Nos seus traços fundamentais a fenomenologia de Husserl pode caracterizar-se como uma filosofia transcendental, ou seja, uma filosofia que regressa à subjetividade, considerada base última de todas as formações objetivas de sentido e de todos os valores de ser. A subjetividade deve, por isso, ser captada como um plano absolutamente racional, que permite clarificar correta e diretamente todos os problemas de validade. Explicitável ao infinito, essa infinidade abrange tudo o que pode ser válido. A via de acesso a esse domínio é a redução fenomenológica. E esta que, conduzindo à subjetividade, possibilita alcançar um ponto de partida absolutamente seguro e um proceder rigoroso, elevando a filosofia, dentro da sua esfera própria, a uma ciência de rigor.
Para melhor compreender a intenção da fenomenologia husserliana convém reportarmo-nos à tese de habilitação à docência, de 1878, Sobre o conceito de número. Análises psicológicas tentativa de basear as investigações sobre o conceito de número em certas ideias lógicas e psicológicas da época. Os comentadores e críticos de Husserl veem, com razão, já preludiados neste primeiro trabalho alguns dos temas e processos de investigação fenomenológica. Nele há referência contínua à reflexão e ao método de revelação das essências das coisas, regressando-se, para isso, à origem do significado delas na consciência e descrevendo essa origem, o que pode ser considerado como primeira expressão de ideias, posteriormente desenvolvidas, acerca da constituição, redução, análise intencional e intuição eidética. Por outro lado, contudo, tanto Sobre o conceito de número como Filosofia da Aritmética que o re-elabora e desenvolve, permanecem fechados no horizonte do psicologismo, pois tentam derivar de certos atos psíquicos os conceitos fundamentais da aritmética e ainda da geometria euclideana. As críticas a esse psicologismo, vindas de Stumpf, Natorp e Frege, conduziriam Husserl a uma reflexão sobre as relações entre psicologia e lógica, acabando por considerar o psicologismo insustentável. A fazer essa demonstração dedicou o primeiro volume — Prolegômenos a uma Lógica Pura — das suas Investigações Lógicas. Husserl defende aí a independência do domínio matemático e lógico no sentido de uma espécie de platonismo. Explica que os princípios lógicos são verdadeiros, independentemente de serem ou não pensados por alguém. Devem possuir uma «existência» independente do funcionamento do fato de consciência. A validade do pensado no pensamento não se encontra vinculada a qualquer atividade psíquica do sujeito. Daí, pensamento lógico e pensamento matemático serem verdadeiros, independentemente da sua formulação pela função pensante. De onde se conclui que matemática e lógica são puras, se independentes de um pensamento factual. A validade do pensado no pensamento não se encontra vinculada a qualquer atividade psíquica do sujeito.
O erro básico do psicologismo reside em ter naturalizado as nossas ideias e também em ter naturalizado a consciência. Por isso se impõe uma discriminação rigorosa entre o mundo da consciência e o mundo dos aconteceres factuais. É no segundo volume das Investigações Lógicas que essa discriminação é estabelecida. À primeira vista parece tratar-se mais de psicologia do que lógica pura, onde se explicita a correlação típica entre os objetos ideais, pertencente à esfera lógica, possuidores de uma existência em si próprios, e as nossas existências vividas, psíquicas, subjetivas, como atividades em que se dão esses objetos. Husserl designa-a por fenomenologia, considerando esta uma psicologia descritiva, embora não psicologista, que procura ver os diferentes objetos lógicos nos correspondentes atos da consciência. Na introdução a este segundo volume, sobre a função de uma teoria do conhecimento, afirma Husserl: «esforça-se por elevar à clareza e distinção as formas e leis puras do conhecimento pelo regresso à intuição adequadamente doadora. Este esclarecimento exige uma fenomenologia que vise simples análises descritivas das vivências segundo a sua componente real». Assim, segundo a primeira edição das Investigações Lógicas, apenas são fenomenologicamente dados os momentos «reais», efetivos, aqueles que, como veremos oportunamente, são designados no primeiro volume das Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica por momentos hiléticos e noéticos e não os momentos realmente «transcendentes» e, neste sentido, os momentos «intencionais». Surge-nos deste modo uma esfera fenomenológica limitada, domínio estrito de doações em que a fenomenologia se deve apoiar para fundamentação de uma teoria do conhecimento baseada ho princípio da ausência de pressupostos. Como Husserl afirma no §7 da introdução do segundo volume das Investigações Lógicas: «Uma investigação gnoseológica, que tenha aspiração séria a científica, deve necessariamente, como muitas vezes já se tem sublinhado, satisfazer ao principio da ausência de pressupostos. Porém, em nosso entender, o princípio não pode querer dizer mais do que a exclusão de todas as hipóteses que não podem ser, fenomenologicamente, completamente realizadas. Toda a investigação gnoseológica deve realizar-se com base puramente fenomenológica». Originariamente, a ideia de redução fenomenológica é a de uma limitação de uma esfera fundamental de pesquisa, no sentido de uma restrição exigida pelo princípio da ausência de pressupostos das investigações gnoseológicas É neste domínio de análises e descrições que tem lugar o que é adequadamente percepcionado, ou seja, de acordo com as investigações Lógicas, as vivências nas suas componentes ou momentos reais. Tudo se passa num plano em que a fenomenologia é considerada uma psicologia descritiva, embora não psicologista, que procura ver os diferentes objetos lógicos nos correspondentes atos de consciência. O que se apresenta de novo neste método é ser «uma tentativa de regressar radical e consequentemente das categorias respectivas das objetividades aos modos de consciência que lhes pertencem, aos atos subjetivos, estruturas de atos, fundamentos de vivência, em que essas objetividades são conscientes e chegam a alcançar uma doação evidente».
Por volta de 1904 Husserl começa a ver a necessidade de superar os exercícios de psicologia descritiva da segunda parte das Investigações Lógicas. A questão que agora se apresenta é o da extensão da problemática gerada pelas idealidades matemáticas e lógicas a todas as objetividades em geral, incluindo as objetividades que o conhecimento considera como reais. [Morujão]
Husserl, em suas Investigações Lógicas, submeteu à crítica demolidora o nominalismo que, sob o nome de empirismo, de psicologismo, etc, invadia, desde Locke e Hume, quase toda a filosofia. Segundo os nominalistas, as leis lógicas seriam generalizações empíricas e indutivas, comparáveis às leis das ciências da natureza, e o universal seria somente uma representação esquemática. Husserl mostra que as leis lógicas não são, em si, por forma alguma, regras, que a lógica tampouco é ciência normativa, embora — como aliás todas as ciências teóricas — sirva de base a uma disciplina normativa. De fato, a lei lógica nada diz sobre o “dever”, mas diz alguma coisa sobre o “ser”. O princípio de contradição, por exemplo, não diz que não seja possível enunciar duas proposições contraditórias, mas única e simplesmente que uma e a mesma coisa não pode possuir predicados que se contradigam. Assentes estes princípios, Husserl ataca o psicologismo, segundo o qual a lógica seria um ramo da psicologia. O psicologismo está em erro, sob duplo aspecto: se ele fosse verdadeiro, as leis lógicas teriam o mesmo caráter vago que as leis psicológicas, seriam, quando muito, prováveis e pressuporiam a existência de fenômenos psíquicos — o que é absurdo. Pelo que, as leis lógicas pertencem a uma ordem inteiramente diferente: são leis ideais, apriorísticas. Em segundo lugar, o psicologismo falseia completamente o sentido das leis lógicas. Com efeito, estas nada têm que ver com o pensamento, o juízo, etc, mas referem-se a algo objetivo. O objeto da lógica não é o juízo concreto de um homem, mas o conteúdo deste juízo, sua significação, que pertence a uma ordem ideal. Finalmente, o fundador da fenomenologia entra também em conflito com o nominalismo em sua teoria da abstração. Mostra ele que o universal nada tem que ver com uma representação generalizada. O que podemos nos representar, quando apreendemos um termo matemático por exemplo, quase não tem importância. Locke, Hume e seus sucessores, incapazes de compreender objetos ideais, hipostasiaram o universal, convertendo-o falsamente em mera imagem. Mas não existe tal coisa. O universal é, na realidade, um objeto de natureza muito peculiar, um conteúdo ideal universal.
A doutrina da significação.
A crítica precedente — um dos maiores enriquecimentos da filosofia do século XX e, ao mesmo tempo, um retorno aos grandes pensamentos ontológicos da Antiguidade e da Idade Média — serve de fundamento à tese de que a lógica possui domínio próprio, a saber, o domínio das significações. Quando compreendemos um nome ou uma proposição, o que uma ou outra expressão enuncia não é propriamente o equivalente de uma parte do ato intelectual correspondente. é, antes, a significação. Diante da diversidade infinita das experiências individuais, há sempre o que nestas é expresso, um “idêntico” no sentido estrito da palavra. Mas o termo “exprimir” é equívoco. Podemos distinguir nele pelo menos três funções diferentes: 1) o que a expressão “põe de manifesto” (a saber, o psíquico, as vivências psíquicas); 2) o que “significa”, com uma nova distinção: a) o sentido, o conteúdo do conceito, e b) o que o termo designa. Por último, Husserl distingue entre os atos que atribuem a significação (bedeutungsverleihende Akte) e os atos que a preenchem (bedeutungserfullende Akte). Estes últimos conferem ao ato a plenitude intuitiva; os primeiros contêm unicamente o essencial da expressão, mas não subministram o “preenchimento” intuitivo da intenção de significação.
Com a teoria da significação prende-se uma gramática pura, a teoria filosófica da gramática. Neste como em muitos outros domínios, introduziu Husserl valiosos enriquecimentos que a lógica matemática permite hoje apreciar. Esta deve-lhe, entre outras coisas, a noção da categoria semântica (Bedeutungskategorie). Outro aspecto importante e interessante das Investigações Lógicas é a doutrina do todo e das partes. É impossível entrar aqui nos pormenores destas teorias, pois, embora elas devessem pertencer ao que há de mais valioso na filosofia contemporânea, são demasiado abstratas e, por outro lado, não tiveram a mesma repercussão que as demais doutrinas de Husserl. [Bochenski]
A fenomenologia tomava pois o sentido de uma propedêutica às “ciências do espírito”. Mas, a partir do segundo tomo das Investigações Lógicas esboça-se um salto que nos vai fazer entrar na filosofia propriamente dita. A “problemática da correlação”, isto é, o conjunto dos problemas demonstrados pela relação do pensamento com seu objeto, uma vez aprofundada, deixa emergir a questão que constitui o seu núcleo: a subjetividade. É aqui provavelmente que a influência exercida por Brentano sobre Husserl (do qual havia sido aluno) se faz sentir; a observação chave da psicologia brentaniana era que a consciência é sempre consciência de alguma coisa, em outros termos que a consciência é intencionalidade. Se transferimos esse tema para o nível da eidética, isto significa que todo objeto em geral, o próprio eidos, coisa, conceito etc, é objeto para uma consciência, de tal modo que é necessário descrever presentemente a maneira pela qual eu conheço o objeto e segunda a qual o objeto é para mim. Poder-se-ia dizer que voltamos ao psicologismo? Chegou-se erroneamente a acreditar nisso.
A preocupação de fundar radicalmente o saber havia levado Husserl à eidética formal, isto é, a uma espécie de logicismo. Mas, a partir do sistema das essências, duas orientações se abrem: ou desenvolver a ciência lógica em mathesis universalis, quer dizer, constituir do lado do objeto uma ciência das ciências; ou então, em oposição, passar à análise do sentido para o sujeito dos conceitos lógicos utilizados por esta ciência, do sentido das relações que ela estabelece entre esses conceitos, do sentido das verdades que ela quer estabilizar, isto é, em resumo, pôr em discussão o próprio conhecimento, não para dele construir uma “teoria” mas para fundamentar com raízes mais profundas o saber eidético radical. Tomando consciência de que já na simples doação do objeto havia implicitamente uma correlação do eu e do objeto que devia remeter à análise do eu, Husserl escolheu uma segunda orientação. A radicalidade do eidos pressupõe uma radicalidade mais fundamental. Por quê? Porque o próprio objeto lógico me pode ser dado confusa ou obscuramente, porque eu posso ter de tais leis, de tais relações lógicas “uma simples representação”, vazia, formal, operatória. Na sexta Recherche logique Husserl mostra que a intuição lógica (ou categorial) não escapa a essa compreensão simplesmente simbólica a não ser quando é “fundada” na intuição sensível; trata-se de um retorno à tese kantiana segundo a qual o conceito sem intuição é vazio? Assim o creram os neokantianos.
Deste modo no segundo tomo das Investigações Lógicas distinguimos dois movimentos entrelaçados, um dos quais, introduzindo a análise do vivido como fundamento de todo conhecimento, parece conduzir-nos ao psicologismo; o outro, perfilando a compreensão evidente do objeto ideal sobre o fundo da inluição da coisa sensível, parece dobrar a fenomenologia sobre as posições do kantismo. Por outro lado, entre as duas vias definidas a cima, Husserl ingressa na segunda, e do “realismo” das essências parece deslizar para o idealismo do sujeito: “A análise do valor dos princípios lógicos conduz às investigações centradas no sujeito” (Lógica Formal e Transcendental, 203). Parece, portanto, que nesse estágio teremos de escolher entre um idealismo concentrado sobre o eu empírico e um idealismo transcendental à maneira kantiana: mas nem um outro podia satisfazer a Husserl, o primeiro porque torna incompreensíveis proposições verdadeiras, reduzidas pelo psicologismo a estados de consciência não privilegiados e porque derrama no próprio fluxo dessa consciência, tudo junto, aquilo que vale e aquilo que não vale, destruindo assim a ciência e destruindo-se a si mesmo enquanto teoria universal; o segundo porque explica somente as condições a priori do conhecimento puro (matemática ou física puras) mas não as condições reais do conhecimento concreto: a “subjetividade” transcendental kantiana é simplesmente o conjunto das condições que regulam o conhecimento de iodo objeto possível em geral, o eu concreto é remetido ao nível do sensível como objeto (motivo pelo qual Husserl acusa Kant de psicologismo) e o problema de saber como a experiência real entra efetivamente no quadro apriorístico de todo conhecimento possível para permitir a elaboração das leis científicas particulares permanece sem resposta, pelos mesmos motivos que na Crítica da Razão Prática a integração da experiência moral real nas condições a priori da moralidade pura permanece insolúvel, segundo confissão do próprio Kant. Husserl conserva, portanto, o princípio de uma verdade fundada no objeto do conhecimento, mas rejeita a separação deste e do sujeito concreto; é nesta etapa que se liga a Descartes. [Lyotard]