Filosofia – Pensadores e Obras

ficção comunista

O comportamento uniforme que se presta à determinação estatística e, portanto, à predição cientificamente correta dificilmente pode ser explicado pela hipótese liberal de uma naturalharmonia de interesses” que é a base da economia “clássica” Não Karl Marx, mas os próprios economistas liberais tiveram de introduzir a “ficção comunista” isto é, supor a existência de um único interesse da sociedade como um todo, que com “uma mão invisível” guia o comportamento dos homens e produz a harmonia de seus interesses conflitantes.

Uma das principais teses da brilhante obra de Myrdal (The political element in the development of economic theory, p. 54 e 150) é que o utilitarismo liberal, e não o socialismo, é “forçado a manter uma ‘ficção comunista’ insustentável acerca da unidade da sociedade”, e que “a ficção comunista [está] implícita na maioria das obras sobre economia”. Myrdal demonstra categoricamente que a economia só pode ser uma ciência se presumir que um só interesse permeia a sociedade como um todo. Por trás da “harmonia de interesses”, está sempre a “ficção comunista” de um interesse único, que pode então ser chamado de “bem-estar” [welfare] ou de “bem comum” [commonwealth]. Consequentemente, os economistas liberais foram sempre guiados por um ideal “comunista”, ou seja, pelo “interesse da sociedade como um todo” (p. 194-195). O ponto crucial do argumento é que isso “equivale à asserção de que a sociedade deve ser concebida como um único sujeito. E isto, não obstante, é precisamente o que não pode ser concebido. Se tentarmos fazê-lo, seremos tentados a ignorar o fato essencial de que a atividade social é o resultado das intenções de vários indivíduos” (p. 154).

A diferença entre Marx e seus precursores foi apenas que ele encarou a realidade do conflito, como este se apresentava na sociedade de seu tempo, tão seriamente quanto a hipotética ficção da harmonia. Esteve certo ao concluir que a “socialização do homem” produziria automaticamente uma harmonia de todos os interesses, e apenas teve mais coragem que os seus mestres liberais quando propôs estabelecer na realidade a “ficção comunista” subjacente a todas as teorias econômicas. O que Marx não compreendeu – e em seu tempo seria impossível compreender – é que os germes da sociedade comunista estavam presentes na realidade de um lar nacional, e o que atravancava o completo desenvolvimento dela não era qualquer interesse de classe como tal, mas somente a já obsoleta estrutura monárquica do Estado-nação. Obviamente, o que impedia a sociedade de funcionar suavemente eram apenas certos resquícios tradicionais que interferiam e ainda influenciavam no comportamento de classes “atrasadas” Do ponto de vista da sociedade, estes não passavam de simples fatores perturbadores no caminho do pleno desenvolvimento das “forças sociais”; já não correspondiam à realidade e eram, portanto, em certo sentido, muito mais “fictícios” que a “ficção” científica de um interesse único.

Uma vitória completa da sociedade produzirá sempre algum tipo de “ficção comunista” cuja principal característica política é a de que realmente será governada por uma “mão invisível” isto é, por ninguém. O que tradicionalmente chamamos de Estado e de governo cede lugar aqui à mera administração – um estado de coisas que Marx previu corretamente como o “definhamento do Estado” embora estivesse errado ao presumir que somente uma revolução pudesse provocá-lo, e mais errado ainda quando acreditou que essa completa vitória da sociedade significaria o eventual surgimento do “reino da liberdade”. [Há uma brilhante exposição desse aspecto, geralmente negligenciado, da relevância de Marx para a sociedade moderna em Siegfried Landshut, “Die Gegenwart im Lichte der Marxschen Lehre”, Hamburger Jahrbuch fur Wirtschafts- und Gesellschaftspolitik, v. I (1956).] [ArendtCH, 6]