Toda teoria deve basear-se numa exata observação e descrição do fenômeno que pretende explicar e interpretar. Somente assim pode verificar realmente a essência do fenômeno. Também a gnosiologia deve partir do fenômeno ‘conhecimento’ e orientar-se continuamente por ele. Antes de intentar construir uma teoria do conhecimento humano o filósofo deve procurar ter ante seus olhos o peculiar fenômeno da consciência que chamamos ‘conhecimento’, e descrever em seus traços essenciais o que vê. Para isso deve guardar-se de introduzir por sua conta dados ou interpretações estranhos ao fenômeno. Simples e candidamente deve descrever o que vê. Deve estar livre ou libertar-se de toda opinião preconcebida. De modo algum deve misturar uma interpretação subjetiva com sua descrição do fenômeno. Com demasiada facilidade o gnosiólogo vê a priori o fenômeno de conhecimento com os óculos de uma teoria para ele incontestável. Isto determina e orienta então sua descrição do fenômeno. Inverte-se, assim, a relação objetiva entre descrição e interpretação: esta não se baseia naquela mas aquela nesta.
De acordo com Johannes Hessen, se mediante a mais simples auto-reflexão sobre a função cognoscitiva de nosso espírito procuramos esclarecer-nos acerca do que é o conhecimento, poderemos mostrar,— mesmo procedendo com a maior cautela — os seguintes traços essenciais deste fenômeno espiritual:
1. Em todo conhecer existem dois fatores: um sujeito e um objeto. A consciência cognoscente se defronta com o objeto a conhecer. Nesta dualidade e polaridade de sujeito e objeto reside o traço essencial mais geral e evidente do fenômeno de conhecimento; em outras palavras: a estrutura fundamental do fenômeno de conhecimento é polar.
2. Se em todo conhecer a consciência defronta um objeto a conhecer (nem sempre se trata de uma confrontação externa, senão com bastante frequência da contraposição puramente interna entre o ato de conhecer e o objeto de conhecimento) se apresenta então a questão de qual é aqui a atitude que assume a consciência cognoscente. Se refletimos sobre este aspecto do fenômeno de conhecimento, devemos dizer que não é uma atitude ativa mas contemplativa. A consciência cognoscente não procura atuar, modificar ou transformar os objetos mas antes os deixa totalmente quietos. Percebe-se aqui claramente a peculiaridade da atitude cognoscitiva, sua diferença essencial com relação à atitude ativa. Comportamento teórico e comportamento prático, conhecimento e ação, são sempre opostos.
3. O sujeito de conhecimento se dirige contemplativamente ao objeto. Como surge desta atitude cognoscitiva o ato de conhecer? Com isto tocamos o verdadeiro mistério — quase diríamos o milagre, consoante Hessen —, do conhecimento. Somente é possível caracterizá-lo por meio de imagens. Se refletimos sobre o que ocorre em nós quando conhecemos um objeto, devemos dizer que é peculiar entrar em contato do sujeito e o objeto. A consciência se põe em relação com o objeto; toca-o intimamente. Evidentemente não se trata de um evento externo e corpóreo, mas íntimo e espiritual. Aqui está o mistério deste fato. Metaforicamente se poderia dizer que são as núpcias do pensar e do ser, do espírito e o objeto.
4. O peculiar do encontro e contato de sujeito e objeto é que nenhum deles pode renunciar a sua independência. O objeto continua sempre transcendente com relação ao ato de conhecer. Quando se trata de objetos reais, isto é claro, mas também vale para os objetos ideais. E até se aplica ao próprio eu quando este constitui o objeto do conhecimento: também no conhecimento de si mesmo fica de pé a oposição de ato e objeto.
5. Se procuramos penetrar mais fundamente no mistério do ato de conhecer, dirigindo a atenção tanto ao sujeito como ao objeto, a auto-reflexão nos mostra o seguinte: no ato de conhecimento o sujeito se estende, por assim dizer, até ao objeto; de certo modo sai de sua própria esfera e entra na esfera do objeto. Por sua vez o objeto se oferece ao sujeito. Também ele, em certo sentido, abandona sua própria esfera e entra na outra. Assim, o sujeito chega a participar espiritualmente do conteúdo ontológico do objeto. Neste o sujeito se comporta de um modo essencialmente receptivo diante de seu objeto, o que quer dizer que o sujeito é determinado pelo objeto. Ora, vê-se com clareza o perigo de passar afoitamente do fenômeno à teoria. Isto ocorre quando ao fato de que o sujeito seja determinado pelo objeto se o interpreta simplesmente no sentido do objetivismo gnosiológico, como o fazem muitos fenomenólogos: veem no fenômeno mais do que este objetivamente contém. Em verdade, a situação é esta: enquanto na ação o sujeito determina o objeto, o contrário ocorre no conhecimento: o sujeito é determinado pelo objeto. Mas com isto não se decide nada acerca da natureza e resultado desta determinação. É bem possível que nesta determinação também o sujeito faça valer sua peculiaridade concorrendo para determinar o conteúdo do resultado, de maneira que este deve imputar-se tanto ao sujeito como ao objeto. Em outras palavras: o efeito da determinação do sujeito por obra do objeto não constitui necessariamente uma representação adequada do objeto no sujeito. De maneira idêntica, a determinação dos órgãos dos sentidos por obra das coisas e suas modalidades não significa de modo algum a necessidade de uma adequada reprodução destas modalidades no conhecimento sensível. Mais ainda: tudo indica que aqui ocorre uma transformação cujo resultado representa uma completa novidade com relação aos fatores determinantes. Esta possibilidade existe também no conhecimento espiritual. Seja como fôr, a mera descrição do fenômeno de conhecimento não pode excluí-la, pois se trata, neste caso, de uma interpretação filosófica do fenômeno de conhecimento, não de sua descrição fenomenológica, já que o objetivismo pertence à gnosiologia e não à fenomenologia do conhecimento.
6. Assim chegamos ao último ponto de consideração fenomenológica proposta por Hessen. De acordo com Nicolai Hartmann, além do sujeito e o objeto pertence à essência do fenômeno de conhecimento um terceiro fator: a imagem. No processo do conhecer, diz Hartmann, o objeto não se torna imanente. Não se pode falar de uma recepção do objeto por parte do sujeito. O que ocorre é antes “a repetição das determinações do objeto numa configuração do conteúdo do sujeito, a configuração cognoscitiva ou ‘imagem’ do objeto. A função cognoscitiva somente modifica um pouco no sujeito. No objeto não surge nada de novo; mas na consciência surge a consciência do objeto com seu conteúdo, a ‘imagem’ do objeto”. [LWVita]