Tal é, nas suas grandes linhas, a doutrina fenomenológica de Husserl. Na origem, afirma-se como reação categórica contra o nominalismo saído do kantismo e do positivismo comtista. Procura, com efeito, pôr a descoberto essa verdade fundamental que afirma o concreto ( ou, se quisermos, o fato sensível ) como sendo o único dado de fato. A essência pode tornar-se objeto de um conhecimento cientifico e fundar a ciência metafísica. Esta ciência terá como processo a redução eidética, ou seja, a consideração exclusiva da essência dada no fenômeno empírico singular. Sob este aspecto, que é essencial à fenomenologia, a doutrina de Husserl opõe-se nitidamente à de Bergson.
A fenomenologia apresenta-se, indubitavelmente, como ciência da consciência, que ela pretende aprofundar até ao seu princípio absoluto, e, por isso, poderíamos ser levados a pensar que a fenomenologia vai assim ao encontro do bergsonismo. Esse encontro, porém, é apenas de ordem aparente, porque os processos a seguir são inteiramente diferentes dos dois casos : a intuição concreta do bergsonismo conduz apenas, segundo o ponto de vista husserliano, a um psicologismo e não tem nada de comum com a Wesenschau da fenomenologia.
Foi sobretudo com a intuição tomista que se pretendeu comparar a intuição fenomenológica. Ambas são intuição das essências, diz-se, por vezes. No entanto, a diferença entre elas é grande. Em primeiro lugar, a intuição das essências, no tomismo, é sempre imperfeita, porque o conceito não é considerado como algo que se baste a si próprio, nem como coisa completa : e o conceito não se basta a si próprio, porque, para S. Tomás, nunca representa uma realidade atual ; como tal, nunca é qualquer coisa acabada ou completa, porque nunca representa o objeto por inteiro, uma vez que abstrai da quantidade (ou da individualidade ) e da existência. Assim se exprime a doutrina da abstração, e é isto que faz da doutrina tomista mais uma filosofia das existências do que uma filosofia das essências. — Na fenomenologia, as coisas passam-se de outra maneira : a inclusão parentética transcendental, transforma a fenomenologia rigorosamente numa filosofia das essências, que desde logo ficam a bastar-se a si mesmas e são realidades completas, sem referência à existência, a qual não intervém, em fenomenologia, senão como fenômeno e dado de consciência e nunca como realidade « em si». A Wesenschau será, portanto, teoricamente, uma intuição completa e exaustiva do objeto, devendo, segundo parece, implicar um idealismo radical, ao passo que, para S. Tomás — estando a existência necessariamente no ponto de partida e sendo anterior à apreensão de uma dada essência, que, aliás, permanece sempre relacionada com a existência ( Nihil este in intellectu quin prius fuerit in sensu) — a intuição intelectual dará origem a um verdadeiro realismo, que estabelece como tese essencial a afirmação de que a inteligibilidade intrínseca (sob o ponto de vista da essência) parte da existência, da qual é uma determinação, e, simultaneamente, conduz de novo à existência (ou ao sujeito^), que é o próprio termo do juízo.
Ponderando bem as coisas, a intuição que mais se deverá aproximar da intuição fenomenológica é a cartesiana. De resto, é o próprio Husserl que a tal nos induz explicitamente nas suas Meditações cartesianas. A intuição das Regulae incide, com efeito, sobre as essências puras ou sobre as naturezas singulares congênitas ao espírito. O universo cartesiano não é senão um universo de fenômenos e a existência, em Descartes, tal como na fenomenologia, só tem valor como fenômeno, porquanto a relação entre as essências, percebidas pelo entendimento, e a existência «objetiva » só pode ser extrínseca ou fundada na garantia da veracidade divina. Se o mundo das essências, de fato, não se basta, pelo menos, de direito, poderia bastar-se. A divergência fundamental entre Descartes e Husserl está em que Descartes se detém no eu empírico como num absoluto, enquanto que Husserl leva muito mais longe a redução fenomenológica, chegando até a um Ego transcendental, princípio de todo o universo subjetivo e, indo ainda mais longe, até ao Ego constituinte universal. [Jolivet]