Sentimo-nos tentados a acrescentar por nossa conta o subtítulo: ou o romance do espírito. E com efeito, aquilo a que assistimos aqui não é a sua mais prodigiosa aventura?
Sabe-se que a manobra habitual da filosofia, desde as origens e enquanto permanece uma filosofia espiritualista, consiste em transferir, por uma inversão arrojada, a realidade do mundo sensível para o mundo inteligível e em derivar aquele deste último. Só o espírito existe e subsiste na filosofia de Hegel, mas assume nela um caráter completamente novo e muito peculiar.
Cumpre dizer em primeiro lugar o que ele não é ou o que deixou de ser. É tudo e é todo, mas não é nem a ideia platônica donde tudo procede por participação, nem o motor imóvel de Aristóteles, engendrando tudo que se move, nem o Deus cristão criador. O que o novo sistema censura aos antigos é o fato de serem estáticos e o que pretende substituir-lhes é um dinamismo. Destrói também a antiga dualidade espírito-matéria e a dualidade mais recente que completava uma razão especulativa impotente por uma razão prática demasiado poderosa.
Tudo está dentro de um Espírito universal uno; tudo se origina do movimento desse Espírito em sisi mesmo e sobre si mesmo.
“Conhece-te a ti próprio”, dizia o oráculo de Delfos. Voltamos mais uma vez ao velho adagio, mas é para encontrar nele um sentido que se renova, talvez, de época em época. Isto já não quer dizer: conhece o teu caráter a fim de corrigi-lo, conhece e mede as tuas possibilidades, mas sim, consoante uma interpretação que aliás não era nova: Conhece o deus que vive em ti. Para Hegel, este Deus é o Espírito apreendendo-se a si mesmo em seu movimento, que o explica e o cria ao mesmo tempo que lhe permite criar tudo.
É também ao pé da letra que se deve entender esta máxima do conhecimento: “Conhecer a sua noção”, escreve Hegel, “eis o que é próprio da natureza do espírito”; e ainda: “Todo ato do espírito não é mais que uma percepção de si mesmo. E o fim de toda ciência verdadeira consiste em fazer com que o espírito se descubra a si mesmo em tudo o que enche o céu e a terra.”
Chegamos assim ao ser pelo conhecer, ou antes, o ser e o conhecer se confundem. E qual é o princípio que faculta essa passagem? O movimento: “Pois o espírito é um ser que em sua simplicidade se diferencia de si mesmo… não existe em sua realidade senão pelas formas determinadas de suas manifestações necessárias… é um ser ligado interiormente ao corpo pela unidade da noção…” E mais adiante (desta vez fala o comentador): “Existe assim uma noção ou ideia do espírito, e são esta ideia e os diversos momentos desta ideia que constituem a realidade do espíritoir.”
A filosofia hindu nos havia mostrado Brama, do fundo do abismo e do silêncio, a produzir os mundos fenomenais, a recolhê-los em si e a produzi-los novamente, num fluxo perpétuo. Trata-se aqui de uma outra potência, que é um todo e um total, única realidade, sua própria realidade que, por si mesma, se engendra e se desenvolve. Existe um ser afirmado que é o ser lógico, um ser manifestado que é a natureza e um ser realizado que é o espírito: este ser é um só, apreendido em seus diversos momentos.
E a cada etapa sobrevém nova subdivisão: “o desenvolvimento do espírito se processa”, diz Hegel, “sob a forma de urna relação consigo mesmo” — espírito subjetivo; “sob a forma da realidade, enquanto mundo que ele deve produzir e que produziu” — espírito objetivo; “na unidade em si e para si, engendrando-se eternamente a si mesma, da objetividade do espírito e de sua idealidade ou noção” — espírito absoluto ls.
Temos assim uma verdadeira cascata de tríades que descem até o número de 27. Mas preste-se atenção: apesar das aparências, não existe aqui nada de semelhante à processão plotiniana, às emanações sucessivas que partem do Uno primordial. Este Uno — que é o Espírito — está presente em toda parte e na sua totalidade; tratar-se-ía antes do seu desdobramento e da sua realização sob a sua forma suprema.
Consideremos agora — sob o ponto de vista do método de investigação — o espírito subjetivo. É primeiramente em si e imediato, constituindo assim o objeto da antropologia, depois para si e mediatizado, sendo então objeto da fenomenología, e finalmente em sisi mesmo e sujeito quanto a si: objeto da psicologia. Haverá, diremos nós, uma alma natural ou alma do mundo, uma alma individual ou sensitiva, e uma alma real.
Vamos mais longe, e muito mais fundo que por estas divisões e subdivisões, pelo exame da natureza dessa realidade. Esta natureza é espiritual, própria e unicamente espiritual, pois não existe realidade senão fora do espírito. Senão ouçamos o que diz Hegel da matéria que, em certo sentido, é também espírito: “O espírito faz a verdade real da matéria, porque a matéria em si mesma é privada de toda verdade.”
A grande originalidade de Hegel, porém, está no dinamismo, na espécie de realidade que ele atribui ao Espírito — realidade, com efeito, de ordem puramente dinâmica. Já não é mais o ser estável e transcendente, imutável na perfeição que ele comunica sem se mover; é um ser que se produz, progride e se realiza pelo seu próprio movimento; é um ser que “se faz”. Eis aí a derradeira palavra desta filosofia, o seu achado e a sua fraqueza. Deus, dirão depois de Hegel e segundo Hegel, Deus não existe mas “se faz”. Como se Deus, única potência primeira que faz, pudesse fazer-se sem previamente existir!
Todo movimento é negação ou comporta a negação, uma vez que é passagem do que é para o que não é. E eis-nos chegados a essa doutrina da negação, que teve ao depois uma sorte tão surpreendente. Mas a negação, aqui, não é apenas privativa ou mecânica; é mais do que a mera constatação de um nada ou um simples instrumento lógico; tem um valor positivo e mesmo criador. É o princípio do movimento, quando não o próprio movimento. Negar é agir: e pode-se agir sem criar algum ser? Negar é passar de um ser a um outro, ou pelo menos deixar algum lugar para outro ser; negar, em suma, é criar. É o que podemos verificar logo pelo seguinte exemplo: do Eu passamos ao não-Eu, mas para alcançar o Ele do Espírito absoluto; a Ideia pura se nega pela natureza e torna a encontrar-se no Espírito; o Uno se nega pelo múltiplo e se realiza na Unidade.
É a trindade hegeliana, de que Elegei via um símbolo na Trindade cristã: tese, antítese, síntese; e isto, repetimo-lo, não é uma operação lógica, senão uma operação criadora. Não são apenas coisas que mudam ou se substituem umas às outras; é o próprio conteúdo que se desenvolve: “Vê-se… que a passagem da natureza ao espírito não é a passagem de um ser a outro ser que lhe seja completamente estranho, mas apenas o retorno sobre si mesmo do espírito que existe fora de si mesmo na natureza… .” A filosofia do Espírito, enfim, não é mais que uma vasta reintegração no Espírito.
Esta unidade na diversidade e tirada da diversidade, esta identidade sob tantas operações ou aparências discriminativas, eis o fundo da poderosa e fantasmagórica doutrina hegeliana. O real é o Espírito, o Espírito é a Ideia ou o sistema de Ideias, essa substância sem a qual o universo não seria mais que acidente. Além disso, a própria Ideia se confunde com a sua noção, e este é o motivo por que o ser é idêntico ao conhecer. Realizar-se em espírito é realizar-se em conhecimento, é instalar-se no próprio seio do Ser uno e universal.
Tudo é espírito e tudo é o espírito, não só o mundo exterior mas os aspectos e os momentos sucessivos do mundo: temos aqui uma das concepções mais originais e mais perigosamente exploradas do pensamento hegeliano. O Espírito se inscreve não apenas no seu movimento e nas suas etapas, não apenas nos fenômenos, mas ainda no pensamento dos homens, nas suas instituições e no desenvolvimento da sua história, de modo que esta história assinala, com a “sequência dos impérios”, a sequência do Espírito, e para apreendê-lo basta procurá-lo aí. Nessa sequência estão assinalados, com os seus progressos, os progressos da própria sociedade, e a cidade ideal derivará da sua idealidade última. É assim que se chegará ao “materialismo histórico”, tão pouco consoante com o espírito do sistema e do fundador, que teria sem dúvida repudiado tal descendente. Mas depois que se desencadeou o pensamento não se é mais senhor dele.
Bossuet via na história a Providência divina; Hegel vê nela o próprio Deus sob a forma do Espírito. Do mesmo modo ultrapassa Kant, que limitava a especulação às fronteiras do mundo. Por ele o universal torna a entrar na especulação, se é que não constitui essa própria especulação. [Truc]