, em certo modo se contradizem. A ingenuidade é algo assim como a puerilidade, como a infância, e, de outra parte, o rigor é uma virtude que somente os homens habituados ao trabalho intelectual, à meditação reflexiva, podem desenvolver. E, todavia, estas duas virtudes, aparentemente opostas, são as que convém que o aspirante a filósofo cultive.
Por último, também interessa uma terceira disposição de ânimo que é a paciência. Ouçamos a palavra de Descartes quando nos aconselha que evitemos a precipitação. Evitar a precipitação consiste em contentar-se, em cada uma das etapas da viagem filosófica, com os resultados que se obtiveram, sem pretender, de modo algum, antecipar soluções prematuras nem levantar problemas que não estejam eles mesmos levantados espontaneamente pela constelação dos resultados a que se haja chegado.
Com este viático, com esta preparação para a viagem, vamos ao campo intricado da ontologia; e de início encontramos, ao chegar a essa parte da selva, o letreiro que diz: “Ontologia”. [Morente]